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Caso Clínico #16

Criado em: 25 de Janeiro de 2024 Autor: Frederico Amorim Marcelino

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Mulher de 59 anos vem ao pronto socorro acompanhada da filha por ter iniciado na noite anterior fala desconexa e períodos de mutismo. Desde então emite frases repetidas. Há um mês apresenta perda ponderal de 7 kg. Não apresentava queixa de fraqueza muscular, alteração de sensibilidade, sonolência ou cefaleia. Negava crises convulsivas, febre ou sudorese noturna.

Possui histórico de síndrome anti-sintetase em uso de micofenolato. Fez uso de rituximabe anteriormente por acometimento pulmonar, sendo a última infusão há nove meses. Além disso, é hipertensa em uso de losartana. Nega etilismo, tabagismo ou uso de outras drogas, assim como alergias ou cirurgias prévias.

Ao exame inicial apresentava pressão arterial de 100/84 mmHg, frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto, frequência 18 incursões por minuto, saturação 95%, temperatura axilar 36,8 °C e glicemia capilar 80 mg/dL. Estava em bom estado geral, sem alteração ao exame cardíaco, respiratório e abdominal.

Ao exame neurológico estava vigil, desatenta, com fala desconexa, mas sem disartria. Tinha dificuldade de seguir comandos. Não apresentava alteração de pares cranianos, força, reflexos ou sensibilidade. Também não apresentava irritação meníngea. A fundoscopia não demonstrou edema de papila.


Tabela 1
Causas selecionadas de quadro confusional agudo - doenças do sistema nervoso central
Causas selecionadas de quadro confusional agudo - doenças do sistema nervoso central

A paciente apresenta um estado confusional agudo, por vezes chamado de alteração do estado mental ou encefalopatia aguda. Esse quadro pode ser abordado considerando dois grupos de causas:

  • Doenças do sistema nervoso central (SNC) (tabela 1)
  • Doenças sistêmicas ou de outro órgão (tabela 2)
Tabela 2
Causas selecionadas de quadro confusional agudo - doenças sistêmicas ou de outros órgãos
Causas selecionadas de quadro confusional agudo - doenças sistêmicas ou de outros órgãos

Dentre as causas associadas ao SNC, destacam-se:

  • Vasculares (AVC isquêmica, AVC hemorrágico, hemorragia subaracnóide, vasculites)
  • Neoplásicas (tumor primário ou metástase)
  • Neuroinfecção (meningite, encefalite, abscessos)

Entre as causas sistêmicas, as mais prevalentes são:

  • Infecções
  • Medicamentos ou intoxicação exógena
  • Endocrinometabólicos (distúrbios hidroeletrolíticos, insuficiência renal ou hepática)

A história da paciente não mostra indícios iniciais de infecção em outros sítios, histórico de intoxicação ou outros sintomas sistêmicos sugestivos de doenças endocrinometabólicas. Contudo, essas condições não podem ser descartadas completamente, necessitando de investigação laboratorial.

A investigação de causas estruturais do SNC é feita através de exames de imagem. Considerando a perda de peso, neoplasias ou neuroinfecções com apresentação subaguda devem ser buscadas. Os principais exames de imagem disponíveis são: tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM). A RM é mais sensível que a TC para avaliar alterações estruturais do cérebro, incluindo neuroinfecções, AVC isquêmico, hemorragia intraparenquimatosa e neoplasias [1-6]. Contudo, é menos disponível, mais cara e demorada, dificultando a sua escolha como primeiro teste. Uma sequência possível é usar a TC como exame inicial, seguida posteriormente de RM caso haja dúvida diagnóstica.

Na TC de crânio, a utilidade do uso de contraste foi avaliada em um estudo com 379 pacientes com sintomas neurológicos sem trauma no departamento de emergência. Desses, 118 tiveram alteração do exame e apenas em um paciente a TC com contraste demonstrou alteração não visível na TC sem contraste [7]. Apesar da boa sensibilidade do exame não contrastado nesse estudo, o contraste pode realçar a borda de algumas lesões, um achado chamado de halo ou realce em anel (figura 1) e que pode ser útil no diagnóstico. Neoplasias e neuroinfecções de SNC em pacientes imunossuprimidos podem apresentar essa característica.

Figura 1
Tomografia de crânio com sinal do halo ou realce em anel
Tomografia de crânio com sinal do halo ou realce em anel

O passado médico da paciente é relevante. A síndrome anti-sintetase é uma miopatia inflamatória com acometimento sistêmico. Costuma estar associada a doença pulmonar intersticial, fenômeno de Raynaud, “mãos de mecânico” e artrite inflamatória. Contudo, não é habitual cursar com alterações neurológicas e não está relacionada a neoplasias.

As medicações da paciente interferem no diagnóstico diferencial. O micofenolato aumenta o risco de infecções bacterianas, tuberculose, infecções por citomegalovírus e varicela. Por outro lado, parece proteger contra Pneumocystis jirovecii, apesar de esse efeito ser discutido na literatura [8]. O rituximabe é um anticorpo monoclonal anti-CD20 associado com aumento de infecções bacterianas, especialmente pneumonia e bacteremia, e fúngicas [9].

Com esse contexto de imunossupressão, uma neuroinfecção é uma boa explicação para o quadro. As neuroinfecções podem ser subclassificadas em três grupos (tabela 3):

  • Lesões encefálicas focais, geralmente é associadas a déficit focal (como neurotoxoplasmose, tuberculoma e abscesso cerebral)
  • Meningoencefalites (como meningite bacteriana, neurocriptococose, tuberculose meníngea)
  • Mielites (como citomegalovírus, varicela zoster)
Tabela 3
Causas de neuroinfecção
Causas de neuroinfecção

A avaliação do líquor faz parte da investigação de quadro confusional agudo quando outros exames não revelaram a causa. Pelo risco de herniação cerebral, o exame deve ser realizado após resultado de imagem.

A paciente realizou exames laboratoriais que demonstravam: proteína C reativa 0,85 mg/L, creatinina 1,3, Hb 11,9 mmHg, leucócitos 7.900 com diferencial normal e plaquetas 267.000. Enzimas hepáticas e eletrólitos sem alterações.

Na TC de crânio com contraste foram encontradas múltiplas lesões nodulares distribuídas pelos lobos temporal, frontal, parietal e occipital direitos. As lesões tinham realce periférico ao meio de contraste, que delimita porções centrais liquefeitas, nenhuma delas com calcificações ou sangramentos, todas associadas a edema vasogênico circunjacente (figura 2). Os achados podem corresponder a lesões infecciosas com disseminação hematogênica ou metástases.

Figura 2
Tomografia de crânio com contraste
Tomografia de crânio com contraste

Após o resultado da imagem, foi realizada a coleta do líquor com o seguinte resultado: 33 células (linfócitos 84%), glicose 60 mg/dL, lactato 22 mg/dL e proteína 69 mg/dL. A coloração de Gram, pesquisa de bacilos álcool ácido resistentes (BAAR), teste rápido molecular para tuberculose (TRM-Tb), pesquisa de fungos, tinta da China, antígeno de cryptococcus e pesquisa de células neoplásicas foram todos negativos. Culturas em andamento. A paciente foi internada para investigação.


A TC de crânio indica que a causa da alteração confusional são as lesões do parênquima encefálico. As lesões focais intracranianas podem ser dividas em:

  • Lesões encefálicas com efeito de massa: lesões expansivas/que ocupam espaço intracraniano como abscessos, tumores, hemorragias ou infartos (figura 3)
  • Lesões encefálicas sem efeito de massa: não alteram o parênquima adjacente como leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP) e doenças desmielinizantes
Figura 3
Lesões encefálicas com e sem efeito de massa
Lesões encefálicas com e sem efeito de massa

Algumas neoplasias podem progredir com a imunossupressão, como melanoma, neoplasia gástrica, carcinoma hepatocelular e linfomas, sendo fontes possíveis de metástase [10-12]. O linfoma primário de sistema nervoso central (LPSNC) também pode se expressar dessa forma, apresentando múltiplas lesões em até 40 a 50% dos pacientes [13, 14].

Três causas infecciosas comuns de massa em SNC são neurotoxoplasmose, tuberculoma e abscesso cerebral piogênico principalmente em pacientes imunossuprimidos [15-17]. Outras etiologias importantes são neurocisticercose e histoplasmose a depender da epidemiologia local [18]. A imagem com realce periférico, também conhecido como realce em anel, pode ocorrer em todas essas etiologias. Em alguns casos, além do realce em anel, há um realce central, caracterizando uma lesão em alvo (figura 4). Esses achados são inespecíficos, podendo estar presentes também em neoplasias, doenças desmielinizantes ou auto-imunes [15]. Os sinais vitais normais e as provas inflamatórias baixas tornam abscesso cerebral piogênico o menos provável nesse contexto.

Figura 4
Ressonância magnética de crânio com lesão em alvo
Ressonância magnética de crânio com lesão em alvo

O exame do líquor mostra aumento de celularidade com predomínio linfomonocitário e hiperproteinorraquia. Esse achado não é suficiente para diferenciar as doenças comentadas. Contudo, tuberculomas podem estar associados a meningite tuberculosa, o que resulta em marcante aumento de celularidade e proteinorraquia, assim como consumo de glicose (veja mais no tópico Meningite Tuberculosa). O tuberculoma sem meningite, a neurotoxoplasmose e o abscesso cerebral costumam causar aumentos pequenos de celularidade e proteína. Alterações mais expressivas são possíveis a depender do número e localização das lesões [19-21].

Para definir o diagnóstico são necessários exames direcionados para essas etiologias. Além de culturas, teste rápido molecular para tuberculose, cultura para micobactéria e PCR para toxoplasmose no líquor e sérico podem ajudar, mas possuem sensibilidade variável [19]. A sorologia não reagente para toxoplasmose torna o diagnóstico improvável, mas ainda assim possível, ao passo que a sorologia positiva não confirma a doença. Outras neuroinfecções como criptococose e histoplasmose podem ser pesquisadas considerando o caráter de imunossupressão.

A diferenciação entre neoplasia e infecção é difícil. A RM caracteriza melhor as lesões e pode auxiliar. Sequências específicas da RM como a difusão (diffusion weighted imaging ou DWI) podem auxiliar na distinção de abscesso cerebral e neoplasia cística ou com necrose, mas seu papel na diferenciação de neurotoxoplasmose e tuberculoma é debatido [22].

A paciente realizou TC de tórax e abdome, ectoscopia detalhada e exame ginecológico em busca de um sítio primário de neoplasia, porém sem achados relevantes. O PCR para toxoplasmose e a cultura do líquor foram negativos.

A RM de crânio demonstrou múltiplas lesões focais em alvo (figura 5). Todas estas lesões apresentavam hipersinal nas sequências T1 pré contraste, favorecendo a possibilidade de neurotuberculose.

Figura 5
Ressonância magnética de crânio
Ressonância magnética de crânio

A hipótese sugerida pela RM não foi confirmada em exames do liquor. Essa situação é relativamente comum e exemplifica a baixa sensibilidade dos exames para tuberculose. A tuberculose de SNC tem duas principais manifestações: tuberculoma e tuberculose meníngea. Existe sobreposição dos quadros, com um estudo sugerindo que até 100% dos pacientes com tuberculose meníngea podem ter um tuberculoma. A lesão em alvo com centro calcificado já foi considerada patognomônica, mas atualmente é considerada um achado inespecífico [23]. Alguns autores sugerem que presença de realce pré contraste é característica de tuberculoma.

A neurotoxoplasmose é caracterizada por múltiplas lesões com edema vasogênico predominantemente em gânglios da base, seguido de lobo frontal e de lobo parietal [24]. As lesões podem ser homogêneas ou apresentarem realce anelar ao contraste, caracterizando-se como lesão em alvo. Outras doenças estão associadas à lesão em alvo, mas duas formas desse achado estão mais associadas à toxoplasmose: o sinal do alvo excêntrico e o sinal do alvo concêntrico (figura 6). O realce meníngeo é incomum em imagem.

Figura 6
Sinal do alvo concêntrico e sinal do alvo excêntrico
Sinal do alvo concêntrico e sinal do alvo excêntrico

Apesar de a imagem sugerir tuberculoma, os dados não são suficientes para definir o diagnóstico. Nesse caso, existem três estratégias possíveis. A primeira é a biópsia cerebral. Aqui deve-se considerar os riscos do procedimento como sangramento, resultando em alteração neurológica focal, convulsões ou rebaixamento do nível de consciência [25]. A segunda é tratar empiricamente uma das hipóteses e avaliar a resposta ao tratamento. Nesse caso, deve ser levado em consideração a toxicidade do tratamento para tuberculose que teria duração de 12 meses, assim como o sulfametoxazol/trimetoprima para neurotoxoplasmose, com duração de 6 semanas. A terceira é tratar empiricamente as duas doenças. Essa solução deve ser considerada em situações de piora clínica progressiva, mas com ressalvas semelhantes à anterior.

No período entre a TC com contraste e a RM, a paciente realizou tratamento empírico para neurotoxoplasmose, sem melhora clínica e radiológica. Com isso, foi iniciado tratamento empírico para tuberculose. Houve melhora clínica e radiológica e a paciente relatou boa adesão ao tratamento.

Nove meses após o início do tratamento, a paciente teve novo quadro de confusão mental. Na investigação foi identificada nova lesão em sistema nervoso central em região posterior em linha média com sinal do alvo excêntrico (figura 7), com captação periférica de contraste e com edema vasogênico. Houve melhora das lesões prévias identificadas em exame anterior.

Figura 7
Ressonância magnética de crânio após piora neurológica
Ressonância magnética de crânio após piora neurológica

A dúvida agora é se esse processo é o mesmo que o anterior ou se está ocorrendo outra neuroinfecção. O sinal do alvo excêntrico em RM é sugestivo de neurotoxoplasmose e a paciente apresentou resposta clínica e radiológica ao tratamento para tuberculose. Há relato também de boa aderência à medicação. Esses dados sugerem duas neuroinfecções em sequência. Contudo, a associação de duas neuroinfecções em um tempo relativamente curto é incomum e há risco de recidiva de neurotuberculose. Apesar de o tratamento empírico para neurotoxoplasmose ser uma alternativa, uma biópsia cerebral deve ser considerada.

Veja o desfecho do caso

A biópsia cerebral demonstrou taquizoítas (uma das formas do Toxoplasma gondii) em anatomopatológico, confirmando o diagnóstico de neurotoxoplasmose. A paciente recebeu tratamento com sulfametoxazol/trimetoprima, evoluindo com melhora dos sintomas.

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Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • Na avaliação de quadro confusional agudo, as causas podem ser dividas em associadas a alterações do SNC e em doenças sistêmicas ou em órgãos fora do SNC.
  • A RM é mais sensível e consegue identificar imagens com mais detalhes que a TC de crânio. Contudo, devido à disponibilidade e ao preço, geralmente é usada como segundo exame após a TC.
  • As neuroinfecções podem ser divididas em lesões encefálicas focais, meningoencefalites e mielites, com etiologias diferentes entre elas.
  • Causas infecciosas comuns de de massa em SNC são neurotoxoplasmose, tuberculoma e abscesso cerebral piogênico, além de histoplasmose e neurocisticercose a depender da epidemiologia local.
  • A diferenciação de neoplasia de SNC e neuroinfecção é difícil, pois características de imagem e do exame do líquor podem ser semelhantes.
  • Neurotoxoplasmose e tuberculoma de SNC são causas de lesões encefálicas focais com efeito de massa que podem ter imagem semelhante. A presença de sinal do alvo concêntrico e sinal do alvo excêntrico sugerem neurotoxoplasmose.

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