Caso Clínico #6
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Um homem de 54 anos de idade apresenta febre há 20 dias. Associado a queixa, também relata cefaleia e dispneia aos moderados esforços.
O paciente procura o serviço de saúde com 2 dias de sintomas, sendo diagnosticado com pneumonia. Realizou teste para COVID e influenza, ambos negativos. Prescrito azitromicina por 10 dias, porém não apresentou melhora dos sintomas após a medicação. Permanece com quadro febril diário, principalmente noturno, associado à sudorese e calafrios.
Paciente é natural de Pernambuco e veio para São Paulo aos 18 anos. Trabalhou como motorista até os 34 anos e desde então é auxiliar de pedreiro. O paciente é etilista, utilizando 1 garrafa de destilado por dia nos últimos 20 anos, e tabagista ativo (70 maços-ano).
Escolher como abordar um caso pode influenciar bastante na chance de chegar no diagnóstico. No paciente em questão, uma das maneiras de representar o problema é colocar o quadro dentro da síndrome "pneumonia que não resolve". Dentro dessa síndrome, sempre cabem 3 perguntas:
- O diagnóstico de pneumonia estava correto?
- Estando correto o diagnóstico, o antibiótico foi apropriado?
- Sendo um antibiótico apropriado, há alguma complicação que impede a melhora, como abscessos ou empiema?
A primeira e a terceira pergunta dependem de um exame de imagem para verificar se há um infiltrado compatível com pneumonia e as complicações citadas.
A segunda pergunta é mais complexa. O paciente não possui fator de risco para germes multidroga resistentes. Contudo, a diretriz da Infectious Disease Society of America/American Thoracic Society (IDSA/ATS) orienta que pacientes com comorbidades, incluindo alcoolismo, caso recebam tratamento via oral, devem realizar dupla-terapia com beta-lactâmico mais macrolídeo ou monoterapia com quinolona respiratória (ver tabela 1) [1].
Pacientes usuários de álcool possuem maior risco de pneumonia. A principal bactéria ainda é o Streptococcus pneumoniae , com trabalhos mais antigos dando destaque também para a Klebsiella pneumoniae [2]. Essa população também possui maior risco de tuberculose [3].
O paciente não foi tratado com o esquema ideal, podendo ser um dos motivos para a não resposta. De qualquer forma, ainda é necessário um exame de imagem e exames laboratoriais que ajudem a avaliar a gravidade do quadro, para então decidir se o paciente fará outro tratamento ambulatorial ou internado.
O paciente procura o nosso serviço devido a persistência do quadro. Ao exame físico, apresentava pressão arterial 106/65 mmHg, frequência cardíaca de 96 bpm, saturação de oxigênio 98%, frequência respiratória de 18 irpm e temperatura axilar de 38,5ºC. Bom estado geral, emagrecido, hipocorado 2+/4+, sem cianose ou icterícia. Tempo de enchimento capilar de 2 segundos. Não apresentava linfonodomegalias palpáveis. Ausculta cardíaca e exame abdominal sem alterações. Ausculta respiratória apresentava apenas roncos em bases. Sem edema em membros inferiores.
Nos exames laboratoriais, apresentava hemoglobina de 9,5 g/dL, leucócitos de 510 cel/mm³ e plaquetas de 65.000 cel/mm³. Não apresentava disfunção renal ou hepática. Demais exames podem ser vistos na tabela 2.
Foi realizada uma tomografia de tórax que mostrou focos de consolidação na região apical do lobo superior direito e alguns outros no pulmão esquerdo. Notam-se ainda pequenos nódulos pulmonares mal definidos, bilaterais, alguns deles com atenuação em vidro fosco, além de nódulos centrolobulares de baixa atenuação, bilaterais. Ausência de linfonodomegalias/derrame pleural.
O exame de imagem confirma uma consolidação pulmonar e não mostra complicações. Apesar de a cobertura antibiótica inadequada poder explicar a persistência dos sintomas, a pancitopenia revelada pelos exames mostra que o quadro é mais complexo do que imaginado inicialmente.
A pancitopenia do paciente é um achado relevante e passa a ser agora o sintoma guia. Pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pancitopenia é definida como a redução das três séries de elementos figurados do sangue [4]:
- Hemoglobina menor que 13 g/dL no homem e 12 g/dL na mulher
- Neutrófilos menor que 1800 células/mm³
- Plaquetas menor que 150.000 células/mm³
Diante de uma pancitopenia, há duas urgências que precisam ser investigadas rapidamente, pois necessitam de tratamento imediato: microangiopatias trombóticas (MAT) e leucemias agudas. O esfregaço de sangue periférico ajuda nesses dois diagnósticos, já que a presença de esquizócitos sugerem MAT e a presença de blastos sugere leucemia.
Descartadas essas urgências, o segundo passo da abordagem à pancitopenia é considerar se há um efeito mielotóxico esperado, como em pacientes utilizando quimioterápicos. O paciente não está nesse contexto. O álcool é um agente mielotóxico, mas nesse cenário a mielotoxicidade por álcool deve ser tratada como um diagnóstico de exclusão.
O próximo passo é diferenciar se a pancitopenia é por redução da produção medular ou se é por destruição celular periférica, ou seja, após a produção das células. Marcadores de hemólise (reticulócitos, bilirrubina indireta, desidrogenase láctica e haptoglobina) podem ajudar a diferenciar essas duas causas, pois estão alterados nas causas periféricas [5].
Alguns exames não invasivos podem auxiliar no diagnóstico de pancitopenia, como as sorologias virais (HIV, hepatites B e C) e dosagem de vitaminas (B12 e ácido fólico principalmente). A deficiência de ácido fólico está associada ao alcoolismo, uma possível explicação para o caso. Outras causas de pancitopenia estão na tabela 3.
Se a investigação até aqui não revelar uma boa explicação para a pancitopenia, o próximo passo é considerar a realização de um mielograma (aspirado de medula) e biópsia da medula óssea. Esses dois exames são úteis quando a causa da pancitopenia não é clara e quando uma doença hematológica primária (por exemplo, leucemia mielóide aguda, anemia aplásica) é uma forte suspeita.
Considerando o quadro de pneumonia em um paciente potencialmente imunossuprimido, foi iniciado piperacilina/tazobactam e coletado culturas.
O paciente manteve-se com temperaturas febris diariamente. As sorologias vieram negativas e vitamina B12 e ácido fólico dentro da normalidade.
Solicitado um esfregaço de sangue periférico (hematoscopia) que não encontrou alteração de conformação das hemácias, porém mostrou a presença de raros eritroblastos em sangue periférico. Havia também raras células granulocíticas, com desvio até bastões e algumas células demonstrando granulações tóxicas. Ausência de hipersegmentação de neutrófilos e de formas imaturas (blastos). Plaquetas sem alterações morfológicas.
Foi progredido a investigação com mielograma que apresentou contagem de aproximadamente 30% de plasmócitos em medula óssea, alguns atípicos com núcleos bilobados. Não havia alterações em células de linhagem eritróide.
Eritroblastos são precursores dos reticulócitos e sua presença no sangue periférico geralmente aponta para hematopoiese inefetiva, podendo refletir um estresse medular [6]. As granulações tóxicas podem ser consequência do processo infeccioso pulmonar.
A quantidade de plasmócitos na medula é chamativa. O mieloma múltiplo (MM) é uma neoplasia hematológica derivada dos plasmócitos e a presença de mais de 10% de plasmócitos clonais na medula faz parte dos critérios diagnósticos dessa doença (veja mais sobre os criterios diagnosticos de MM aqui). A anemia é um achado frequente do MM e a pneumonia pode ter ocorrido no contexto de imunossupressão pela doença.
Nem tudo fala a favor de mieloma no caso. A eletroforese de proteínas não mostrou um pico monoclonal. Hipercalcemia, lesão renal aguda e lesões ósseas são outras características típicas do MM e estão ausentes. Marcadores inespecíficos como dosagem de imunoglobulinas e proporção proteína/albumina também estão normais. Tudo isso fala contra o diagnóstico de MM.
Investigar se a população de plasmócitos da medula do paciente é formada por um único clone se proliferando ou se é policlonal é uma informação importante agora. Essa investigação é feita através da imunofenotipagem. Se for monoclonal, a hipótese de mieloma múltiplo é confirmada. Se for policlonal, é uma plasmocitose reativa, secundária a algum outro processo ainda não descoberto.
Foi realizada imunofenotipagem do aspirado de medula óssea que mostrou 18% de plasmócitos, porém sem sinais de clonalidade (provável plasmocitose reacional).
No quinto dia de internação, o paciente mantinha febre diária, evoluindo com dessaturação e necessidade de suplementação de oxigênio via cateter nasal à 2 L/min. Permanecia sem sinais de disfunção orgânica cardíaca, renal, hepática ou neurológica. As culturas do dia da internação vieram negativas e o antibiótico foi suspenso no sétimo dia.
Uma plasmocitose reativa pode ocorrer em resposta a um processo sistêmico, como doenças autoimunes ou infecciosas (particularmente HIV), ou a uma doença neoplásica hematológica (excetuando mieloma múltiplo). Na plasmocitose reativa, o achado da medula óssea não é a causa do quadro clínico, mas sim a consequência de algo.
Inicialmente, a pancitopenia era o problema guia, com a interpretação de que a pneumonia era uma consequência da imunossupressão por um problema originado na medula. Com esses achados, é preciso considerar uma outra linha de raciocínio: o mesmo processo que está acontecendo no pulmão pode ser o que está causando a supressão medular. Uma nova imagem do tórax assim como uma busca mais ativa da etiologia dos nódulos e consolidações pulmonares podem dar a resposta final do caso.
A imagem do tórax foi repetida 7 dias após a internação do paciente. O exame mostrou aumento dos micronódulos centrolobulares, agora com extensão para as bases pulmonares. Os nódulos do ápice direito aumentaram de tamanho e agora apresentavam escavação e há discreto aumento do foco de consolidação de localização subpleural na base pulmonar.
Na busca de etiologia para o processo pulmonar, foram realizados exames de escarro para tuberculose (baciloscopia e teste rápido molecular) que vieram negativos.
Optado por realizar broncoscopia com coleta de lavado broncoalveolar. No lavado, a coloração de Gram não evidenciou bactérias, a citologia mostrou predomínio de macrófagos e neutrófilos. A baciloscopia, teste rápido molecular para tuberculose e pesquisa de fungos vieram negativas nessa amostra. O PCR para Paracoccidioides foi negativo, porém o PCR para Histoplasma foi positivo.
O paciente foi tratado para histoplasmose com anfotericina B por 14 dias. A febre se resolveu, assim como a necessidade de suplementação de oxigênio e pancitopenia. Paciente recebeu alta com itraconazol, no momento em acompanhamento ambulatorial.
Histoplasmose é uma infecção fúngica sistêmica causada pelo Histoplasma capsulatum. Esse fungo está presente no Brasil principalmente no sudeste, nordeste e centro-oeste. Sua ocorrência está relacionada a exposições ambientais como ecoturismo, exploração de cavernas, áreas de demolição e construção. A exposição a alguns animais também se correlaciona com a histoplasmose, principalmente morcegos e pássaros.
Também existe correlação do fungo com imunossupressão, principalmente HIV, havendo um aumento de casos após a década de 80 [7].
O foco principal do Histoplasma é o pulmão, mas tem apresentação variável. São descritas formas oligossintomáticas com resolução espontânea, até apresentações mais graves como a forma disseminada, com invasão de medula, articulações, sistema nervoso central, sistema urinário, ocular, mediastino e várias outras manifestações. É comum a doença ser confundida com tuberculose. Deve-se sempre suspeitar de histoplasmose em quadros que parecem tuberculose, porém sem detecção de micobactérias.
O diagnóstico de histoplasmose é feito principalmente através da detecção do fungo no exame micológico direto e cultura. Existem técnicas mais avançadas como PCR para o Histoplasma capsulatum e o antígeno histoplasmínico. A dosagem do anticorpo para Histoplasma possui alta sensibilidade e altos títulos se correlacionam com gravidade. Em relação a exames inespecíficos, a histoplasmose é uma das infecções que podem elevar intensamente a ferritina (como visto no paciente) e o DHL.
Os antifúngicos envolvidos no tratamento e a duração dependem da gravidade do quadro, podendo se estender por até 12 semanas.
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- Diante de uma "pneumonia que não resolve" deve-se realizar 3 perguntas: o diagnóstico estava certo? O tratamento estava correto? Há complicações?
- Pancitopenia é uma síndrome laboratorial grave e as urgências devem ser excluídas primeiro, como microangiopatia trombótica e leucemia. Analisar o esfregaço periférico à procura de esquizócitos e blastos pode ajudar.
- O exame principal na abordagem da pancitopenia é a análise da medula através de mielograma e/ou biópsia de medula óssea. Antes desse exame, alguns exames laboratoriais podem ajudar a definir a causa de maneira não invasiva.
- Plasmócitos em excesso na medula podem ser monoclonais, em caso de mieloma múltiplo, ou policlonais, em caso de resposta a um outro processo sistêmico (infecções, doenças autoimunes, outras neoplasias).
- A busca do agente etiológico de uma infecção pulmonar é fundamental em casos de não resposta ao tratamento empírico.