Anemia Hemolítica Autoimune
Anemia hemolítica autoimune (AHAI) é o aumento da destruição de hemácias por mecanismos autoimunes, em geral autoanticorpos contra a superfície dos eritrócitos. Em 2020 foi publicado o primeiro consenso internacional sobre o tema e em 2021 o NEJM lançou uma revisão organizando o conhecimento sobre o tema [1, 2]. Vamos aproveitar para revisitar os principais pontos sobre o assunto.
AHAI por anticorpos quentes (AHAIaq)
A AHAIaq é caracterizada pela produção de anticorpos quase sempre do tipo IgG que se ligam a hemácias a uma temperatura de 37 C. A maioria dos pacientes tem um curso crônico com recorrências.
Metade dos casos de AHAIaq é primário (idiopático). O restante é secundário a outras doenças ou medicações (ver tabela 1). As drogas mais envolvidas são penicilinas e cefalosporinas, mas os inibidores de checkpoint (drogas antineoplásicas, ver post) também são implicadas.
Além de sinais de anemia e icterícia por hemólise, mais de 5% podem se apresentar com dor torácica. O risco de tromboembolismo venoso é aumentado . Estudos retrospectivos colocam o risco absoluto entre 15 a 30%.
A síndrome de Evans é a ocorrência simultânea de AHAIaq e púrpura trombocitopênica imune (PTI). Esse quadro se associa com anemia mais grave e um pior prognóstico.
Doença das aglutininas frias (DAF)
A DAF é um tipo de AHAI em que os autoanticorpos se ligam a hemácias entre 0 a 4 C (anticorpos frios). Esses autoanticorpos conseguem aglutinar eritrócitos, sendo designados aglutininas frias.
Descobertas da última década mudaram o entendimento da DAF primária. Pacientes que antes receberiam o diagnóstico de DAF idiopática, na verdade possuem um distúrbio linfoproliferativo clonal da medula óssea de difícil reconhecimento . As aglutininas frias são anticorpos monoclonais produzidos pelos linfócitos clonais da medula óssea, quase sempre da classe IgM.
Apesar desse novo entendimento de DAF, é possível ter síndrome das aglutininas frias de maneira secundária. As causas são infecções (Mycoplasma, EBV, CMV, SARS-CoV-2) ou neoplasias (tipicamente linfoma de células B agressivo).
Na DAF, além de hemólise, os pacientes podem apresentar acrocianose e eventos similares ao fenômeno de Raynaud.
Outros tipos de AHAI são hemoglobinúria paroxística ao frio (HPF) e a AHAI mista. A HPF, classicamente associada a uma complicação de sífilis terciária, hoje ocorre como uma rara complicação pós viral em crianças. A AHAI mista é definida pela presença de autoanticorpos IgG quentes e aglutininas frias.
Diagnóstico de AHAI
Lactato desidrogenase lática (LDH), bilirrubinas, haptoglobina e reticulócitos devem ser dosados sempre. Reticulocitose marcante apoia o diagnóstico de hemólise, mas contagens normais ou baixas podem ocorrer. Possíveis explicações são a presença de anticorpos contra precursores de hemácias ou doença medular associada.
O sangue periférico deve ser analisado na microscopia a procura dos seguintes achados:
- Esferócitos ocorrem na AHAIaq
- Agregados de eritrócitos podem surgir na DAF
- Esquizócitos para excluir microangiopatias trombóticas
Confirmada a hemólise, deve ser realizado o teste da antiglobulina direta (TAD) - o teste de Coombs direto. Esse teste detecta se as hemácias dos pacientes estão revestidas com imunoglobulina, complemento ou ambos. O TAD pode ser poliespecífico/simples, que não discrimina o tipo de anticorpo, ou monoespecífico, capaz de diferenciar qual imunoglobulina ou complemento está ligado à hemácia. Sempre que o TAD poliespecífico for positivo, deve ser realizado o TAD monoespecífico.
Hemólise com TAD positivo confirma AHAI. A depender do tipo de anticorpo do TAD, a investigação segue conforme o fluxograma 1.
TAD negativo não exclui a possibilidade de AHAI. Esse cenário ocorre em 5-10% dos casos. Na suspeita de AHAI com TAD negativo, é necessário excluir outras condições, entre elas hemoglobinúria paroxística noturna.
Tratamento de AHAIaq
O tratamento de AHAIaq é com prednisona 1mg/kg. Aproximadamente 80% dos pacientes têm resposta inicial, porém apenas 30-40% tem remissão sustentada após 1 ano. Em pacientes com Hb < 8 g/dL e idosos com comorbidades, o consenso internacional coloca como possibilidade associar rituximabe ao esquema inicial.
Como segunda linha, o rituximabe é a opção preferida. Esplenectomia pode ser considerada para aqueles que não melhoram com essa terapia. Resposta à esplenectomia ocorre em mais da metade dos pacientes, porém desses mais de 25% recorre em 1 ano. Desvantagens da cirurgia são aumento do risco de infecções e um risco ainda maior de trombose.
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