Anticoagulação no Perioperatório

Criado em: 15 de Maio de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

O manejo de anticoagulantes no perioperatório gera muitas dúvidas. Em abril de 2023, o American College of Physicians publicou uma revisão sobre o tema [1]. Vamos aproveitar para revisitar algumas recomendações importantes.

Entendendo o contexto

Os anticoagulantes orais diretos (DOAC), que incluem um inibidor direto de trombina (dabigatrana) e inibidores de fator Xa (rivaroxabana, apixabana e edoxabana), são cada vez mais comuns. Contudo, os antagonistas da vitamina K (AVK), mais comumente a varfarina, continuam a ser o anticoagulante mais prevalente nos Estados Unidos [2, 3].

Fluxograma 1
Etapas na avaliação de anticoagulação perioperatória
Etapas na avaliação de anticoagulação perioperatória

As etapas-chave na avaliação da anticoagulação perioperatória estão disponíveis na figura 1.

Avaliação do risco de sangramento do procedimento

O primeiro passo é definir o risco de sangramento do procedimento (ver tabela 1). Não há necessidade de suspensão do anticoagulante em procedimentos com mínimo risco de sangramento. Exemplos de procedimentos dessa categoria são endoscopia ou colonoscopia sem biópsia.

Tabela 1
Risco de sangramento associado ao procedimento segundo Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Europeia de Cardiologia e American College of Physicians
Risco de sangramento associado ao procedimento segundo Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Europeia de Cardiologia e American College of Physicians

Os procedimentos de baixo a moderado risco e os de alto risco necessitam de suspensão da anticoagulação. Baixo a moderado risco de sangramento é definido como risco de sangramento maior de até 2% em 30 dias. Exemplos dessa categoria são cirurgias intra-abdominais. Alto risco é definido como risco maior que 2%, como cirurgias vasculares.

Avaliação do risco de tromboembolismo do paciente

O segundo passo é definir o risco de tromboembolismo no paciente que necessita suspender a anticoagulação.

Com a intenção de reduzir o risco de um evento tromboembólico durante a suspensão da anticoagulação, desenvolveu-se a estratégia de ponte de anticoagulação. A ponte de anticoagulação é o uso de anticoagulantes de curta ação, em geral heparina não fracionada (HNF) ou heparina de baixo peso molecular (HBPM), durante a suspensão da anticoagulação oral com AVK. A ponte pode ser iniciada antes e/ou após o procedimento. A ideia é que ao minimizar o tempo que o paciente fica sem anticoagulação o risco de um evento tromboembólico diminua.

Apesar de fazer sentido teórico, a maior parte dos estudos não é favorável à ponte. As evidências sugerem que a ponte de anticoagulação está associada com aumento do risco de sangramento sem redução significativa de TEV, exceto no grupo de alto risco para TEV [4].

Tabela 2
Estratificação de risco de tromboembolismo arterial associado a valva mecânica
Estratificação de risco de tromboembolismo arterial associado a valva mecânica

Em pacientes com valva mecânica, o risco de tromboembolismo arterial depende de três fatores: tipo, posição e tempo de implante da valva (ver tabela 2). A diretriz de 2022 da CHEST sugere a ponte de anticoagulação somente nos seguintes pacientes, considerados de alto risco de tromboembolismo [5]:

  • Valva de geração mais antiga
  • Valva em posição mitral e ≥ 1 fator de risco
  • Evento tromboembólico recente (menor que três meses)
  • Tromboembolismo perioperatório prévio.

A presença de fibrilação atrial (FA) aumenta o risco de AVC tromboembólico e esse risco pode ser estimado pelo escore CHA2DS2-VASc. Baseado nesse escore, o consenso da American College of Cardiology de 2017 sugere as seguintes condutas [6]:

  • CHA2DS2-VASc ≥ 7 (risco anual estimado de tromboembolismo arterial maior que 10%): devem ser considerados de alto risco para trombose durante a interrupção da anticoagulação perioperatória. A ponte de anticoagulação deve ser considerada.
  • CHA2DS2-VASc de 4 a 6 (risco anual estimado de tromboembolismo arterial entre 5% e 10%): são considerados como risco moderado. A indicação de ponte deve ser individualizada.
  • CHA2DS2-VASc ≤ 3 (risco anual estimado de tromboembolismo arterial menor que 5%): são considerados de baixo risco e não devem receber ponte.
Tabela 3
Estratificação de risco para tromboembolismo venoso (TEV) recorrente
Estratificação de risco para tromboembolismo venoso (TEV) recorrente

Nos pacientes com tromboembolismo venoso (TEV) recorrente, a estratificação de risco considera o intervalo de tempo do último evento, fatores de risco para o evento inicial e a presença de condições protrombóticas (veja a tabela 3). A diretriz da CHEST e a American Society of Hematology (ASH) sugerem que a ponte seja considerada apenas para os pacientes que têm alto risco para TEV recorrente [5, 7].

Tabela 4
Estratificação de risco e recomendação de ponte de anticoagulação para tromboembolismo venoso e arterial perioperatório
Estratificação de risco e recomendação de ponte de anticoagulação para tromboembolismo venoso e arterial perioperatório

O resumo das recomendações estão disponíveis na tabela 4.

Como fazer a ponte de anticoagulação?

Quando a ponte de anticoagulação está indicada, a medicação de primeira escolha é a HBPM. A dose recomendada de enoxaparina é 1mg/kg a cada 12 horas ou dalteparina 100U/Kg a cada 12 horas. A dose deve ser ajustada para a taxa de filtração glomerular (TFG) e a dosagem de rotina de anti-Xa não é recomendada [8].

Em pacientes com TFG ≥ 50 mL/min, deve-se suspender a varfarina 5 dias antes do procedimento e dosar o INR. Quando o INR estiver entre 2 e 3, introduz-se a HBPM. A HBPM então é suspensa 24 horas antes do procedimento. A HBPM é reiniciada em associação com a varfarina após o procedimento e a HBPM deve ser mantida até o INR atingir o alvo terapêutico (veja tabela 5).

Tabela 5
Recomendação de manejo perioperatório de antagonista de vitamina K (AVK)
Recomendação de manejo perioperatório de antagonista de vitamina K (AVK)

Em pacientes com TFG < 30 mL/min, a HNF subcutânea ou endovenosa pode ser utilizada. O uso de HNF é associado a aumento em três vezes do risco de trombocitopenia associada à heparina (HIT) e também aumento da mortalidade.

O que fazer com os DOACs?

Tabela 6
Recomendação de manejo perioperatório de anticoagulantes orais diretos (DOACs)
Recomendação de manejo perioperatório de anticoagulantes orais diretos (DOACs)

O tempo de interrupção dos DOACs é baseado na estimativa do risco de sangramento, na própria medicação e na função renal. Confira na tabela 6 as orientações.

Aproveite e leia:

14 de Outubro de 2024

Ácido Acetilsalicílico (AAS) no Perioperatório

O artigo ASSURE-DES, publicado no Journal of the American College of Cardiology (JACC) em agosto de 2024, avaliou a suspensão ou manutenção do ácido acetilsalicílico como prevenção secundária no perioperatório. Este tópico aborda o ácido acetilsalicílico no perioperatório e os resultados do estudo.

11 de Dezembro de 2023

Meningite Tuberculosa

A minoria dos pacientes com tuberculose tem manifestações no sistema nervoso central (SNC), porém essa apresentação tem mortalidade elevada e incide em uma população vulnerável. Em outubro de 2023, foi publicado no New England Journal of Medicine um estudo avaliando a dexametasona na meningite tuberculosa em pessoas com HIV. Esse tópico revisa o tema e traz os resultados do estudo.

26 de Junho de 2023

Reações Transfusionais

Variando de autolimitadas até ameaçadoras à vida, as reações transfusionais são comuns na prática hospitalar. Essa revisão aborda as principais reações e a conduta diante delas. Uma referência nacional para o tema é o "Guia para uso de Hemocomponentes" do Ministério da Saúde.

21 min
Ler Tópico
7 de Novembro de 2022

Piúria, Bacteriúria e Delirium

O diagnóstico de infecção do trato urinário (ITU) pode ser feito sem o exame de urina se os sintomas forem clássicos. Contudo, se os sintomas forem atípicos ou naqueles com dificuldade em demonstrar seus sintomas, existe dúvida sobre o papel dos exames de urina. Nesse contexto, trouxemos um estudo publicado em setembro de 2022 no American Journal of Medicine sobre a correlação entre piúria e bacteriúria.

3 de Abril de 2023

Lesão Renal Aguda no Paciente com Cirrose

Cirrose é uma condição grave e com muitas complicações próprias do quadro. A ocorrência de lesão renal aguda (LRA) nesses pacientes tem particularidades que tornam o manejo minucioso. O New England Journal of Medicine (NEJM) trouxe uma revisão sobre o tema em 2023 e aproveitamos para revisar também aqui neste tópico.

10 min
Ler Tópico