Diretriz de Doença Coronariana Crônica da AHA 2023

Criado em: 30 de Outubro de 2023 Autor: Marcela Belleza

A doença coronariana crônica (DCC) tem um amplo espectro de manifestações. Em agosto de 2023 a American Heart Association (AHA) publicou uma diretriz com orientações sobre o manejo da DCC [1]. Esta revisão traz as principais recomendações do documento.

Definição e Diagnóstico

As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no Brasil e no mundo [2]. Mais de 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos possuem o diagnóstico de DCC.

Além do paciente clássico com angina estável, a definição de doença coronariana crônica (DCC) abrange diferentes perfis:

  • Obstrução coronariana, incluindo pacientes no acompanhamento pós infarto ou pós revascularização do miocárdio
  • Doença miocárdica isquêmica oligo ou assintomática, com diagnóstico feito em testes não invasivos
  • Angina estável por outras causas, como vasoespasmo ou isquemia na ausência de lesões coronarianas macroscópicas obstrutivas.

A partir da suspeita clínica de DCC, devem ser afastadas situações de instabilidade. Existem três cenários que indicam avaliação emergencial na suspeita de dor torácica anginosa [3]:

  • Dor em repouso por mais de 20 minutos
  • Dor anginosa desencadeada por esforço moderado iniciada há menos de dois meses
  • Piora de angina pré-existente (angina em crescendo)

Confirmar o diagnóstico de DCC pode explicar sintomas, determinar tratamento e prevenir desfechos negativos, como novos eventos cardiovasculares e mortalidade. A abordagem de dor torácica no ambulatório foi revisada no episódio episódio 136: dor torácica no ambulatório.

Avaliação de risco

Todo paciente com DCC deve ter o risco de eventos cardiovasculares estimado. Essa avaliação deve considerar informações demográficas, sociais e clínicas. A diretriz recomenda que a estratificação pode ser feita com escores, porém não indica um específico.

A extensão e gravidade da doença coronariana podem ser investigadas com testes de estresse ou anatômicos (tabela 1). A angiotomografia tem papel de destaque, pois o exame negativo confere baixo risco de eventos cardiovasculares. O uso da angiotomografia foi discutido no tópico Avaliação de Dor Torácica Estável com Angiotomografia.

Tabela 1
Principais exames para avaliação de doença coronariana crônica
Principais exames para avaliação de doença coronariana crônica

A avaliação da função ventricular esquerda também tem correlação com prognóstico cardiovascular. Biomarcadores como troponina e peptídeo natriurético (BNP) elevados podem ser usados como indicadores de pior prognóstico, mesmo no paciente estável e ambulatorial.

Em pacientes com DCC estabelecida que apresentam uma nova redução de função do ventrículo esquerdo (VE) ou insuficiência cardíaca (IC), deve ser realizado cateterismo de coronárias para avaliação da anatomia vascular e necessidade de mudança da estratégia terapêutica.

Tratamento - Considerações gerais

O tratamento da DCC tem três principais objetivos:

  • Reduzir a mortalidade cardiovascular
  • Reduzir progressão da aterosclerose e eventos cardiovasculares não fatais
  • Melhorar sintomas e limitações funcionais

O manejo da DCC deve ser compartilhado com uma equipe multidisciplinar. O paciente deve receber todas as informações necessárias para otimizar a adesão à terapia e participar da tomada de decisão.

Medidas não farmacológicas são recomendadas a todos os pacientes com DCC. Avaliação nutricional e engajamento em atividade física são fortemente recomendados pela diretriz. Sugere-se avaliação da saúde mental dos pacientes com DCC. Não há benefícios de suplementos dietéticos como ômega 3, cálcio ou vitaminas.

Tratamento de fatores de risco

Os fatores perpetuadores de DCC devem ser abordados em todos os pacientes. Entre esses fatores, cinco merecem atenção especial:

  • Tabagismo
  • Dislipidemia
  • Hipertensão arterial sistêmica
  • Diabetes mellitus
  • Obesidade

As medidas não farmacológicas devem ser reforçadas para manejo dessas condições. Estratégias específicas estão resumidas a seguir.

Tabagismo

A exposição ao tabaco é a principal causa de mortalidade cardiovascular em pessoas com DCC. Todos os pacientes que fumam devem receber orientação para cessar o hábito.

Terapias farmacológicas e comportamentais devem ser ofertadas conforme a indicação clínica. Vareniclina parece ter superioridade no tratamento farmacológico da cessação do tabagismo. O tratamento farmacológico de tabagismo foi revisado episódio 205: cessação do tabagismo.

Dislipidemia

A redução de níveis de LDL diminui o risco de eventos cardiovasculares. O alvo é a queda em mais de 50% na presença de DCC. Nas situações em que o LDL inicial é desconhecido, um alvo abaixo de 70 mg/dl pode ser viável.

A primeira opção para tratamento farmacológico é com estatinas em alta potência - atorvastatina 40 mg ou rosuvastatina 20 mg. Estatinas em menor potência podem ser tentadas em caso de contraindicação ou intolerância.

Ezetimibe pode ser associado à estatina caso o alvo de LDL não seja atingido (veja mais no tópico Ezetimibe e Dislipidemia). Caso o alvo não seja atingido com uso de estatina e ezetimibe, um inibidor de PCSK9 pode ter benefício. As recomendações de uso de inclisiran e ácido bempedoico ainda são fracas (veja mais no tópico Acido Bempedóico para Dislipidemia).

Hipertensão

O alvo de pressão arterial (PA) deve ser inferior a 130/80 mmHg. Pacientes com PA elevada (sistólica de 120 a 129 E diastólica < 80 mmHg) podem ser manejados com medidas não farmacológicas.

Em casos de PA sistólica ≥ 130 mmHg e/ou PA diastólica ≥ 80 mmHg, há indicação de terapia farmacológica. Os inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (inibidores da enzima de conversão de angiotensina - iECA - ou bloqueadores dos receptores de angiotensina - BRA), são a primeira escolha por reduzirem a mortalidade nos pacientes com DCC. Betabloqueadores (BB) possuem propriedades antianginosas e podem ser a primeira opção em pacientes sintomáticos.

Outras classes podem ser combinadas conforme necessidade de atingir o alvo pressórico.

Metabolismo glicêmico

Os inibidores da SGLT2 (gliflozinas) e agonistas de GLP-1 reduzem eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes tipo 2 (DM2) e DCC. O alvo de hemoglobina glicada nos pacientes com DM2 é de 7%. Uma meta de hemoglobina glicada maior que 7% é uma opção em pacientes com maior risco de hipoglicemia, como idosos e pessoas com fragilidade.

Na presença de IC com FE reduzida (≤ 40%), os iSGLT2 estão indicados mesmo em pacientes que não possuem alteração do metabolismo glicêmico, com benefício de mortalidade. Essas medicações também podem ser introduzidas nos pacientes com IC e FE > 40%, porém com benefício maior em redução de hospitalizações.

Controle de peso

Todos os pacientes com DCC devem ter o índice de massa corporal aferido e registrado para diagnóstico de sobrepeso ou obesidade. Aconselhamentos sobre dieta, atividade física e metas de perda de peso devem ser individualizadas e realizadas por uma equipe multidisciplinar. O tratamento farmacológico da obesidade foi abordado no episódio 112: obesidade - tratamento medicamentoso. A diretriz se posiciona contra o uso de simpatomiméticos em pacientes com DCC.

Prevenção de eventos cardiovasculares e controle de sintomas

Antiagregação e anticoagulação

A decisão quanto à antiagregação no paciente com DCC depende de fatores como: histórico de angioplastia, necessidade de anticoagulação por outras causas e risco de sangramento. A figura 1 resume as indicações.

Figura 1
Tempo de anticoagulação e antiagregação na doença coronariana crônica
Tempo de anticoagulação e antiagregação na doença coronariana crônica

A angioplastia interfere na antiagregação e pode ser indicada por infarto ou por outro motivo, como DCC com angina refratária ao tratamento clínico. Pacientes no pós-infarto agudo do miocárdio devem receber dupla antiagregação plaquetária (DAPT) por 12 meses a princípio. A discussão abaixo considera pacientes com DCC fora do contexto pós-infarto.

Pacientes sem indicação de anticoagulação e na ausência de angioplastia prévia devem receber antiagregação plaquetária com aspirina em baixa dose (75 a 100 mg ao dia). Clopidogrel é uma alternativa para pacientes com contraindicação a aspirina. Veja mais no tópico Aspirina para Prevenção de Eventos Cardiovasculares.

Pacientes sem necessidade de anticoagulação que são submetidos a angioplastia têm indicação de dupla antiagregação (aspirina e clopidogrel) por seis meses. Após esse período, deve ser mantido apenas um antiagregante.

Pacientes com indicação de anticoagulação submetidos a angioplastia têm indicação de dupla antiagregação (aspirina e clopidogrel) por uma a quatro semanas. Após esse período, a aspirina é suspensa e o clopidogrel é mantido junto à anticoagulação por seis meses após a angioplastia [4]. Ao fim dos seis meses, a anticoagulação é mantida isoladamente. Anticoagulantes diretos são a preferência, na ausência de contraindicações.

Em pacientes com indicação de anticoagulação que não necessitam de angioplastia, não há recomendação de associar antiagregantes. Essa recomendação é mais fraca que as demais. A preferência deve ser pelos anticoagulantes orais diretos (DOAC).

Betabloqueadores (BB)

BB estão associados a redução de mortalidade cardiovascular em populações específicas. Essa classe também auxilia no controle de PA e de sintomas em pacientes com angina.

A diretriz recomenda fortemente o uso de BB em pacientes com fração de ejeção menor que 50%. Os BB recomendados são succinato de metoprolol, carvedilol e bisoprolol.

O documento orienta que a dose alvo dos BB seja individualizada. A diretriz da European Society of Cardiology recomenda a dose máxima tolerada, mantendo-se frequência cardíaca entre 55 a 70 bpm em repouso [3].

Inibição do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona

A inibição do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) com uso de iECA ou BRA está indicada em pacientes com:

  • DM2
  • IC com FE ≤40%
  • Doença renal crônica
  • Hipertensão

Nessas populações, a inibição do SRAA reduz eventos cardiovasculares, sintomas na DCC e hospitalização, além de controlar a pressão arterial. Recomenda-se reavaliação quanto aos efeitos colaterais como hipotensão ortostática, tosse e angioedema.

Outras recomendações

Algumas infecções virais aumentam o risco de eventos cardiovasculares e mortalidade geral. As vacinas para influenza e COVID19 são fortemente recomendadas para pacientes com DCC. Vacinação contra pneumococo também deve ser considerada.

A colchicina pode ser considerada para redução de recorrência de eventos cardiovasculares (recomendação nível 2b, fraca). Os estudos LoDoCo2 e COLCOT encontraram redução de eventos cardiovasculares em população de muito alto risco [5, 6]. No LoDoCo2, houve tendência a aumento da mortalidade geral entre os pacientes em uso de colchicina. A droga tem um limiar de toxicidade baixo e muitas interações medicamentosas, o que pode limitar a prescrição. Também deve ser evitada em pacientes com taxa de filtração glomerular menor que 30 ml/min.

Controle de sintomas

As terapias de primeira linha para controle de angina incluem: BB, bloqueadores de canal de cálcio e nitratos de longa ação (tabela 2). Devem ser iniciados isoladamente, mas podem ser associados em pacientes que mantêm sintomas.

Tabela 2
Medicações para controle de angina
Medicações para controle de angina

Ranolazina é reservada para casos refratários. Para alívio imediato da dor, nitroglicerina sublingual pode ser usada. A maioria dos pacientes evolui com bom controle dos sintomas, mas até 40 a 50% mantém dor não controlada.

A diretriz americana não menciona trimetazidina como opção terapêutica. A droga é uma opção para angina refratária, segundo as diretrizes europeia e brasileira [3, 7].

Quando e como revascularizar

A decisão sobre a revascularização e o tipo de abordagem (angioplastia ou revascularização cirúrgica) deve considerar a anatomia coronariana e a preferência do paciente. Frequentemente existe necessidade de avaliação em conjunto com equipe clínica, hemodinâmica e cirúrgica.

As principais indicações de revascularização incluem:

  • Angina refratária: pacientes que apresentam sintomas com limitação funcional, apesar de terapia clínica otimizada
  • Anatomia de alto risco:
    • Doença no tronco da coronária esquerda OU
    • Doença multiarterial, em especial com fração de ejeção do VE ≤ 35%

A complexidade das lesões pode ser quantificada através do escore SYNTAX. Valores maiores ou iguais a 33 são considerados de maior complexidade. Pacientes com doença de maior complexidade tem melhores resultados com a revascularização cirúrgica, quando comparada a revascularização por angioplastia percutânea. Pacientes com diabetes também tendem a ter melhores resultados com a cirurgia.

Em relação ao método de revascularização, a diretriz faz uma recomendação forte de preferir revascularização cirúrgica em pacientes com doença de tronco da coronária esquerda com alta complexidade. A recomendação também é de preferir revascularização cirúrgica em pacientes com doença multiarterial envolvendo a artéria descendente anterior E diabetes.

Em pacientes sem diabetes, o documento sugere a revascularização cirúrgica em pacientes com doença multiarterial e SYNTAX > 33. Casos de dúvida em relação ao melhor método (cirúrgico ou endovascular) devem ser discutidos envolvendo as equipes de cirurgia cardíaca e hemodinâmica.

O estudo STICHES (um acompanhamento de dez anos do STICH) encontrou que pacientes com IC com FE ≤ 35% submetidos a revascularização cirúrgica tiveram maior sobrevida em comparação à terapia clínica [8, 9]. O estudo REVIVED avaliou uma população semelhante, porém submetida a angioplastia. Não houve diferença em mortalidade geral ou hospitalizações no seguimento de aproximadamente 40 meses [10].

A angioplastia em pacientes que mantêm sintomas pode reduzir a angina e melhorar a qualidade de vida. O estudo COURAGE randomizou pacientes com DCC estável para angioplastia ou tratamento clínico exclusivo [11]. Em cinco anos, não houve diferença de sobrevida entre os grupos, apesar da tendência de melhor controle de angina após angioplastia. Resultados semelhantes foram encontrados pelo ISCHEMIA. Nesse estudo, pacientes com DCC estável foram randomizados para abordagem invasiva (angioplastia ou revascularização cirúrgica) ou tratamento clínico exclusivo da doença [12]. Após cinco anos de acompanhamento, não houve redução de eventos isquêmicos ou mortalidade com a abordagem invasiva.

A diretriz se posiciona contra a realização de angiografia e angioplastia em pacientes com DCC estável, especialmente na ausência de mudança de sintomas. Nesse cenário, a intervenção invasiva não teve impacto na mortalidade.

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