Diretriz Americana de Insuficiência Cardíaca de Fração de Ejeção Preservada

Criado em: 13 de Novembro de 2023 Autor: Raphael Coelho

O Colégio Americano de Cardiologia (ACC) lançou em 2023 uma diretriz sobre insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada (ICFEP) [1]. Esse documento faz parte de uma iniciativa para criação de diretrizes com abordagens práticas. Esse tópico resume as principais informações da publicação.

O que é ICFEP e qual é o tamanho do problema?

Insuficiência cardíaca (IC) é a síndrome clínica em que sinais e sintomas são causados por anormalidades estruturais ou funcionais do coração. Na definição universal de IC, as manifestações clínicas devem ser acompanhadas do aumento de peptídeos natriuréticos e/ou congestão pulmonar ou sistêmica [2].

Após o diagnóstico de IC, deve-se avaliar a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE). FEVE acima de 50% é considerada preservada.

Muitas doenças podem causar IC e manter a FEVE acima de 50%, como cardiomiopatia infiltrativa, cardiomiopatia hipertrófica, doença valvar, doença pericárdica ou IC de alto débito. Essas doenças têm tratamentos específicos.

A ICFEP é uma condição que inclui três características:

  • Manter os critérios universais de IC
  • Possuir FEVE > 50%
  • Não ser causada por uma cardiomiopatia subjacente

A presença de disfunção diastólica no ecocardiograma não significa que o paciente tem ICFEP, pois esse é um achado pouco específico para este diagnóstico.

A chance de uma pessoa de 40 anos desenvolver IC até o final da vida é de 20%. A fisiopatologia da ICFEP ainda é pouco compreendida, dificultando o diagnóstico. Muitos fatores colaboram para o desenvolvimento da ICFEP, como idade avançada, obesidade e diabetes. Os pacientes são muito diferentes entre si, o que dificulta a uniformidade no manejo da doença.

Diagnóstico diferencial: o que parece ICFEP, mas não é?

Há dois passos importantes na investigação da suspeita de ICFEP:

  1. Avaliar se o quadro clínico é causado por uma doença cardíaca.
  2. Investigar se a doença cardíaca tem etiologia com um tratamento específico, não se enquadrando no conceito de ICFEP.

Os critérios de Framingham podem ajudar na identificação dos sintomas de um paciente com IC (tabela 1) [3].

Tabela 1
Critérios de Framingham para diagnóstico de insuficiência cardíaca (IC)
Critérios de Framingham para diagnóstico de insuficiência cardíaca (IC)

Os principais sintomas de ICFEP são dispneia e edema. Entre os diagnósticos diferenciais de dispneia estão doenças pulmonares, anemia, doenças neuromusculares e ansiedade. Veja mais sobre o tema no episódio 35: caso clínico de dispneia.

O diagnóstico diferencial de edema inclui a avaliação de linfedema e edema de origem venosa, que pode ser causado por hipoalbuminemia (cirrose, síndrome nefrótica, desnutrição, enteropatia perdedora de proteína) ou não (IC, sobrecarga volêmica, hipertensão portal, injúria renal).

Diante da suspeita de IC, um ecocardiograma e peptídeos natriuréticos (BNP ou NTproBNP) devem ser solicitados.

Quando o diagnóstico não está claro, o escore H2FPEF pode ser utilizado. O H2FPEF estima a probabilidade do diagnóstico de ICFEP a partir de dados clínicos e ecocardiográficos (tabela 2). O H2FPEF é considerado um escore acessível e acurado. Uma crítica é não utilizar os peptídeos natriuréticos, que são elementos importantes na definição de IC.

Tabela 2
Escore H2FPEF para diagnóstico de insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada
Escore H2FPEF para diagnóstico de insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada

A HFA-PEFF é um algoritmo diagnóstico de ICFEP mais complexo que o H2FPEF. Esse algoritmo tem etapas e inclui parâmetros funcionais e morfológicos do ecocardiograma [4].

Feito o diagnóstico de IC em um paciente com FEVE > 50%, o próximo passo é avaliar a presença de cardiomiopatias com terapias específicas. Se uma dessas doenças estiver presente, o paciente não entra na definição de ICFEP. Dicas diagnósticas e a investigação adequada estão resumidas na tabela 3.

Tabela 3
Diagnósticos diferenciais que não estão incluídos na definição de ICFEP por terem manejo específico
Diagnósticos diferenciais que não estão incluídos na definição de ICFEP por terem manejo específico

Algumas particularidades devem ser destacadas na ICFEP em mulheres. Mulheres com ICFEP têm mais dispneia, mais comorbidades e um pior estado geral de saúde do que homens. Mulheres têm câmaras de VE menores e são mais susceptíveis a ter FEVE maior. Uma FEVE de 50 a 55% em mulheres pode ser anormalmente baixa. Essas diferenças podem explicar a melhor resposta desta população à terapia farmacológica. Os peptídeos costumam ter poder semelhante para excluir ICFEP independentemente do sexo biológico.

Tratamento de ICFEP: novas evidências

Tabela 4
Medicamentos modificadores de doença em ICFEp
Medicamentos modificadores de doença em ICFEp

O manejo da ICFEP é dividido em três pilares: tratamento de comorbidades, controle de sintomas e uso de medicamentos modificadores de doença. As classes usadas como modificadores de doença incluem os inibidores de SGLT2 (iSGLT2), espironolactona, sacubitril/valsartana e candesartana (tabela 4). O fluxograma 1 resume as escolhas terapêuticas.

Fluxograma 1
Tratamento medicamentoso da insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada
Tratamento medicamentoso da insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada

Os iSGLT2 são indicados para todos os pacientes com ICFEP. Reduzem hospitalização por IC e melhoram qualidade de vida, com potencial de benefício em mortalidade [5]. Os benefícios foram encontrados mesmo em pacientes que já utilizam espironolactona e sacubitril/valsartana [6]. Outra possível vantagem dos iSGLT2 é diminuir o risco de hipercalemia causado pela espironolactona.

A espironolactona melhora a função diastólica na ICFEP. O TOPCAT foi um estudo multicêntrico que demonstrou benefício na redução do risco de hospitalização por IC [7]. No entanto, os resultados do estudo não foram homogêneos entre os centros de pesquisa, sendo esta a principal crítica ao trabalho.

Sacubitril-valsartana demonstrou benefício para pacientes com FEVE entre 45 e 57% no desfecho composto de hospitalizações para IC e morte de causa cardiovascular [8]. Uma análise post hoc mostrou que esse benefício foi maior entre as mulheres [9].

Candesartana é colocada pela diretriz como prioridade em relação aos outros BRA pela redução em hospitalização por IC no estudo CHARM-Preserved [10].

A terapia medicamentosa deve ser otimizada o mais rápido possível. O estudo STRONG-HF, que não se restringiu a pacientes apenas com ICFEP, propôs o ajuste para doses máximas em até duas semanas após a alta de uma internação por IC [11]. Os medicamentos foram iniciados dias antes da alta. Sintomas, pressão arterial, potássio e creatinina foram monitorados frequentemente antes e após a alta hospitalar. Houve melhora nos desfechos de estado de saúde e reinternação ou morte por IC em comparação com o grupo de manejo usual, sem aumento em eventos adversos graves. Este trabalho destaca que uma internação por IC é uma oportunidade para otimização de drogas e demonstra segurança na titulação rápida até doses otimizadas, com monitoramento frequente.

O manejo das comorbidades é parte indispensável do tratamento de ICFEP. Obesidade, fibrilação atrial, hipertensão, doença arterial coronariana, diabetes, doença renal crônica e síndrome da apneia-hipopneia obstrutiva do sono devem ser tratados de acordo com as diretrizes de cada doença. Obesidade e sedentarismo estão fortemente associadas a pior prognóstico. Hipertensão descontrolada pode causar descompensação de IC.

Para manejo de sintomas (especialmente congestão), os diuréticos de alça como a furosemida estão indicados.

O estudo STEP-HFpEF evidenciou melhor controle de sintomas em pacientes obesos com ICFEP em uso de semaglutida [12]. Esse estudo foi discutido no tópico Semaglutida para Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Preservada, mas ainda não foi incluído na diretriz americana.

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