Cuidados Paliativos em Urgência e Emergência

Criado em: 29 de Abril de 2024 Autor: Marcela Belleza

Os cuidados paliativos visam melhorar a qualidade de vida de pacientes com doenças incuráveis nas diversas etapas do adoecimento. Pacientes com doenças incuráveis recorrem frequentemente ao pronto-socorro para alívio de sintomas agudos ou em situações avançadas da doença. Esta revisão aborda as principais aplicações dos cuidados paliativos no cenário de urgência e emergência.

Existe espaço para cuidados paliativos na emergência?

Cuidados paliativos são prestados por uma equipe multidisciplinar para melhorar a qualidade de vida de pacientes que possuem doenças incuráveis, em todas as fases do processo do adoecimento [1]. Controlar a dor e sintomas desagradáveis e garantir uma abordagem multiprofissional do paciente e dos familiares são princípios que guiam os cuidados paliativos. O objetivo é influenciar positivamente o curso da doença, considerando que a morte é um processo natural, que não deve ser acelerada ou adiada. 

É comum que pacientes com doenças crônicas busquem o serviço de urgência e emergência em algum momento. Um estudo americano mostrou que metade dos idosos que faleceram buscaram o departamento de emergência no último mês de vida [2]. Situações frequentes para buscar o pronto-socorro são piora da dispneia na doença pulmonar obstrutiva crônica ou insuficiência cardíaca, dor oncológica não controlada, náuseas e vômitos por quimioterapia e piora de funcionalidade ou do estado geral em pacientes com demências [3, 4].

Além de doenças crônicas com intercorrências, uma característica dos cuidados paliativos no pronto-socorro é a assistência em casos graves de instalação rápida - como AVC, síndrome coronariana aguda e trauma. Essas situações podem mudar drasticamente a funcionalidade do paciente e demandas de cuidados paliativos podem surgir. 

A demanda por cuidados paliativos na emergência pode ser maior do que se supõe em uma análise superficial [5]. A implementação de cuidados paliativos pode elevar a qualidade do cuidado ao controlar melhor os sintomas, fornecer melhor apoio emocional para pacientes e familiares e garantir uma comunicação mais efetiva [6, 7]. Ao mesmo tempo, evidências apontam redução de tempo de internação e de custos associados ao cuidado [8, 9]. Existem iniciativas para integrar de maneira mais fluida os cuidados paliativos ao atendimento no pronto-socorro e rastrear os pacientes que mais se beneficiam dessa abordagem [10, 11].

Dessa forma, o conhecimento de cuidados paliativos é recomendado para o atendimento no cenário de emergência. O American College of Emergency Physicians (ACEP) sugere que as equipes de unidade de urgência sejam treinadas em habilidades de cuidados paliativos [12]. Essas habilidades podem ser dividas nos seguintes pontos: 

  • Reconhecimento da necessidade de cuidados paliativos: avaliação prognóstica; indicação.
  • Aplicação de cuidados paliativos básicos: controle de sintomas; comunicação de notícias difíceis; elaboração de plano de cuidados que respeite os valores e desejos do paciente. 
  • Especificidades dos cuidados paliativos no pronto-socorro: conhecimento de aspectos éticos e legais; transição de cuidados 

Pacientes já em cuidados paliativos na emergência

Pacientes com doenças crônicas podem ser admitidos na emergência já com um plano de cuidados que envolva os cuidados paliativos. Nesse cenário, intercorrências esperadas para a trajetória do adoecimento já foram discutidas. A equipe assistente, o paciente e familiares podem tomar decisões antecipadas sobre a linha terapêutica a ser seguida em uma piora aguda.

Uma das formas de representação do plano de cuidados é a diretiva antecipada de vontade (DAV). Este é um documento com as preferências de cuidado do paciente. Em uma situação clínica em que o indivíduo não pode expressar suas vontades, a DAV serve como um guia para a tomada de decisão [13].

A DAV deve ser registrada em prontuário. Recomenda-se manter cópias com o paciente e pessoas de sua confiança. Também é recomendado que um médico de referência mantenha uma cópia. Não há obrigatoriedade de registro legal do documento. Este link contém um exemplo de diretiva antecipada de vontade [14]. Este modelo descreve alguns desejos, vontades e recusas possíveis diante de uma condição de terminalidade. 

Quando indicar cuidados paliativos na emergência em pacientes sem diretivas antecipadas de vontade?

A Organização Mundial de Saúde defende que os cuidados paliativos devem ser iniciados o mais precocemente possível, em conjunto a outras medidas terapêuticas que sejam aplicáveis. Esta ideia é reforçada pelo ACEP e pelo programa Choosing Wisely, que aconselham não atrasar cuidados paliativos no departamento de emergência aos pacientes que possivelmente se beneficiam [15].

Quando a situação clínica é menos conhecida e a tomada de decisão deve ser feita em pouco tempo, a indicação de cuidados paliativos se baseia em ferramentas prognósticas. Predizer desfechos como funcionalidade e mortalidade depende de fatores intrínsecos ao paciente (idade, funcionalidade prévia), à doença (número de comorbidades, indicadores específicos) e ao meio (recursos disponíveis para o tratamento). 

No pronto-socorro, uma estratégia rápida para predição de mortalidade é usar a pergunta surpresa. O profissional que atende o paciente deve se questionar se “ficaria surpreso caso o paciente morresse em um ano” [16].

Um estudo brasileiro avaliou a acurácia da pergunta surpresa no pronto-socorro para predizer mortalidade intra-hospitalar. Pacientes que tiveram resposta negativa ("eu não me surpreenderia se o meu paciente morresse em um ano") apresentaram mortalidade intra-hospitalar quase oito vezes superior àqueles que tiveram resposta positiva ("eu me surpreenderia se o meu paciente morresse em um ano") [17].

Tabela1
Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT-BRTM)
Supportive and Palliative Care Indicators Tool (SPICT-BRTM)

O ACEP inclui outros indícios de que o paciente que procura o serviço de emergência pode se beneficiar de cuidados paliativos:

  • Diagnóstico de doença progressiva ou agudamente ameaçadora à vida
  • Eventos clínicos ou deterioração significativa da trajetória de doença
  • Mudança significativa no enfrentamento da doença, por parte do paciente ou cuidador, com necessidade de maior apoio do serviço de saúde
  • Exaustão de terapias curativas para uma doença grave e progressiva

Em relação a doenças crônicas, um método de avaliação sobre a indicação de cuidados paliativos é a abordagem SPICT [18], descrita na tabela 1

Intervenções invasivas na sala de emergência e tomada de decisão

A sala de emergência é o cenário típico de intervenções invasivas como intubação orotraqueal, reanimação cardiopulmonar, definição sobre hemodiálise e recomendação de procedimentos cirúrgicos imediatos [19].

A tomada de decisão pode ser difícil e não existem critérios absolutos para a limitação de suporte avançado de vida. Entender os riscos de cada intervenção e o potencial de benefício é fundamental para oferecer o tratamento ideal [20, 21]. O impacto das intervenções sobre o potencial de melhora de sobrevida ou qualidade de vida deve ser alinhado às expectativas, valores e crenças dos pacientes ou de seus representantes  [19]. 

No cenário de emergência, a tomada de decisão em cuidados paliativos pode ser roteirizada em quatro etapas [22]:

A - Plano avançado de cuidados (advance care plan): deve-se revisar a presença de diretivas antecipadas que guiem a tomada de decisão. Alguns pacientes podem recusar intervenções. 
B - Controle de sintomas (better symptom control): avaliar possibilidade de controle imediato do sofrimento, dor, dispneia ou outro desconforto, de forma farmacológica ou não invasiva. 
C - Cuidadores: buscar familiares ou conhecidos que possam acrescentar informações à história clínica (contexto funcional e comorbidades). 
D - Decisão: avaliar a capacidade do paciente de discutir objetivos do cuidado ou definir um responsável substituto. 

Alguns pacientes chegam ao serviço de emergência em situações avançadas de doenças crônicas, quando o processo de óbito é entendido como irreversível. Nestes cenários, as medidas invasivas de manutenção da vida não são consideradas adequadas, por poderem prolongar o sofrimento do paciente e de seus familiares.

Quando existe dúvida sobre a reversibilidade de uma intercorrência, podem ser propostas intervenções mais agressivas com reavaliação periódica. Esta conduta é conhecida pelo termo em inglês time-limited trial [23, 24]. É um acordo entre a equipe médica e o paciente ou familiares em que são estabelecidas intervenções terapêuticas por determinado tempo para avaliar a resposta do paciente. Mais detalhes sobre essa conduta foram discutidos neste tópico.

Comunicação em emergência

A comunicação de más notícias em emergências pode apresentar dificuldades. Alguns entraves são o tempo necessário para uma boa comunicação, ausência de contato com o paciente e falta de treinamento em comunicação [25].

Técnicas para a comunicação de notícias difíceis facilitam a entrega de informações, mantendo o conteúdo a ser comunicado, empatia e respeito aos desejos do paciente e familiares. Existem roteiros que podem servir de guia para a comunicação clara e empática de más notícias, como o SPIKES [26], BREAKS [27] e ABCDE [28]. O SPIKES é amplamente estudado e utilizado. Veja na tabela 2.

Tabela 2
Roteiro SPIKES para comunicação de notícias difíceis
Roteiro SPIKES para comunicação de notícias difíceis

Independentemente do método de comunicação, algumas características são universais:

  • Esclarecer o objetivo e tempo dedicado ao processo de comunicação
  • Conhecer detalhes que embasam a comunicação
  • Identificar os integrantes da conversa - equipe de saúde, paciente e/ou familiares
  • Comunicar-se com empatia e clareza, evitando linguagem técnica
  • Documentar o plano de cuidados e pessoas presentes quando a comunicação ocorreu. 

Sintomas a controlar

Sintomas não controlados de doenças crônicas são um motivo comum de idas ao pronto-socorro e podem ser indicação de cuidados paliativos. A causa do sintoma sempre deve ser investigada e revertida quando possível. No cenário de emergência, medicamentos sintomáticos são usados para alívio mais rápido do desconforto [29]. Para uma discussao mais aprofundada sobre controle de sintomas, veja a revisão Controle Farmacológico de Sintomas.

Dor

A dor é o motivo da procura do pronto-socorro em até 80% dos casos. O manejo do sintoma deve ser iniciado o mais precocemente possível, mesmo antes de um diagnóstico etiológico definitivo [30]. A tabela 3 descreve os principais medicamentos para analgesia no pronto atendimento. 

Tabela 3
Opções farmacológicas para tratamento da dor aguda
Opções farmacológicas para tratamento da dor aguda

Dor é um sintoma comum no fim de vida. Muitos pacientes têm dor crônica e procuram o pronto-socorro por dificuldade de controle do sintoma. Algumas causas dessa demanda incluem incapacidade de administração de medicamentos, intolerância a eventos adversos e progressão da doença de base [31].

Pacientes em uso crônico de opioides podem necessitar de troca de via de administração ou de trocar o opioide em si. Esse processo é chamado de rotação de opioides sendo detalhado neste vídeo.

Dispneia

Dispneia é uma queixa comum em pacientes com câncer e doenças crônicas como DPOC e insuficiência cardíaca. A piora do sintoma deve ser investigada, lembrando de intercorrências como exacerbações infecciosas, tromboembolismo pulmonar ou progressão da doença [32].

Pacientes com queixa de dispneia devem ser avaliados quanto à presença de hipoxemia e dessaturação. A suplementação de oxigênio pode ser indicada como medida para controle de dispneia em pacientes com pO2 < 55mmHg [33].

Os opioides são adjuvantes no tratamento sintomático da dispneia, especialmente morfina e codeína em pacientes com DPOC. Nesse cenário, são recomendadas doses baixas de opioides (menos que 30 mg de morfina oral) e não parecem estar associadas a aumento de mortalidade [34]. 

Sintomas associados à dispneia, como a ansiedade, podem ser motivo da piora clínica [32]. Nesses casos, os benzodiazepínicos podem ser tentados para controle da queixa respiratória, especialmente na refratariedade a outras estratégias [35]. Deve-se atentar ao risco de hipoventilação, especialmente quando usados em conjunto a opioides [29];

Náuseas e vômitos

Tabela 4
Opções farmacológicas para tratamento de náuseas e vômitos
Opções farmacológicas para tratamento de náuseas e vômitos

Náuseas e vômitos são sintomas inespecíficos, com etiologias tão variadas quanto uremia, hipercalcemia, hipertensão intracraniana, obstrução intestinal, quimioterápicos e opioides. Este caso clínico aborda a investigação desse sintoma.

Assim como para o controle dos demais sintomas, a causa das náuseas deve ser pesquisada [29]. Não há evidência forte de que o tratamento sintomático baseado na fisiopatologia seja superior à terapia empírica [36]. Os principais medicamentos para manejo das náuseas e vômitos no pronto-socorro estão descritos na tabela 4.

Aspectos legais e bioéticos sobre cuidados paliativos

Alguns dilemas éticos e inseguranças legais podem surgir ao discutir a abordagem de cuidados paliativos no pronto-socorro. Familiares ou a própria equipe de saúde podem questionar se a instituição de cuidados paliativos acelera ou causa a morte.

Alguns conceitos devem ser esclarecidos para facilitar a compreensão:

  • Eutanásia: processo ativo de abreviação da vida. 
  • Distanásia: prolongamento ou aumento do sofrimento do processo de morte, sem benefício claro ao paciente.
  • Ortotanásia: entendimento da morte como um fato natural, que deve ocorrer no momento correto - sem acelerar ou retardar com sofrimento. 

A eutanásia é considerada crime no Brasil (homicídio doloso). O artigo 41 do Código de Ética Médica esclarece que "é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal"

A distanásia pode ser traduzida como obstinação terapêutica, uma tentativa de reversão da morte quando esse desfecho é inevitável. Sobre este aspecto, o artigo 41 do Código de Ética Médica dispõe que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis, ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".

Na Constituição Federal Brasileira, Capítulo I, artigo 5°, lê-se que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".

Os princípios da bioética também são importantes ao se discutir os benefícios de cuiados paliativos. O princípio da autonomia do paciente é descrito desde 1979 [37]. A declaração universal sobre bioética e direitos humanos da UNESCO reforça que "deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia" [38]. 

Nos casos em que o paciente é incapaz de exercer sua autonomia, a resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina, em seu artigo 2⁠º dispõe que: 

"Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. §  5º Não sendo  conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo  representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o  médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente." 

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