Consenso de Intoxicação por Paracetamol

Criado em: 11 de Março de 2024 Autor: Luisa Sousa

O paracetamol é um analgésico e antitérmico comum e seguro em doses terapêuticas habituais. As doses supra terapêuticas podem causar lesão hepática grave, sendo uma importante causa de insuficiência hepática aguda. Em agosto de 2023, o Journal of the American Medical Association (JAMA) publicou o consenso americano e canadense para manejo dessa intoxicação. Este tópico revisa o tema e traz as principais informações deste consenso [1].

Características da intoxicação por paracetamol

No Brasil, o paracetamol representa cerca de 3% dos casos de intoxicações [2]. Nas intoxicações por paracetamol que levaram à morte, a causa mais comum é tentativa de suicídio [3].

A lesão hepática causada pelo paracetamol depende da dose ingerida. A dose máxima de 4 g/dia em adultos é considerada segura. A toxicidade costuma ocorrer com doses acima de 7,5 a 10 g/dia [4]. A overdose pode se manifestar com alteração de transaminases isoladamente, ou alterações clínicas graves, como a insuficiência hepática aguda. O uso de medicamentos indutores da enzima citocromo CYP2E1 como isoniazida, rifampicina e anticonvulsivantes pode precipitar intoxicação [4, 5].

A hepatotoxicidade causada pelo paracetamol é definida pela elevação das enzimas aspartato transaminase (AST) e alanina (ALT) acima de 1.000 U/L. Essa elevação pode ocorrer até 24 horas após a ingestão, com pico máximo entre o 3° e 4° dia [4].

A intoxicação por paracetamol pode ser classificada cronologicamente em três estágios [6]. Os sintomas iniciais (estágio I) são inespecíficos. O paciente pode ter náuseas, vômitos, fadiga e mal estar. As transaminases geralmente estão normais. Entre 24 a 72 horas da ingestão (estágio II) os sintomas podem melhorar, mas a elevação de AST e ALT começa a ocorrer. No estágio III, o paciente piora clinicamente, com surgimento de icterícia e encefalopatia. A lesão hepática se agrava e as transaminases podem passar de 10.000 UI/L. Outros sinais de disfunção hepática como a coagulopatia e a acidose láctica podem ocorrer. Essa é a fase de maior gravidade e maior mortalidade.

A maioria dos pacientes com intoxicação se recupera, principalmente com o uso do antídoto acetilcisteína, que reduziu a mortalidade para menos de 1% dos casos. Hepatite crônica não é relatada como complicação da intoxicação por paracetamol [6].

Avaliação diagnóstica da intoxicação por paracetamol

Deve-se tentar estabelecer a dose ingerida, o tempo da exposição e se há uso crônico ou agudo. A ingestão concomitante de outras substâncias é comum e deve ser investigada. Para saber mais sobre o manejo de intoxicações exógenas, veja esse caso clínico.

A lesão hepática deve ser pesquisada com a dosagem das transaminases. A disfunção hepática é avaliada pelos níveis de bilirrubina, amônia e com o coagulograma. Dosagem de ureia, creatinina, eletrólitos, gasometria venosa e lactato sérico também fazem parte da avaliação inicial. A acidose lática é um marcador de gravidade.

A dosagem sérica do paracetamol deve ser realizada para orientar o tratamento, em especial nos pacientes comatosos [6]. Ao saber que a ingestão aguda ocorreu nas últimas 24 horas, utiliza-se o nomograma de Rumack-Matthew (figura 1) para guiar o tratamento. A ferramenta é utilizada com a concentração sérica de paracetamol entre 4 e 24 horas da ingestão. O nomograma determina a probabilidade de toxicidade e necessidade de tratamento [7, 8].

Figura 1
Normograma de Rumack-Matthew revisado para ingestão aguda de paracetamol
Normograma de Rumack-Matthew revisado para ingestão aguda de paracetamol

A toxicidade é maior com concentração de paracetamol às 4 horas de 200 μg/mL. Nos casos de uso frequente da medicação o nomograma não é aplicável, mas a acetilcisteína deve ser administrada se níveis de paracetamol > 20 μg/mL [7].

Manejo da intoxicação pelo paracetamol

O pilar terapêutico da intoxicação pelo paracetamol é o uso da acetilcisteína. A indicação é baseada no tempo e dose de ingestão. A acetilcisteína deve ser usada nas cinco situações a seguir [1, 9]:

  • Ingestão há menos de 24 horas preenchendo critérios de acordo com o nomograma de Rumack-Matthew;
  • Ingestão superior a 30 g de paracetamol;
  • Concentração sérica de paracetamol desconhecida, ou com previsão de demora do resultado em mais de 8 horas;
  • História clínica pouco confiável, em pacientes com concentração sérica de paracetamol > 10 μg/mL ou com aumento de transaminases;
  • Manifestações graves secundárias à disfunção hepática: encefalopatia hepática, coagulopatia, acidose láctica.

Quando o paracetamol é ingerido com outras medicações que retardam sua absorção, como opioides ou anticolinérgicos, recomenda-se não realizar acetilcisteína se a concentração sérica for < 10 μg/mL na medida de 4 a 24 horas da ingestão. Caso a concentração esteja acima de 10 μg/mL, mas abaixo da linha de tratamento do nomograma, a concentração sérica deve ser dosada 4 a 6 horas após a primeira avaliação para determinar a indicação da acetilcisteína [1].

A acetilcisteína pode ser administrada por via oral ou intravenosa. O consenso recomenda administração de pelo menos 300 mg/kg nas primeiras 20 a 24 horas de tratamento [1].

A administração oral tem como desvantagem a impossibilidade de uso nos pacientes com náuseas, vômitos ou alteração do nível de consciência. O sabor desagradável pode ser outro limitante. Quando bem tolerada, pode ser repetida a cada 4 horas [7]. A apresentação em sachê está disponível com 100, 200 ou 600 mg de acetilcisteína em cada envelope de 5 gramas. São necessários vários sachês para atingir a dose recomendada. Para a administração intravenosa, a ampola com concentração de 100 mg/mL pode ser diluída em soro fisiológico ou soro glicosado. Os regimes de administração de acetilcisteína intravenosa estão descritos na tabela 1.

Tabela 1
Regimes de administração da acetilcisteína intravenosa
Regimes de administração da acetilcisteína intravenosa

Não existe diferença de eficácia entre os regimes. O consenso recomenda que a duração do tratamento seja determinada por critérios clínicos e laboratoriais. A administração de acetilcisteína pode ser interrompida quando [1]:

  • O paciente estiver clinicamente bem
  • ALT e AST normalizadas ou com redução de 25 a 50% do nível máximo alcançado
  • INR < 2,0
  • Concentração sérica de paracetamol < 10 μg/mL.

Os efeitos adversos mais comuns com o uso de acetilcisteína são taquicardia, exantema, náuseas, vômitos e hipotensão [4].

Em pacientes com ingestão há menos de 4 horas, pode ser realizado o carvão ativado em dose única de 1 g/kg, com dose máxima de 50 g. Uma vantagem dessa administração é a redução da dose necessária de acetilcisteína. O carvão não deve ser realizado em pacientes com rebaixamento do nível de consciência sem possibilidade de uso da via oral. Em casos de ingestão de alto risco do paracetamol ou apresentação de liberação prolongada, o carvão ativado tem ação mesmo após 4 horas pela absorção retardada com a alta dose [9, 10]

O fluxograma 1 resume as principais indicações de uso de acetilcisteína na intoxicação aguda por paracetamol.

Fluxograma 1
Manejo na intoxicação aguda por paracetamol
Manejo na intoxicação aguda por paracetamol

Na ingestão supraterapêutica repetida - ingestão repetida acima de 24 horas -, o nomograma não pode ser utilizado. Nessa situação, as indicações da acetilcisteína são a concentração de paracetamol ≥ 20 μg/mL ou elevação de transaminases [1].

Quando considerar o transplante hepático?

Pacientes com níveis séricos de paracetamol acima de 900 μg/mL, com acidose ou insuficiência hepática fulminante devem receber acetilcisteína intravenosa e realizar terapia extracorpórea - hemodiálise. Nesses pacientes e naqueles que estão progredindo para a maior gravidade (elevação progressiva das transaminases, coagulopatia e alteração do nível de consciência) é necessária avaliação para transplante hepático.

A insuficiência hepática fulminante pelo paracetamol é caracterizada pelos critérios do King’s College modificados [11]:

  • Encefalopatia grau III ou IV de West Haven associada a coagulopatia (tempo de protrombina acima de 100 segundos) e disfunção renal (creatinina superior a 3,4 mg/dL)
  • Acidose com pH arterial < 7,3
  • Lactato arterial > 3,5 mmol/L após reposição volêmica precoce
  • Lactato arterial > 3,0 mmol/L após ressuscitação volêmica com restauração da perfusão tecidual.
Tabela 2
Classificação de West Haven para encefalopatia hepática
Classificação de West Haven para encefalopatia hepática

O nível de transaminases não tem um bom valor prognóstico, por isso não está no critério. A presença de um desses critérios relaciona-se a uma alta probabilidade de morte, com sensibilidade de 95%, indicando necessidade de transplante hepático [12, 13].

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