Caso Clínico #8

Criado em: 11 de Maio de 2023 Autor: Tiago Lima Arnaud

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Um homem de 40 anos vem ao pronto socorro por mialgia em tórax e glúteos, além de artralgia em tornozelos, vômitos 8 vezes ao dia sem produtos patológicos e sensação de febre não aferida há 1 semana. Nega queixas de dores similares no passado. Nega sintomas gripais.

Queixa-se também de alterações na pele da região peitoral há 2 anos. Informa que as lesões cutâneas vem crescendo nesse período, mas que há 1 mês estão com aspecto inflamado, com piora há 7 dias.

O paciente possui doença renal crônica (DRC) sem causa definida e com diurese preservada. Teve diagnóstico há 2 anos quando fez exames que mostraram creatinina de 2,8 mg/dL (taxa de filtração glomerular de 22 mL/min/1.73m2). Nunca precisou realizar hemodiálise. Nega outros antecedentes.

Figura 1
Exame físico
Exame físico

Ao exame físico, estava em regular estado geral, desidratado e com sinais vitais normais. Lesões nodulares em subcutâneo, endurecidas a palpação, eram visíveis na região do peitoral. Havia sinais de artrite de tornozelos, pior à esquerda (veja figura 1). Exame cardiopulmonar e abdominal normais.


Os sintomas relatados no início são inespecíficos, podendo corresponder a um quadro viral indiferenciado. Contudo, a DRC avançada e o achado dermatológico merecem atenção.

A duração da queixa dermatológica e o descobrimento da DRC têm o mesmo tempo (dois anos), o que faz pensar que ambas devem ter algo em comum. Ainda mais considerando a DRC sem causa definida em um paciente de 40 anos. A área de hipercromia com aparente espessamento cutâneo reflete um processo crônico. As nodulações que em certos pontos ulceram a pele sugerem a deposição de algum tipo de material como ácido úrico ou cálcio.

A DRC é definida pelo Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) como alteração estrutural ou perda de função renal (taxa de filtração glomerular menor que 60 ml/min por 1,73 m2), por um período maior ou igual a três meses [1].

Várias fórmulas são utilizadas para estimar a taxa de filtração glomerular (TFG). A mais utilizada atualmente é a do grupo Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI), que em 2021 foi atualizada e deixou de utilizar a variável raça em seus cálculos [2].

Nos exames de 2 anos atrás, a TFG já era de 22 ml/min, indicando DRC em estágio 4. Nesta fase, complicações decorrentes da perda de função tubular e endócrina do rim costumam aparecer, sendo as mais comuns:

  • Anemia da DRC;
  • Hipervolemia;
  • Hipercalemia;
  • Acidose metabólica;
  • Doença mineral óssea (alteração do metabolismo do cálcio e do fósforo);
  • Hipertensão Arterial;
  • Dislipidemia;
Tabela 1
Estágios da doença renal
Estágios da doença renal

Além de tratar a DRC em si e suas complicações, a identificação do motivo da DRC ajuda a lentificar a perda de função renal e prevenir outros problemas específicos da etiologia. No caso em discussão, o paciente desconhecia comorbidades que são etiologias comuns de perda de função renal, como diabetes, hipertensão, glomerulopatias, doenças autoimunes e uso de nefrotóxicos.

A DRC torna o paciente suscetível a pioras agudas da função renal aos mínimos distúrbios. Isso justifica a solicitação de exames complementares para averiguar esta possibilidade.

Tabela 2
Exames laboratoriais
Exames laboratoriais

Devido aos sinais de desidratação e o antecedente de DRC, foram solicitados exames laboratoriais no pronto-socorro. Os exames mostraram cálcio iônico de 1,77 mmol/L (valor da normalidade 1,17 a 1,30 mmol/L), creatinina de 5,0 mg/dL e ureia de 118 mg/dL. Apresentava discreta anemia normocítica e normocrômica, sem acidose na gasometria ou outros distúrbios hidroeletrolíticos. Demais exames estão na tabela 2.


O paciente tem piora da função renal, caracterizando agudização da DRC. Lesão renal aguda (LRA) pode ser definida como a diminuição recente da TFG por um processo reversível, que se identificado e corrigido pode resultar na recuperação da função. Três mecanismos de LRA são comuns: obstrução ao fluxo de urina, drogas nefrotóxicas e redução da perfusão renal. A história não é sugestiva de obstrução ou de nefrotoxicidade. Os relatos de vômitos reforçam a hipótese de hipovolemia como causadora dessa agudização.

A hipercalcemia deve ser investigada. A alteração desse eletrólito é comum no estágio de DRC que o paciente apresenta. Tanto hipercalcemia quanto hipocalcemia podem resultar em perda de função renal quando não tratadas. Vômitos e desidratação são manifestações possíveis de hipercalcemia.

Tabela 3
Sinais e sintomas de hipercalcemia
Sinais e sintomas de hipercalcemia

O primeiro passo na suspeita de hipercalcemia é certificar a ocorrência do distúrbio com uma nova dosagem. Os laboratórios costumam dosar o cálcio iônico e cálcio total. O cálcio total deve ser corrigido para os níveis de albumina, uma vez que 40-45% desse eletrólito se liga à albumina no sangue. Dessa forma, alterações na concentração da albumina podem alterar também os valores de cálcio. O cálcio real é calculado segundo a fórmula:

Cálcio real = cálcio total dosado + 0,8 x (4 - albumina do paciente)

Esse paciente precisará de expansão volêmica devido à desidratação e agudização da disfunção renal. O volume também ajuda a reduzir os níveis de cálcio se a hipercalcemia for confirmada.

Um eletrocardiograma é necessário. A hipercalcemia pode causar distúrbios na eletrofisiologia cardíaca, em especial encurtamento do intervalo QT.

Se confirmada a hipercalcemia, o próximo passo é dosar o PTH.

O laboratório repetiu e confirmou o valor de cálcio. Foi realizado eletrocardiograma que apresentava ritmo sinusal com frequência de 84 bpm, sem alterações do QRS ou de onda T. O intervalo QTc era de 375 ms.

O cálcio total era de 12,4 mg/dL (albumina de 3,5 g/dL e cálcio corrigido de 12,8 mg/dL).

O paciente foi internado para tratamento e investigação da hipercalcemia e da causa da agudização da DRC. Iniciada solução cristalóide na vazão de 200 ml/h com monitorização da diurese e atenção rigorosa para sinais de congestão. Dosado PTH, com valor de 13,2 pg/mL (valor da normalidade 15 - 65 pg/mL).


A nova dosagem do cálcio confirmou a hipercalcemia. Agora, deve ser iniciada a investigação de sua etiologia. As causas de hipercalcemia podem ser divididas em PTH dependentes e não PTH dependentes. A resposta esperada durante a hipercalcemia é de supressão do PTH. Níveis de PTH altos, ou na metade superior do intervalo de normalidade, são considerados inapropriados no contexto de elevação dos níveis de cálcio.

A dosagem do PTH do paciente em 13,2 pg/mL excluiu o hiperparatireoidismo primário, já que valores menores que 20 pg/mL praticamente invalidam esse diagnóstico. Além de hiperparatireoidismo, outra causa de hipercalcemia com níveis inapropriadamente normais de PTH é a hipercalcemia hipocalciúrica familiar (HHF).

Como visto no fluxograma 1, os três exames iniciais que podem auxiliar em uma hipercalcemia com PTH baixo são: PTHrp (peptídeo relacionado ao PTH), vitamina D na forma ativa (1,25-dihidroxivitamina D) e vitamina D na forma inativa (25-hidroxivitamina D).

A hipercalcemia da malignidade é a segunda causa mais frequente de hipercalcemia, atrás apenas do hiperparatireoidismo primário. Normalmente o paciente já tem um câncer aparente e avançado quando surge essa complicação. Mesmo quando há uma neoplasia evidente, o PTH deve ser dosado, pois os pacientes com câncer também podem ter hiperparatireoidismo primário.

A produção de PTHrp pelo câncer é o mecanismo mais comum de hipercalcemia da malignidade. Quando ocorre hipercalcemia em um paciente com neoplasia muito clara e com níveis de PTH e 25-hidroxivitamina D suprimidos, a dosagem de PTHrp não é necessária. Se hipercalcemia da malignidade é uma suspeita e não há uma neoplasia clinicamente aparente, pode-se dosar o PTHrp para confirmar essa etiologia. Em um caso de hipercalcemia não PTH dependente e não relacionada a malignidade, os exames do metabolismo da vitamina D são a próxima etapa. Caso a vitamina D inativa esteja elevada, a principal hipótese é intoxicação exógena com vitamina D. Contudo, se a vitamina D inativa estiver reduzida/normal e a forma ativa estiver elevada, as possibilidades são: intoxicação com a forma ativa (comprimido de calcitriol) ou transformação da forma inativa para ativa (processos granulomatosos ou linfoma). Se ambas estiverem reduzidas, deve-se seguir o fluxograma 1.

Fluxograma 1
Abordagem diagnóstica da hipercalcemia
Abordagem diagnóstica da hipercalcemia

Além da hidratação, existem outras ferramentas que auxiliam no controle dos níveis de cálcio. Bifosfonatos, denosumabe, calcitonina, corticoides e diálise podem ser utilizados. Os bisfosfonatos pamidronato e ácido zoledrônico devem ter a dose ajustada à função renal, sendo contraindicados quando o ClCr está menor que 30 e 35 ml/min, respectivamente (ver mais em no tópico sobre Tratamento da Hipercalemia da Malignidade).

A dosagem de 25-OH-vitamina D resultou em 13,4 ng/mL (VR > 30 ng/mL). 1,25-dihidroxivitamina D apresentou valor de 103 pg/mL (VR 18-72 pg/mL). O PTHrp não estava disponível no serviço.

Considerando a artrite de tornozelos e mialgia, no contexto de incerteza diagnóstica, foi solicitado FAN (não reagente) e Fator reumatoide (positivo).

Realizada tomografia de tórax, abdome e pescoço que chamou atenção pelas calcificações grosseiras em subcutâneo em todo o corpo, piores em tórax, assim como extensa deposição em ambos os rins. Não foram identificados linfonodos com realce de contraste ao método. Também não foram observadas massas ou nódulos em órgãos sólidos.

Figura 2
Tomografia de tórax, abdome e pelve
Tomografia de tórax, abdome e pelve

Após avaliação inicial do laboratório e considerando o quadro clínico, foi questionado ao paciente se ele já havia realizado algum procedimento estético. Ele afirmou que há 13 anos praticava musculação como esporte e fez uso de diversos anabolizantes derivados de testosterona. Fez uso também da forma inativa de vitamina D de uso veterinário injetável (ADE) em altas doses por ser um composto mineral que auxiliaria na moldagem dos músculos para as competições.

Também referiu que fez aplicações semanais de vaselina/silicone injetável por 3 anos enquanto competia. Relata que nunca teve efeitos adversos até 2 anos atrás quando começou a ter perda da função renal e ter declínio da massa muscular.


Estamos diante de uma hipercalcemia não PTH-dependente e com elevação isolada da forma ativa de vitamina D. O paciente não possui histórico de intoxicação da forma ativa da Vitamina D. Nas tomografias realizadas não foram evidenciadas linfonodomegalias que sugerissem a hipótese de linfoma ou de neoplasia sólida. A injeção parenteral de vitamina D não é causa direta da hipercalcemia já que o valor da forma inativa está baixo. A principal hipótese que se mantém é a hipercalcemia devido a processo granulomatoso.

Sarcoidose e tuberculose também são formadoras de granulomas e podem causar hipercalcemia pelo mecanismo de transformação da vitamina D de sua forma inativa para ativa. A sarcoidose é uma doença inflamatória, que frequentemente se associa com artralgia/artrite, febre, lesões de pele de caráter inflamatório e hipercalcemia/hipercalciúria levando a nefrocalcinose. Apesar de não ser necessário para o diagnóstico, o envolvimento pulmonar da sarcoidose é algo muito comum e não está presente no caso.

A imagem de tomografia chama atenção para a extensa calcificação nos planos subcutâneos e em grupamentos musculares específicos, não caracterizando um processo generalizado, mas restrito de calcinose cutânea. As diversas substâncias utilizadas pelo paciente devem ser responsáveis pelas alterações estruturais encontradas no exame físico e pelo aumento dos níveis de cálcio. O uso de derivados da testosterona também pode levar a hipercalcemia, mas o paciente refere o último uso há muitos anos.

A aplicação de vaselina/silicone é relevante, pois o paciente apresenta calcificação nos mesmos lugares de aplicação. No contexto do paciente, cresce a suspeita de granulomas decorrentes da tentativa de lidar com essas substâncias exógenas.

Tabela 4
Critérios diagnósticos da Síndrome ASIA
Critérios diagnósticos da Síndrome ASIA

Febre, mialgia, artrite e fator reumatóide positivo não são explicados pela hipercalcemia. Considerando os dados clínicos reunidos, uma hipótese possível é de síndrome autoimune/inflamatória induzida por adjuvantes (síndrome ASIA) [3]. A síndrome ASIA é caracterizada por diversas manifestações que acredita-se serem secundárias a administração de substâncias que funcionam como adjuvantes imunológicos (ex.: silicone e alumínio). Alguns critérios podem ajudar na sua identificação (ver tabela 4).

Veja o desfecho do caso

Uma reação granulomatosa secundária à injeção de substâncias foi considerada a hipótese mais provável, levando em conta o perfil laboratorial e a ausência de explicações alternativas. Foi iniciada corticoterapia com prednisona 40 mg/dia.

Após 10 dias do início do corticoide, os níveis de cálcio reduziram gradativamente e a função renal teve discreta melhora. A creatinina estabilizou em 3,66 mg/dL e o paciente permaneceu no estágio IV da DRC.

A artrite e mialgia também melhoraram com a corticoterapia. Essas manifestações foram atribuídas à síndrome ASIA.

O corticoide foi desmamado até 20 mg sem que houvesse novos aumentos do cálcio e o paciente recebeu alta hospitalar mantendo seguimento com nefrologia e endocrinologia.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • A doença renal crônica (DRC) é definida como alteração estrutural ou perda de função renal (TFG < 60 ml/min) por um período maior ou igual a três meses. A fórmula preconizada para cálculo da TFG é a CKD-EPI.
  • A causa da DRC deve ser sempre procurada e tratada. Diabetes, hipertensão, glomerulopatias e doença renal policística são causas comuns de DRC.
  • A causa mais comum de hipercalcemia é o hiperparatireoidismo primário. A hipercalcemia da malignidade é a segunda causa mais comum de hipercalcemia e costuma ser sintomática e aguda. O fluxograma de investigação é uma forma prática de se chegar ao diagnóstico.
  • O tratamento da hipercalcemia é baseado na hidratação vigorosa com objetivo de débito urinário de 2 ml/kg/h. O uso dos bisfosfonatos é de grande ajuda, mas deve ser ajustado para a função renal. Corticoide é a escolha na hipercalcemia por processos granulomatosos.
  • Uma série de relatos recentes têm descrito manifestações relacionadas à injeção de adjuvantes. Alguns pesquisadores enquadraram essas condições dentro da síndrome ASIA. Em casos sem etiologia clara ou com alguma pista clínica, deve-se investigar procedimentos estéticos e os materiais usados.

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