Quando Iniciar Anticoagulação de Fibrilação Atrial Após AVC?
Nos pacientes com fibrilação atrial, os anticoagulantes são a principal medida para prevenir eventos embólicos. O momento ideal de início da anticoagulação após um AVC nestes pacientes não é claro. Em junho de 2023 um estudo publicado no New England Journal of Medicine buscou responder este questionamento [1]. Este tópico revisa o tema e traz os resultados do trabalho.
Investigação da causa do AVC
As causas de um acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi) podem ser agrupadas da seguinte maneira [2]:
- Aterosclerose de grandes vasos: lesões isquêmicas em território vascular de artéria intra ou extracraniana que esteja ocluída ou possua estenose superior a 50% de seu lúmen. Devem ser excluídas causas cardioembólicas.
- Cardioembólico: lesões secundárias a embolias - de origem cardíaca, em sua maioria. Podem ocorrer em mais de um território cerebral.
- Doença de pequenos vasos (lacunar): lesões isquêmicas menores de 1,5 cm em exames de imagem (tomografia, ressonância magnética).
- Outras causas: causas mais raras de AVC que podem ser diagnosticadas com investigação direcionada para a suspeita. Vasculites e doenças hematológicas são exemplos dessa categoria.
- Criptogênico (ou sem causa determinada): lesão compatível com AVCi, sem causa definida após investigação adequada ou com mais de um mecanismo identificado.
A causa do AVC deve ser investigada em todos os pacientes. São avaliadas quatro características: perviedade dos vasos; ritmo cardíaco; presença de doença estrutural cardíaca; exames laboratoriais. Em alguns casos, mais de um mecanismo é identificado. A calculadora do Causative Classification System (CCS) for Ischemic Stroke pode auxiliar na tomada de decisão neste cenário.
Estudo de vasos
Investigação de estenoses e alterações estruturais dos vasos. Os exames mais utilizados são a angiotomografia arterial de vasos cervicais e intracranianos e o Doppler de carótidas.
As principais condições associadas a AVC detectadas por essa etapa são a aterosclerose (de aorta, vasos cervicais e intracranianos) e a dissecção de vasos cervicais (figura 1).
Outra alteração diagnosticada pelo estudo de vasos é a membrana carotídea (carotid web). Essa condição é considerada uma variação intimal da displasia fibromuscular. É identificada como uma pequena invaginação localizada na camada íntima da parede posterior da carótida interna, logo após o bulbo carotídeo (figura 2).
Estudo de ritmo
Todo paciente em atendimento agudo de AVC deve ter um eletrocardiograma. Podem ser detectadas alterações de ritmo, sobrecargas e presença de bloqueios cardíacos (de ramos ou atrioventriculares). Também é recomendado um estudo de ritmo (Holter) de ao menos 24 horas para detecção de fibrilação atrial ou outras arritmias paroxísticas em pacientes sem mecanismo identificado em investigação inicial.
Investigação estrutural cardíaca
O ecocardiograma transtorácico é o exame inicial para buscar disfunções sistólicas, trombos cavitários e sinais indiretos de instabilidade de ritmo (como volume atrial aumentado). Comunicações intercavitárias, como o forame oval patente (FOP), também podem ser identificadas pelo exame. Mais detalhes sobre diagnóstico e manejo de pacientes com FOP foram discutidos no episódio 185: foram oval patente.
Exames laboratoriais
Hemograma, glicemia, hemoglobina glicada, perfil lipídico, coagulograma e função renal devem ser solicitados para a documentação de fatores de risco.
Como manejar a anticoagulação após AVC por FA?
A anticoagulação é a base da prevenção do AVCi nos pacientes com fibrilação atrial (FA). Após um evento agudo, existe o risco de transformação hemorrágica do AVC (sangramento na área isquêmica). O melhor momento de iniciar um anticoagulante em pacientes com FA deve equilibrar o risco desta complicação com a possibilidade de recorrência do AVCi.
As recomendações atuais sobre o assunto são conflitantes. As principais diretrizes estão listadas abaixo, e trazem orientações divergentes:
- American Heart Association e American Stroke Association, 2019 [3]: sugerem ser razoável iniciar anticoagulação entre 4 e 14 dias após o evento.
- European Society of Cardiology, 2020 [4]: Recomenda iniciar anticoagulação “o mais breve possível” de acordo com risco neurológico.
- European Heart Rhythm Association, 2021 [5]: o início da anticoagulação depende da gravidade do AVC, como mostra o fluxograma 1.
Algumas sociedades, como a Organização Europeia de AVC (ESO), não realizam recomendações sobre o tema [6].
O fluxograma 1 apresenta uma sugestão de manejo da anticoagulação em pacientes com FA após AVCi.
O que o estudo acrescenta?
O ELAN foi um estudo multicêntrico, randomizado, que comparou estratégias de anticoagulação precoce ou tardia com anticoagulantes orais diretos (DOAC) em pacientes com AVCi e FA não valvar [1].
O desfecho primário avaliado foi composto de eventos trombóticos (recorrência de AVC e embolia sistêmica) e hemorrágicos (sangramento intracraniano sintomático, sangramento sistêmico maior e morte por causa vascular em 30 dias). O estudo não foi desenhado para análise de superioridade ou não inferioridade, mas sim para fornecer estimativas e análises de segurança e eficácia.
O momento para início da anticoagulação dependia da classificação do AVC, conforme descrito na tabela 1. A escolha por uma classificação de acordo com o acometimento radiológico é um ponto forte do estudo, uma vez que outras escalas de classificação podem ser menos acuradas. A National Institutes of Health Stroke Scale (NIHSS), por exemplo, depende de sintomas que são influenciados pela localização e lateralidade da lesão. As definições utilizadas no estudo estão detalhadas na tabela 2.
Foram randomizados cerca de dois mil pacientes, com mediana de idade de 77 anos e mediana do escore CHA2DS2-VASc de cinco pontos. A escala de NIHSS mediana à admissão foi de 5, indicando que foram selecionados pacientes com menor acometimento cerebral.
O desfecho primário após trinta dias não diferiu estatisticamente entre os grupos, ocorrendo em 2,9% dos pacientes no grupo precoce e 4,1% no grupo tardio (odds ratio de 0,7 com intervalo de confiança 95% de 0,44 a 1,14). A incidência de sangramento intracraniano sintomático foi igual nos dois grupos (0,2%). Um novo AVCi em 90 dias ocorreu em 1,9% dos pacientes do grupo precoce e 3,1% do grupo tardio.
Apesar de não ser desenhado para demonstrar superioridade ou não inferioridade, o estudo reforça a segurança da anticoagulação precoce após um AVCi nos pacientes com fibrilação atrial.
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