Caso Clínico #6

Criado em: 16 de Março de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Um homem de 54 anos de idade apresenta febre há 20 dias. Associado a queixa, também relata cefaleia e dispneia aos moderados esforços.

O paciente procura o serviço de saúde com 2 dias de sintomas, sendo diagnosticado com pneumonia. Realizou teste para COVID e influenza, ambos negativos. Prescrito azitromicina por 10 dias, porém não apresentou melhora dos sintomas após a medicação. Permanece com quadro febril diário, principalmente noturno, associado à sudorese e calafrios.

Paciente é natural de Pernambuco e veio para São Paulo aos 18 anos. Trabalhou como motorista até os 34 anos e desde então é auxiliar de pedreiro. O paciente é etilista, utilizando 1 garrafa de destilado por dia nos últimos 20 anos, e tabagista ativo (70 maços-ano).


Escolher como abordar um caso pode influenciar bastante na chance de chegar no diagnóstico. No paciente em questão, uma das maneiras de representar o problema é colocar o quadro dentro da síndrome "pneumonia que não resolve". Dentro dessa síndrome, sempre cabem 3 perguntas:

  • O diagnóstico de pneumonia estava correto?
  • Estando correto o diagnóstico, o antibiótico foi apropriado?
  • Sendo um antibiótico apropriado, há alguma complicação que impede a melhora, como abscessos ou empiema?

A primeira e a terceira pergunta dependem de um exame de imagem para verificar se há um infiltrado compatível com pneumonia e as complicações citadas.

A segunda pergunta é mais complexa. O paciente não possui fator de risco para germes multidroga resistentes. Contudo, a diretriz da Infectious Disease Society of America/American Thoracic Society (IDSA/ATS) orienta que pacientes com comorbidades, incluindo alcoolismo, caso recebam tratamento via oral, devem realizar dupla-terapia com beta-lactâmico mais macrolídeo ou monoterapia com quinolona respiratória (ver tabela 1) [1].

{Tabela1}

Pacientes usuários de álcool possuem maior risco de pneumonia. A principal bactéria ainda é o Streptococcus pneumoniae , com trabalhos mais antigos dando destaque também para a Klebsiella pneumoniae [2]. Essa população também possui maior risco de tuberculose [3].

O paciente não foi tratado com o esquema ideal, podendo ser um dos motivos para a não resposta. De qualquer forma, ainda é necessário um exame de imagem e exames laboratoriais que ajudem a avaliar a gravidade do quadro, para então decidir se o paciente fará outro tratamento ambulatorial ou internado.

{Tabela2}

O paciente procura o nosso serviço devido a persistência do quadro. Ao exame físico, apresentava pressão arterial 106/65 mmHg, frequência cardíaca de 96 bpm, saturação de oxigênio 98%, frequência respiratória de 18 irpm e temperatura axilar de 38,5ºC. Bom estado geral, emagrecido, hipocorado 2+/4+, sem cianose ou icterícia. Tempo de enchimento capilar de 2 segundos. Não apresentava linfonodomegalias palpáveis. Ausculta cardíaca e exame abdominal sem alterações. Ausculta respiratória apresentava apenas roncos em bases. Sem edema em membros inferiores.

Nos exames laboratoriais, apresentava hemoglobina de 9,5 g/dL, leucócitos de 510 cel/mm³ e plaquetas de 65.000 cel/mm³. Não apresentava disfunção renal ou hepática. Demais exames podem ser vistos na tabela 2.

{Figura1}

Foi realizada uma tomografia de tórax que mostrou focos de consolidação na região apical do lobo superior direito e alguns outros no pulmão esquerdo. Notam-se ainda pequenos nódulos pulmonares mal definidos, bilaterais, alguns deles com atenuação em vidro fosco, além de nódulos centrolobulares de baixa atenuação, bilaterais. Ausência de linfonodomegalias/derrame pleural.


O exame de imagem confirma uma consolidação pulmonar e não mostra complicações. Apesar de a cobertura antibiótica inadequada poder explicar a persistência dos sintomas, a pancitopenia revelada pelos exames mostra que o quadro é mais complexo do que imaginado inicialmente.

A pancitopenia do paciente é um achado relevante e passa a ser agora o sintoma guia. Pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pancitopenia é definida como a redução das três séries de elementos figurados do sangue [4]:

  • Hemoglobina menor que 13 g/dL no homem e 12 g/dL na mulher
  • Neutrófilos menor que 1800 células/mm³
  • Plaquetas menor que 150.000 células/mm³
{Tabela3}

Diante de uma pancitopenia, há duas urgências que precisam ser investigadas rapidamente, pois necessitam de tratamento imediato: microangiopatias trombóticas (MAT) e leucemias agudas. O esfregaço de sangue periférico ajuda nesses dois diagnósticos, já que a presença de esquizócitos sugerem MAT e a presença de blastos sugere leucemia.

Descartadas essas urgências, o segundo passo da abordagem à pancitopenia é considerar se há um efeito mielotóxico esperado, como em pacientes utilizando quimioterápicos. O paciente não está nesse contexto. O álcool é um agente mielotóxico, mas nesse cenário a mielotoxicidade por álcool deve ser tratada como um diagnóstico de exclusão.

O próximo passo é diferenciar se a pancitopenia é por redução da produção medular ou se é por destruição celular periférica, ou seja, após a produção das células. Marcadores de hemólise (reticulócitos, bilirrubina indireta, desidrogenase láctica e haptoglobina) podem ajudar a diferenciar essas duas causas, pois estão alterados nas causas periféricas [5].

Alguns exames não invasivos podem auxiliar no diagnóstico de pancitopenia, como as sorologias virais (HIV, hepatites B e C) e dosagem de vitaminas (B12 e ácido fólico principalmente). A deficiência de ácido fólico está associada ao alcoolismo, uma possível explicação para o caso. Outras causas de pancitopenia estão na tabela 3.

{Fluxograma1}

Se a investigação até aqui não revelar uma boa explicação para a pancitopenia, o próximo passo é considerar a realização de um mielograma (aspirado de medula) e biópsia da medula óssea. Esses dois exames são úteis quando a causa da pancitopenia não é clara e quando uma doença hematológica primária (por exemplo, leucemia mielóide aguda, anemia aplásica) é uma forte suspeita.

Considerando o quadro de pneumonia em um paciente potencialmente imunossuprimido, foi iniciado piperacilina/tazobactam e coletado culturas.

O paciente manteve-se com temperaturas febris diariamente. As sorologias vieram negativas e vitamina B12 e ácido fólico dentro da normalidade.

Solicitado um esfregaço de sangue periférico (hematoscopia) que não encontrou alteração de conformação das hemácias, porém mostrou a presença de raros eritroblastos em sangue periférico. Havia também raras células granulocíticas, com desvio até bastões e algumas células demonstrando granulações tóxicas. Ausência de hipersegmentação de neutrófilos e de formas imaturas (blastos). Plaquetas sem alterações morfológicas.

Foi progredido a investigação com mielograma que apresentou contagem de aproximadamente 30% de plasmócitos em medula óssea, alguns atípicos com núcleos bilobados. Não havia alterações em células de linhagem eritróide.


Eritroblastos são precursores dos reticulócitos e sua presença no sangue periférico geralmente aponta para hematopoiese inefetiva, podendo refletir um estresse medular [6]. As granulações tóxicas podem ser consequência do processo infeccioso pulmonar.

A quantidade de plasmócitos na medula é chamativa. O mieloma múltiplo (MM) é uma neoplasia hematológica derivada dos plasmócitos e a presença de mais de 10% de plasmócitos clonais na medula faz parte dos critérios diagnósticos dessa doença (veja mais sobre os criterios diagnosticos de MM aqui). A anemia é um achado frequente do MM e a pneumonia pode ter ocorrido no contexto de imunossupressão pela doença.

Nem tudo fala a favor de mieloma no caso. A eletroforese de proteínas não mostrou um pico monoclonal. Hipercalcemia, lesão renal aguda e lesões ósseas são outras características típicas do MM e estão ausentes. Marcadores inespecíficos como dosagem de imunoglobulinas e proporção proteína/albumina também estão normais. Tudo isso fala contra o diagnóstico de MM.

Investigar se a população de plasmócitos da medula do paciente é formada por um único clone se proliferando ou se é policlonal é uma informação importante agora. Essa investigação é feita através da imunofenotipagem. Se for monoclonal, a hipótese de mieloma múltiplo é confirmada. Se for policlonal, é uma plasmocitose reativa, secundária a algum outro processo ainda não descoberto.

Foi realizada imunofenotipagem do aspirado de medula óssea que mostrou 18% de plasmócitos, porém sem sinais de clonalidade (provável plasmocitose reacional).

No quinto dia de internação, o paciente mantinha febre diária, evoluindo com dessaturação e necessidade de suplementação de oxigênio via cateter nasal à 2 L/min. Permanecia sem sinais de disfunção orgânica cardíaca, renal, hepática ou neurológica. As culturas do dia da internação vieram negativas e o antibiótico foi suspenso no sétimo dia.


Uma plasmocitose reativa pode ocorrer em resposta a um processo sistêmico, como doenças autoimunes ou infecciosas (particularmente HIV), ou a uma doença neoplásica hematológica (excetuando mieloma múltiplo). Na plasmocitose reativa, o achado da medula óssea não é a causa do quadro clínico, mas sim a consequência de algo.

Inicialmente, a pancitopenia era o problema guia, com a interpretação de que a pneumonia era uma consequência da imunossupressão por um problema originado na medula. Com esses achados, é preciso considerar uma outra linha de raciocínio: o mesmo processo que está acontecendo no pulmão pode ser o que está causando a supressão medular. Uma nova imagem do tórax assim como uma busca mais ativa da etiologia dos nódulos e consolidações pulmonares podem dar a resposta final do caso.

Veja o desfecho do caso

A imagem do tórax foi repetida 7 dias após a internação do paciente. O exame mostrou aumento dos micronódulos centrolobulares, agora com extensão para as bases pulmonares. Os nódulos do ápice direito aumentaram de tamanho e agora apresentavam escavação e há discreto aumento do foco de consolidação de localização subpleural na base pulmonar.

{Figura2}

Na busca de etiologia para o processo pulmonar, foram realizados exames de escarro para tuberculose (baciloscopia e teste rápido molecular) que vieram negativos.

Optado por realizar broncoscopia com coleta de lavado broncoalveolar. No lavado, a coloração de Gram não evidenciou bactérias, a citologia mostrou predomínio de macrófagos e neutrófilos. A baciloscopia, teste rápido molecular para tuberculose e pesquisa de fungos vieram negativas nessa amostra. O PCR para Paracoccidioides foi negativo, porém o PCR para Histoplasma foi positivo.

O paciente foi tratado para histoplasmose com anfotericina B por 14 dias. A febre se resolveu, assim como a necessidade de suplementação de oxigênio e pancitopenia. Paciente recebeu alta com itraconazol, no momento em acompanhamento ambulatorial.


Histoplasmose é uma infecção fúngica sistêmica causada pelo Histoplasma capsulatum. Esse fungo está presente no Brasil principalmente no sudeste, nordeste e centro-oeste. Sua ocorrência está relacionada a exposições ambientais como ecoturismo, exploração de cavernas, áreas de demolição e construção. A exposição a alguns animais também se correlaciona com a histoplasmose, principalmente morcegos e pássaros.

Também existe correlação do fungo com imunossupressão, principalmente HIV, havendo um aumento de casos após a década de 80 [7].

O foco principal do Histoplasma é o pulmão, mas tem apresentação variável. São descritas formas oligossintomáticas com resolução espontânea, até apresentações mais graves como a forma disseminada, com invasão de medula, articulações, sistema nervoso central, sistema urinário, ocular, mediastino e várias outras manifestações. É comum a doença ser confundida com tuberculose. Deve-se sempre suspeitar de histoplasmose em quadros que parecem tuberculose, porém sem detecção de micobactérias.

O diagnóstico de histoplasmose é feito principalmente através da detecção do fungo no exame micológico direto e cultura. Existem técnicas mais avançadas como PCR para o Histoplasma capsulatum e o antígeno histoplasmínico. A dosagem do anticorpo para Histoplasma possui alta sensibilidade e altos títulos se correlacionam com gravidade. Em relação a exames inespecíficos, a histoplasmose é uma das infecções que podem elevar intensamente a ferritina (como visto no paciente) e o DHL.

Os antifúngicos envolvidos no tratamento e a duração dependem da gravidade do quadro, podendo se estender por até 12 semanas.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • Diante de uma "pneumonia que não resolve" deve-se realizar 3 perguntas: o diagnóstico estava certo? O tratamento estava correto? Há complicações?
  • Pancitopenia é uma síndrome laboratorial grave e as urgências devem ser excluídas primeiro, como microangiopatia trombótica e leucemia. Analisar o esfregaço periférico à procura de esquizócitos e blastos pode ajudar.
  • O exame principal na abordagem da pancitopenia é a análise da medula através de mielograma e/ou biópsia de medula óssea. Antes desse exame, alguns exames laboratoriais podem ajudar a definir a causa de maneira não invasiva.
  • Plasmócitos em excesso na medula podem ser monoclonais, em caso de mieloma múltiplo, ou policlonais, em caso de resposta a um outro processo sistêmico (infecções, doenças autoimunes, outras neoplasias).
  • A busca do agente etiológico de uma infecção pulmonar é fundamental em casos de não resposta ao tratamento empírico.
Caso Clínico #6