Varfarina: Bulário e Quando Preferir em Relação aos DOACs
A varfarina é um anticoagulante antagonista da vitamina K. Ela atua inibindo os fatores de coagulação dependentes desse nutriente: proteína C, proteína S e fatores de coagulação II, VII, IX e X. Os anticoagulantes orais diretos (DOAC) são a primeira escolha em muitas situações, mas a varfarina ainda tem espaço na prática. Uma recente revisão do Journal of the American College of Cardiology [1] avaliou essa questão e um ensaio clínico de janeiro de 2024 publicado no Circulation estudou a varfarina em indivíduos frágeis [2]. Este tópico revisa o uso atual de varfarina.
Qual o alvo terapêutico?
Os antagonistas da vitamina K (AVK) são monitorados pelo tempo de protrombina (TP), um teste que varia significativamente entre diferentes instituições. Para padronizar essa variação, utiliza-se a razão normalizada internacional (RNI). Embora os AVK também afetem o tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa), isso é menos comum e menos intenso.
Para a maioria das indicações, o alvo de RNI da varfarina é entre 2 e 3. Pode-se indicar alvos de RNI mais elevados em situações pontuais, como a anticoagulação na síndrome antifosfolípide e nas próteses valvares mecânicas [3, 4].
O tempo dentro da faixa terapêutica (TTR, do inglês time in therapeutic range) é a proporção dos valores de RNI dentro do intervalo estipulado. Valores de TTR maiores que 65 ou 70% indicam uma anticoagulação adequada.
Como iniciar a varfarina?
Não existe um método consensual de titulação inicial. Os protocolos institucionais devem ser seguidos. Um exemplo de algoritmo para a prescrição inicial da varfarina é o seguinte [5]:
- Antes do início da varfarina, avaliar o RNI, TTPa, contagem de plaquetas, função hepática (insuficiência hepatocelular pode dificultar a titulação) e teste de gravidez quando apropriado (varfarina é teratogênica).
- Na ausência de contraindicações (contagem de plaquetas < 50.000, coagulopatia grave ou gestação), iniciar a varfarina na dose de 5 mg uma vez ao dia. As doses devem ser noturnas, permitindo mudanças de dose no mesmo dia de dosagens do RNI. A tomada noturna serve apenas para essa conveniência. Outro horário pode ser adotado se proporcionar melhor adesão.
- Na manhã do terceiro dia de tratamento (ou seja, após duas doses de varfarina) é dosado o primeiro RNI. A terceira dose da varfarina poderá ser então ajustada conforme a tabela 1. Esse ajuste inicial é sugerido para pacientes jovens, sem comorbidades e sem medicamentos que interfiram na varfarina. Doses menores podem ser utilizadas em idosos, desnutridos e pessoas em uso de fármacos com interação. Doses maiores podem ser utilizadas para pacientes que sabidamente utilizavam doses elevadas de varfarina no passado.
- Novas dosagens de RNI são usualmente feitas diariamente em pacientes internados por conta dos fatores interferentes que comumente existem neste cenário. Deve-se evitar coletas de acessos centrais heparinizados, pois a heparina pode levar a falsa elevação do RNI. No ambulatório, as dosagens podem ser feitas diariamente, em dias alternados ou a cada três dias.
O início da varfarina com a dose de 10 mg/dia ou com doses de ataque não diminui o tempo para se atingir a meta de RNI e pode agregar maior risco de sangramento [6]. Recomenda-se o início da varfarina em doses mais baixas, como 2,5 mg/dia ou 2,5 e 5 mg/dia em dias alternados, nas seguintes situações: maiores de 70 a 80 anos, fragilidade, desnutrição, uso de fármacos que aumentam os níveis de varfarina (como a amiodarona), doença renal crônica, cirrose e insuficiência cardíaca.
Outra forma de iniciar a varfarina é com algoritmos computadorizados. Eles utilizam características do indivíduo que interferem na varfarina e sugerem uma dose inicial individualizada. Essa abordagem foi validada pelos ensaios clínicos PARMA 5 [7] e DAWN AC [8], cujos resultados mostraram um maior tempo de RNI no alvo, porém sem redução de desfechos tromboembólicos. Um exemplo gratuito de algoritmo computadorizado é encontrado neste site.
Apesar do aumento do RNI já no início do uso da varfarina, o efeito anticoagulante pleno pode demorar até uma semana, mesmo com o RNI dentro da faixa. Isso ocorre porque a mudança laboratorial reflete principalmente a diminuição dos fatores de coagulação com meia vida mais curta, mas o efeito pleno requer que os de meia vida mais longa também sejam depletados. Por isso, em situações de alto risco trombótico ou embólico (como na fase aguda de um tromboembolismo venoso), a varfarina deve ser iniciada em conjunto com a heparina, já que esta última confere efeito anticoagulante imediato. A heparina poderá ser suspensa após duas dosagens de RNI no alvo. A anticoagulação na fibrilação atrial não requer esse cuidado, podendo-se utilizar a varfarina sem heparina.
Como monitorar o efeito da varfarina?
O monitoramento da anticoagulação pode ser feita das seguintes formas:
- Automonitoramento: o próprio paciente faz as medidas de RNI e os ajustes baseando-se em algoritmos. As medidas são feitas com um aparelho de RNI portátil, semelhante a um glicosímetro. Evidências apontam que esse é o método que atinge os valores mais elevados de TTR [9]. As limitações são a baixa disponibilidade e a necessidade de capacitação do paciente.
- Monitoramento em centros de anticoagulação utilizando algoritmos: a dosagem do RNI é conferida por profissionais de saúde de um centro de referência que orientam os ajustes. É o método que alcança a segunda maior média de TTR [9]. Um dos algoritmos utilizados é o do estudo RE-LY - veja a tabela 2. Ele não deve ser utilizado para o início do tratamento. Evidências sugerem que pacientes com RNI muito estável podem ser avaliados a cada 12 semanas [10].
- Ajustes posológicos e frequência de monitoramento definidas pelo médico: algoritmos e nomogramas não são utilizados. É o que confere os menores valores de TTR e requer experiência do médico com a varfarina. Este método não é recomendado pela maioria das sociedades [9].
A variação no consumo de alimentos ricos em vitamina K (legumes verdes, como couve de Bruxelas, brócolis e espinafre) pode influenciar o desempenho da varfarina. Não se deve orientar que os pacientes excluam os alimentos ricos em vitamina K, mas sim que procurem consumir uma quantidade similar desses alimentos ao longo do tempo.
Diversos medicamentos podem interagir com a varfarina, como visto na tabela 3. Destaca-se a amiodarona, já que o uso simultâneo com a varfarina é comum na fibrilação atrial e pode aumentar o RNI. A presença de interação com a varfarina não deve contraindicar necessariamente o uso de medicamentos.
Contudo, quando prescritos, está indicada uma monitorização mais frequente do RNI.
Doenças intercorrentes podem influenciar a varfarina de diversas formas e o RNI deve ser monitorado com maior frequência.
Quando a varfarina deve ser preferida aos DOACs?
Uma publicação recente do Journal of the American College of Cardiology realizou uma revisão sistemática sobre o tema [1]. Nas seguintes situações há claro benefício do uso de varfarina em comparação com um DOAC:
- Fibrilação atrial em indivíduos com valvopatias reumáticas - achado do estudo INVICTUS (veja mais em Fibrilação Atrial).
- Fibrilação atrial com estenose mitral moderada a grave - como essa população foi excluída dos estudos maiores dos DOAC, a varfarina permanece como a primeira escolha neste grupo segundo a diretriz americana de fibrilação atrial de 2023 (veja mais em Anticoagulação na Fibrilação Atrial com Doença Valvar.
- Próteses valvares mecânicas
- Síndrome antifosfolípide (veja mais em Anticoagulação na Síndrome Antifosfolípide)
- Prevenção de eventos trombóticos em pacientes com dispositivos de assistência ventricular.
Recentemente, o ensaio clínico FRAIL-AF lançou novas discussões sobre o uso de DOAC [2]. Esse estudo recrutou 2621 indivíduos com mais de 75 anos com fibrilação atrial e síndrome de fragilidade que estavam em uso de varfarina. Os pacientes foram randomizados para trocar a varfarina por um DOAC (grupo intervenção) ou manter o tratamento atual (grupo controle). Os autores esperavam encontrar uma redução no desfecho primário de sangramentos graves ou clinicamente relevantes no grupo que fez a transição para DOAC. Contudo, o estudo foi encerrado precocemente por futilidade, devido a um aumento expressivo na incidência de sangramentos no grupo DOAC (HR 1,69; IC de 95%: 1,23-2,32; P=0,00112). Esse estudo levantou o questionamento se realmente vale a pena transicionar para DOAC o paciente idoso frágil em uso de varfarina.
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