Cigarro Eletrônico e Cessação do Tabagismo
Cigarros eletrônicos ou vapes são produtos que vaporizam nicotina e têm crescido mundialmente. Embora existam muitas preocupações de saúde pública e dúvidas sobre riscos individuais a longo prazo, os cigarros eletrônicos são estudados como meio de cessação de tabagismo. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine em fevereiro de 2024 avaliou essa questão [1]. Esse tópico aborda o tema e os novos estudos.
Como funciona um cigarro eletrônico e qual a diferença para um cigarro convencional?
Cigarro eletrônico ou vape é um dispositivo que usa bateria para aquecer um líquido contendo nicotina. O líquido aquecido é aerossolizado e inalado pelo usuário. O vapor gerado simula a fumaça do tabaco, porém não ocorre combustão durante o processo — diferente do cigarro convencional.
Existem quatro gerações de cigarros eletrônicos [2]. Inicialmente se assemelhavam a cigarros convencionais, porém se modificaram com o tempo. Os pods são cigarros eletrônicos de quarta geração de aparência discreta e alguns se assemelham a um pen drive. Esses dispositivos têm fácil aceitação entre adolescentes e podem passar despercebidos em vários ambientes, incluindo escolas e a própria residência.
O cartucho de cigarro eletrônico contém três principais componentes no líquido que é vaporizado:
- Nicotina — em concentrações variadas, indo de produtos livres de substâncias até concentrações de 36 mg/ml ou até maiores.
- Propilenoglicol ou glicerol — são umectantes, sendo os principais componentes do líquido. Etilenoglicol também foi encontrado na composição de alguns líquidos vaporizados [3].
- Aromatizante — existem mais de 7000 aromas possíveis [4].
Alguns componentes do líquido do cartucho tem potencial carcinogênico [5]. Metais e outras substâncias químicas tóxicas já foram detectados no líquido [6, 7]. Os cigarros eletrônicos também podem ser usados para inalar tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD).
No Brasil, cigarros eletrônicos são proibidos pela ANVISA desde 2009.
Quais os riscos de cigarros eletrônicos para o usuário?
Os riscos possíveis para a pessoa que utiliza cigarro eletrônico podem ser divididos em três categorias: inalação de nicotina, inalação do vapor e riscos do dispositivo.
O consenso atual é que a maioria da morbidade e mortalidade do tabagismo é uma consequência de outras substâncias químicas diferentes da nicotina inaladas durante o fumo [8]. Contudo, a nicotina tem potencial viciante e mantém no usuário o hábito de fumar. Assim como no cigarro convencional, o uso de cigarro eletrônico aumenta a concentração de nicotina no sangue e eleva a frequência cardíaca. A quantidade de nicotina entregue com cigarros eletrônicos depende do padrão de uso, dispositivo e líquido utilizado [9]. Usuários mais experientes tendem a apresentar concentrações de nicotina próxima a de usuários de cigarro convencional. Em relação aos riscos cardiovasculares da nicotina em si, dados da terapia de reposição de nicotina apontam não haver aumento significativo na incidência de eventos coronarianos ou do risco de câncer quando a nicotina é utilizada para cessação do tabagismo [10, 11].
Os cigarros eletrônicos não expõem o usuário a alcatrão, monóxido de carbono e outros gases envolvidos em desfechos negativos, porém existem várias outras substâncias potencialmente tóxicas no vapor inalado. Além disso, o usuário pode recarregar o dispositivo com líquidos adulterados e sem controle de produção, conferindo um risco adicional difícil de mensurar. Em 2019, vários casos de lesão pulmonar grave associados a cigarro eletrônico (EVALI) foram relatados nos EUA, possivelmente relacionados à presença de acetato de vitamina E. Saiba mais no episódio 22 - cigarros eletrônicos e a lesão pulmonar associada ao seu uso.
Sabe-se pouco sobre os riscos a longo prazo de cigarros eletrônicos. Ainda não há tempo suficiente para analisar a questão e a variedade de líquidos e dispositivos dificulta o estudo padronizado. Não existem dados sobre desfechos oncológicos, cardiovasculares e respiratórios a longo prazo. Alguns estudos apontam a presença de substâncias carcinogênicas no vapor, elevação de marcadores substitutos de risco cardiovascular e maior prevalência de sintomas respiratórios [12, 13]. Dados epidemiológicos recentes sugerem que os riscos podem ser comparáveis ao de cigarros convencionais, suplantando as estimativas baseadas em estudos com biomarcadores [14] .
Outro problema específico do cigarro eletrônico é o risco associado ao mau funcionamento do dispositivo. Existem vários relatos de queimaduras, lesões químicas e explosões [15].
Quais as preocupações de saúde pública?
As intervenções que abordam comportamentos de risco podem ter três objetivos: prevenção, cessação e redução de danos. A influência do cigarro eletrônico nesses três componentes deve ser considerada sob uma perspectiva populacional.
As estratégias de redução de danos, quando aplicadas ao uso de substâncias, são fundamentadas na premissa de que a eliminação total de um comportamento de risco na população não é possível. As intervenções de redução de danos não visam abstinência, mas sim proporcionar mais segurança para os usuários, mesmo que continuem usando substâncias. Alguns exemplos são fornecer seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis e distribuição de naloxona em locais com alta prevalência de uso de opioides. As medidas de redução de danos não excluem as intervenções de cessação e prevenção, mas atuam de maneira complementar.
Nesse sentido, alguns pesquisadores ponderam que o cigarro eletrônico teria o potencial de funcionar como uma estratégia de redução de danos em relação ao cigarro convencional. Essa ideia se baseia na estimativa de que os riscos do cigarro eletrônico seriam menores que os do cigarro convencional. Como discutido na seção “Quais os riscos para o usuário?”, há incerteza nessa hipótese, já que boa parte do risco a longo prazo ainda não é conhecido e dados epidemiológicos atuais sugerem riscos similares ao do cigarro comum [14].
Um dos problemas dos cigarros eletrônicos é o uso por pessoas que não eram fumantes, especialmente os jovens [16]. Nessa população, o argumento da redução de danos não se aplica, já que ela não fumava anteriormente. Aqui o cigarro eletrônico atua revertendo os benefícios conseguidos nas últimas décadas com as intervenções de prevenção do tabagismo. Dados dos últimos anos mostram um aumento acelerado da prevalência de uso de cigarros eletrônicos entre jovens. Isso vai no sentido contrário da tendência de redução do tabagismo.
A exposição à nicotina em jovens preocupa pelo potencial de vício da substância. Alguns dados apontam que o cigarro eletrônico pode preceder o uso de cigarro convencional na população mais jovem, funcionando como “porta de entrada” [17]. Isso pode ocorrer em parte por um efeito do cigarro eletrônico de normalizar novamente o comportamento do tabagismo. Os fabricantes de cigarros eletrônicos utilizam saborizantes e aromas com apelos aos jovens, uma estratégia que já foi utilizada pela indústria do tabaco [18, 19].
Outras preocupações incluem intoxicação por nicotina envolvendo a ingestão de líquido com alta concentração da substância e as consequências do vape passivo.
O que as diretrizes e estudos dizem sobre cigarros eletrônicos na cessação do tabagismo?
O novo estudo publicado no New England Journal of Medicine avaliou 1246 pacientes tabagistas na Suíça com desejo de cessar o hábito. Os pacientes do grupo intervenção receberam kits de cigarro eletrônico em sabores e concentrações de nicotina variados. O grupo controle recebia um voucher de 50 francos suíços, que poderia ser utilizado como os participantes quisessem, incluindo para comprar terapia de reposição de nicotina. Ambos os grupos passavam por aconselhamento para cessação do tabagismo, envolvendo orientações de um enfermeiro sobre terapias de cessação de tabagismo fornecidas em uma consulta presencial e em cinco chamadas telefônicas. Pacientes que usaram terapia de reposição de nicotina, outra terapia para cessação de tabagismo ou cigarro eletrônico nos últimos três meses antes do início do estudo foram excluídas.
O desfecho primário foi abstinência contínua de tabagismo em seis meses, verificada de maneira bioquímica. O grupo intervenção teve maior taxa de pacientes abstinentes de tabagismo do que o grupo controle (28,9% vs 16,3%; risco relativo 1,77 IC 95% 1,43 a 2,20). Contudo, menos pacientes no grupo intervenção se mantiveram abstinentes de nicotina, já que muitos se mantiveram utilizando cigarros eletrônicos (abstinência de nicotina no grupo intervenção 20% vs controle 34%). Dos pacientes do grupo controle, 63% utilizaram terapia de reposição de nicotina. Não houve diferença de eventos adversos graves entres os grupos, apesar de o grupo cigarro eletrônico ter mais eventos adversos leves (especialmente relacionado às mucosas).
Outro estudo recente publicado no JAMA encontrou que os cigarros eletrônicos foram não inferiores a vareniclina para cessação de tabagismo [20]. Como em outros estudos, boa parte dos pacientes continuaram usando cigarros eletrônicos ao final do estudo (63%). Uma revisão sistemática recente da Cochrane encontrou superioridade dos cigarros eletrônicos em relação à terapia de reposição de nicotina [21].
Contudo, duas desvantagens dificultam a adoção dos cigarros eletrônicos como medidas de cessação e redução de danos: o desconhecimento sobre os malefícios a longo prazo e os efeitos sobre os jovens, revertendo os avanços conseguidos com a prevenção de tabagismo. Apesar de os novos estudos acrescentarem informação ao debate, sem esses outros dados as ressalvas contra os cigarros eletrônicos devem continuar.
Até o momento, as sociedades médicas não recomendam o uso de cigarros eletrônicos para cessação ou redução de danos do tabagismo [22].
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