Anemia Ferropriva

Criado em: 18 de Dezembro de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

A deficiência de ferro é a causa mais comum de anemia no mundo. A anemia ferropriva tem impacto em todos os países, afetando especialmente crianças, mulheres em idade reprodutiva e pessoas com doenças crônicas. Esta revisão aborda as manifestações clínicas, diagnóstico laboratorial e tratamento desta condição

Impacto da anemia ferropriva

A anemia ferropriva afeta mais de um bilhão de pessoas no mundo. No Brasil, assim como em outros países, os grupos mais afetados são crianças, mulheres em idade fértil e gestantes. Dados da OMS colocam uma prevalência de anemia ferropriva em gestantes entre 20 a 39% no Brasil [1]. Uma pesquisa recente indica que uma parcela significativa da população brasileira ainda tem ingestão inadequada de ferro, independente da renda [2].

A anemia ferropriva está relacionada com piora da performance cognitiva e atraso do desenvolvimento mental e motor em crianças. Gestantes com anemia ferropriva têm maior risco de parto prematuro e o feto tem maior risco de baixo peso ao nascer. Anemia ferropriva grave aumenta o risco de mortalidade materna e infantil [3].

A anemia em pacientes idosos é multifatorial, mas estima-se que 30% seja causada por deficiência de ferro. Vários fatores levam a ferropenia nessa população, seja por redução da absorção (gastrite atrófica, uso de inibidor de bomba de próton) ou através de perdas por sangramentos (drogas antitrombóticas, angiodisplasia, úlcera péptica, malignidades do trato gastrointestinal). O uso de ácido acetilsalicílico (AAS) esteve associado a maiores taxas de anemia ferropriva em idosos [4]. A detecção de ferropenia é uma oportunidade para rever a adequação da prescrição de AAS - veja mais em Aspirina para Prevenção de Eventos Cardiovasculares.

Sintomas de deficiência de ferro

A anemia ferropriva pode resultar em três tipos de sintomas:

  • Sintomas de anemia
  • Sintomas de ferropenia
  • Sintomas da etiologia da ferropenia

Os sintomas que mais chamam atenção são os de anemia. O quadro é o habitual de síndrome anêmica, com fadiga, astenia e redução da produtividade.

Em pacientes com insuficiência cardíaca (IC) a anemia pode precipitar uma descompensação do quadro. A própria deficiência de ferro, sem anemia, está relacionada a pior qualidade de vida em pacientes com IC [5]. Pacientes com doença arterial coronariana podem apresentar angina no contexto de anemia.

A ferropenia está associada a alterações epiteliais como boca seca, queilite, glossite atrófica, membranas esofágicas (síndrome de Plummer-Vinson) e alopecia. Distúrbios alimentares são descritos na ferropenia. Pode ocorrer inclinação a comer materiais que não são alimentos, um sintoma conhecido como pica. Ver tabela 1.

Tabela 1
Sinais e sintomas de deficiência de ferro
Sinais e sintomas de deficiência de ferro

A deficiência de ferro também está relacionada com a síndrome das pernas inquietas. Essa é uma síndrome neurológica em que o paciente tem necessidade ou desejo irresistível de mover as pernas. Isso pode ser acompanhado por dor e existe associação com distúrbios do sono [6].

A própria etiologia da ferropenia pode causar sintomas. Isso ocorre na forma de sangramentos, exteriorizados comumente pelo trato genital ou gastrointestinal, ou como diarreia por síndromes disabsortivas.

Diagnóstico laboratorial

O principal parâmetro laboratorial para o diagnóstico de deficiência de ferro é a ferritina. Quanto menor a ferritina, maior a especificidade para ferropenia. No entanto, valores de corte muito baixos podem levar a perda de sensibilidade para o diagnóstico de ferropenia.

Um valor de ferritina abaixo de 30 mg/L é indicado pelo PCDT brasileiro como deficiência de ferro [7]. A diretriz da Associação Americana de Gastroenterologia recomenda um corte de 45 mg/L para o diagnóstico de anemia ferropriva [8]. Outras referências trazem valores distintos [9, 10].

O índice de saturação de transferrina (IST) abaixo de 20% também indica deficiência de ferro. Este é o exame a ser realizado quando a ferritina não está disponível ou está em valores duvidosos. O IST pode ser obtido através de cálculos utilizando ferro e transferrina. A capacidade total de ligação do ferro à transferrina (TIBC ou CTLF) é uma medida indireta da transferrina e também pode ser utilizada para obter o valor de IST. A transferrina e o TIBC estão elevados na deficiência de ferro, porém é recomendado utilizar o IST por ter valores mais estabelecidos e ser o parâmetro utilizado em mais estudos. O ferro sérico não deve ser utilizado para avaliar a presença de ferropenia. Veja a figura 1 com as fórmulas.

Figura 1
Fórmulas na anemia ferropriva e deficiência de ferro
Fórmulas na anemia ferropriva e deficiência de ferro

O diagnóstico de deficiência de ferro em pacientes com doenças inflamatórias é complicado pela influência da inflamação nos marcadores de cinética do ferro. Por exemplo, a ferritina é uma proteína de fase aguda positiva, enquanto a transferrina é uma proteína de fase aguda negativa. Os cortes de ferritina e IST nesse contexto não são bem estabelecidos, mas deve-se considerar o diagnóstico de deficiência de ferro se a ferritina estiver abaixo de 100 mg/L em combinação com saturação de transferrina abaixo de 20% [11]. Avaliar o comportamento desses marcadores após um teste terapêutico com reposição de ferro também pode ajudar. O receptor solúvel da transferrina se eleva na deficiência de ferro e tende a se manter normal nos pacientes com anemia inflamatória. Esse exame é menos disponível que a ferritina, mas pode ser útil em casos de dúvida diagnóstica.

Uma transfusão sanguínea pode alterar a cinética do ferro. Contudo, as alterações são transitórias e pouco capazes de interferir na interpretação dos exames. Um estudo avaliou os exames após 48 a 72 horas da transfusão e 97% dos pacientes permaneceram nos níveis de ferropenia [12].

É possível fazer o diagnóstico através do mielograma. O ferro medular pode ser quantificado através da coloração do azul da Prússia ou coloração de Perls. Esse recurso não é comumente utilizado já que os exames não invasivos possuem boa acurácia, sendo utilizado em casos de dúvida diagnóstica ou quando o mielograma é feito por outro motivo.

Diagnóstico diferencial

A anemia provocada pela deficiência de ferro é hipoproliferativa (reticulócitos não elevados) e microcítica em aproximadamente metade dos casos [13]. A anemia microcítica ocorre quando as hemácias são menores do que o normal, sendo definida quando o VCM é menor que 80 fL. Além de deficiência de ferro, existem três outras principais causas de anemia microcítica que entram no diagnóstico diferencial [14]:

  • Anemia da doença inflamatória
  • Anemia sideroblástica
  • Talassemia
Figura 2
Causas de anemia microcítica
Causas de anemia microcítica

Outras alterações morfológicas da anemia ferropriva incluem hipocromia e anisocitose, além de achados da microscopia como eliptócitos e células em charuto (veja alterações na anemia ferropriva aqui).

Pacientes com doenças inflamatórias têm redução na disponibilidade de ferro para produção de hemácias. Isso ocorre por conta dos altos níveis de hepcidina induzidos pelo estado inflamatório, bloqueando o ferro nas células de armazenamento. A anemia da doença inflamatória pode ser microcítica ou normocítica. Diferente da anemia ferropriva, os estoques de ferro estão preservados [15]. Mais detalhes no subtópico "Diagnóstico laboratorial".

A talassemia é uma doença genética que leva à redução da síntese das cadeias de globina da hemoglobina. Possui um espectro de apresentação amplo, variando conforme o subtipo. O diagnóstico é feito através da eletroforese de hemoglobina. Cada subtipo tem um padrão da eletroforese de hemoglobina diferente. A diferenciação com anemia ferropriva se dá pela história, cinética do ferro e eletroforese de hemoglobina.

Anemia sideroblástica ocorre quando há produção ineficaz da fração heme da hemoglobina. Isso pode ocorrer por etiologias congênitas e adquiridas. Exemplos de causas adquiridas são mielodisplasia, intoxicação por chumbo ou arsênico, overdose de zinco, deficiência de cobre, deficiência de vitamina B6 e transtorno do uso de álcool. O diagnóstico é realizado através da detecção dos sideroblastos em anel no mielograma [16]. Diferente da anemia ferropriva, aqui o paciente possui ferritina e saturação de transferrina elevadas.

Busca da etiologia

A anemia ferropriva não é um diagnóstico final. O fator etiológico que causou a diminuição dos estoques de ferro sempre deve ser buscado. Os mecanismos principais são redução da ingesta de ferro (desnutrição, restrição na dieta), alterações de absorção (gastrectomia, cirurgia bariátrica, doença celíaca) e perda sanguínea crônica (sangramento gastrointestinal, dismenorreia). Veja mais na tabela 2.

Tabela 2
Mecanismos de perda de ferro e condições associadas
Mecanismos de perda de ferro e condições associadas

A diretriz britânica e brasileira recomendam que todo homem ou mulher pós-menopausa façam endoscopia e colonoscopia para pesquisa de neoplasia gastrointestinal [7]. Por outro lado, a diretriz dos Estados Unidos recomenda que ambos os exames sejam feitos independente da idade, incluindo mulheres pré-menopausa na indicação [8]. A decisão de proceder com esses exames em mulheres na pré-menopausa pode ser tomada baseada na história familiar, história menstrual da paciente e resposta à terapia.

Menstruação em grande quantidade é a causa mais comum de anemia ferropriva na mulher em idade reprodutiva. Isso é definido quando a quantidade de sangramento menstrual é percebida por uma mulher como sendo de volume suficiente para impactar negativamente sua qualidade de vida física, emocional, social ou material [17]. A suspeita pode ser levantada se houver presença de coágulos maiores que 1 cm, troca de absorvente durante a noite ou duração maior que sete dias [18, 19].

Doenças gastrointestinais precisam ser investigadas. Doença celíaca é encontrada em 3 a 5% dos pacientes com anemia ferropriva em algumas populações, dado que leva a diretriz britânica a recomendar a pesquisa sorológica ou endoscópica em todos os pacientes [9].

O principal local de absorção do ferro é no duodeno. Cirurgias que modificam essa estrutura ou a passagem do alimento por essa porção do intestino podem causar deficiência de ferro. A prevalência de deficiência de ferro pode ser encontrada em até 50% dos pacientes que realizaram cirurgia bariátrica [20].

Tratamento via oral

A reposição de ferro por via oral é através dos sais de ferro (Ver tabela 3). A dose é calculada baseada na quantidade de ferro elementar presente na composição. Historicamente, a reposição indicada é 100 a 200 mg de ferro elementar por dia.

Tabela 3
Opções para reposição oral de ferro
Opções para reposição oral de ferro

Em pacientes idosos, trabalhos pequenos encontraram que fazer doses menores atingem resultados similares e com menos eventos adversos [21]. Outro trabalho indicou que fazer a reposição em dias alternados se associou a melhor aceitação dos pacientes, apesar de uma recuperação mais lenta de hemoglobina [22].

Os principais eventos adversos relacionados a reposição de ferro oral são constipação, náusea e diarreia [23].

O comprimido deve ser tomado entre as refeições. Refeições que contenham cálcio, como alimentos derivados do leite, reduzem a absorção de ferro. Em contrapartida, alimentos que contenham vitamina C auxiliam na absorção.

O tratamento deve ser supervisionado com a medição de reticulócitos, que se elevam em quatro a cinco dias, e pela hemoglobina, que se eleva entre duas e quatro semanas. O tratamento é feito por três a seis meses, com o objetivo de normalizar a ferritina [24].

Tratamento intravenoso

A reposição intravenosa do ferro pode ser utilizado nas seguintes situações:

  • Não respondedores à reposição oral por intolerância gastrointestinal
  • Má absorção, doença inflamatória intestinal ou problemas com a via de administração - por exemplo, disfagia grave
  • Doença renal crônica
  • Sangramento persistente, excedendo a capacidade de reposição oral - por exemplo, sangramento uterino intenso e telangiectasias mucosas
  • Estados inflamatórios que interferem na homeostasia do ferro

As principais apresentações estão na tabela 4. O paciente deve necessitar em média de 1000 a 1500 mg de ferro para a reposição de estoques.

Tabela 4
Formulações de ferro por via endovenosa
Formulações de ferro por via endovenosa

Comentamos mais sobre como repor ferro intravenosa em Reposição Intravenosa de Ferro.

Refratariedade

A anemia por deficiência de ferro é considerada refratária quando não há aumento de 1 g de hemoglobina após quatro a seis semanas de reposição oral de ferro [25].

A maioria dos casos são explicados por alterações gastrointestinais. Pacientes que realizaram gastrectomia ou cirurgias de bypass gástricos podem ser refratários à reposição oral de ferro. A infecção por H. pylori também pode reduzir a absorção de ferro e a diretriz dos Estados Unidos recomenda a pesquisa do H. pylori nos casos que os exames endoscópicos não esclarecem a causa da refratariedade [8]. Outra explicação possível é a gastrite atrófica autoimune e as doenças inflamatórias intestinais, que podem causar anemia ferropriva refratária, assim como outras anemias carenciais como B12 e ácido fólico.

A doença celíaca também pode ser responsável por anemia ferropriva refratária. Como o espectro de sintomas da doença celíaca é amplo e inespecífico, a refratariedade ao ferro oral pode ser uma pista diagnóstica para essa condição [26].

Uma causa mais rara de refratariedade é a síndrome genética IRIDA, do inglês Iron-Refractory Iron Deficiency Anemia [27]. Essa doença é causada pela mutação no TMPRSS6. Esse gene é responsável pela produção de matriptase-2 e a mutação pode causar alteração da função da hepcidina. Essa condição está presente em menos de 1% dos pacientes com anemia ferropriva.

Repercussão da deficiência de ferro em outras doenças

Na insuficiência cardíaca, a deficiência de ferro com ou sem anemia está relacionada com pior qualidade de vida. O diagnóstico nesse cenário é realizado com ferritina abaixo de 100 μg/L ou 100 a 300 μg/L se a saturação de transferrina for menor que 20%. Uma metanálise apresentada no ESC de 2023 combinando os três maiores trabalhos sobre o tema (AFFIRM-HF), CONFIRM-HF e HEART-FID encontrou benefício em redução de hospitalizações por eventos cardiovasculares com o uso de ferro intravenoso [28-31]. Você pode ver mais sobre ferro na IC nestes dois tópicos: Reposição de Ferro na Insuficiência Cardíaca e Ferro na IC.

Pacientes com doença renal crônica podem apresentar anemia por vários motivos diferentes, incluindo deficiência de eritropoetina e deficiência de ferro. Os valores de ferritina e saturação de transferrina que indicam a reposição de ferro são maiores que a população em geral. Pacientes que não estão dialisando podem começar a reposição de ferro quando ferritina abaixo de 100 μg/L e saturação de transferrina abaixo de 30%. Nos pacientes que estão realizando diálise não existe uniformidade das diretrizes quanto ao que é valor ideal. Veja mais sobre anemia da doença renal crônica no tópico Eritropoetina.

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