Caso Clínico #20
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Um homem de 50 anos procura assistência médica com queixa de fraqueza nos quatro membros. Refere início dos sintomas há três meses com dificuldade para subir o lance de escadas que há em sua casa e dificuldade para dirigir. Há dois meses, notou dormência em ambos os pés com dificuldade de andar como se estivesse “pisando em nuvens”. Há um mês, os sintomas atingiram ambas as mãos com queixa de dificuldade de manusear o celular e utilizar chaves. Além disso, informa dificuldade para pegar objetos em prateleiras altas.
O paciente nega quaisquer antecedentes ou medicamentos de uso contínuo e não ia ao médico com frequência.
O paciente traz sintomas de fraqueza muscular e de alteração de sensibilidade. A fraqueza muscular é identificada por uma queixa bilateral dos músculos proximais e distais. O acometimento proximal é visto pela dificuldade para subir escadas e pegar objetos em prateleiras e o acometimento distal através da dificuldade de manusear objetos e dificuldade para dirigir.
As queixas sensitivas podem ser divididas em positivas, quando há dor ou parestesia (formigamento), e negativas, quando há hipoestesia (dormência). Outra forma de apresentação de queixas sensitivas é a ataxia sensitiva, caracterizada pela dificuldade de manusear objetos ou dificuldade para deambular por perda da sensibilidade profunda (propriocepção). Classicamente, ocorre piora da ataxia sensitiva em ambientes escuros por perda da ajuda visual. O paciente apresenta queixas de sensibilidade e parece descrever uma ataxia sensitiva.
O quadro então é caracterizado por uma queixa sensitivo-motora de início motor, progressiva, bilateral e crônica sem sintomas autonômicos. É necessário encontrar a topografia no sistema nervoso que pode justificar esses achados.
As principais características relacionadas às topografias do sistema nervoso são:
- Córtex: início agudo, queixas restritas a um lado do corpo, presença de outros sintomas corticais (ex: alteração de linguagem, defeitos de campo visual)
- Medula: queixa sensitiva com formação de nível sensitivo, sintomas motores de liberação piramidal como a espasticidade e comprometimento autonômico como disfunção esfincteriana ou disfunção erétil.
- Unidade motora: esse segmento pode ser dividido em quatro partes:
- Ponta anterior da medula: síndrome do neurônio motor inferior com déficit motor isolado, fasciculações proeminentes.
- Raízes, plexos e nervos periféricos (sistema nervoso periférico): síndrome do neurônio motor inferior com déficit sensitivo-motor em padrões de nervos, plexos ou raízes.
- Junção neuromuscular: déficit motor isolado, fatigabilidade presente.
- Músculo: déficit motor isolado, pode haver diferentes padrões de acometimento.
Pelos dados da história, a topografia provável é de raízes ou nervos periféricos.
O exame neurológico deve procurar achados que confirmem a hipótese e determinem um diagnóstico topográfico acurado. O destaque aqui é para o exame motor e sensitivo para confirmar os achados e determinar características de síndrome de primeiro neurônio motor e padrão de perda sensitiva.
No exame físico, o paciente tem sinais vitais estáveis, com frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto, pressão arterial de 126/88mmHg, frequência respiratória de 12 incursões respiratórias por minuto e afebril. Não tem alteração de exame cardiopulmonar.
No exame neurológico, apresenta força grau 4 em músculos proximais de membros superiores e inferiores, e força grau 3 em musculatura distal de membros superiores e inferiores. Reflexos osteotendíneos abolidos globalmente. Reflexo cutâneo plantar sem resposta ao estímulo bilateralmente. Alterações tróficas de pés e mãos com atrofia em músculos interósseos dorsais e musculatura intrínseca dos pés (ver figura 1).
No exame sensitivo, apresenta hipoestesia superficial até terço superior de membros inferiores e em mãos (padrão de luva). Sensibilidade vibratória e artrestesia diminuídas em membros superiores e inferiores. A marcha do paciente era talonante com apoio unilateral. Não apresentava alterações no exame cognitivo ou de nervos cranianos.
Com os achados objetivos de fraqueza, arreflexia, atrofia e hipoestesia, o diagnóstico topográfico está no sistema nervoso periférico. O termo “neuropatias periféricas” é abrangente e engloba desde as raízes e plexos até os nervos propriamente ditos. O próximo passo na investigação é determinar a estrutura acometida dentro do sistema nervoso periférico (ver tabela 1 e fluxograma 1).
A perda sensitiva distal em padrão de luvas e botas e simétrica sugere uma polineuropatia. A diferenciação de polineuropatia e polirradiculopatia (quando há acometimento associado de raízes nervosas) pode ser difícil. Alterações como fraqueza proximal, reflexos osteotendíneos proximais (patelar e de membros superiores) abolidos, dor lombar ou dor que irradia em padrão de raiz nervosa, ajudam a diferenciar as duas síndromes. O paciente apresenta reflexos osteotendíneos abolidos e fraqueza proximal, portanto há sinais de acometimento de raízes nervosas, além de nervos periféricos, caracterizando uma provável polirradiculoneuropatia.
Existem características na apresentação de neuropatias periféricas que são considerados sinais de alarmes. Essas situações podem se correlacionar com doenças com potencial de reversibilidade ou com melhora funcional com tratamento. Os principais sinais de alarmes estão na tabela 2.
Um dos sinais de alarmes das neuropatias periféricas é um padrão de acometimento classificado como não comprimento dependente. A diferença entre neuropatia comprimento-dependente e não comprimento-dependente se dá pela presença de acometimento proximal no início da doença ou não [1].
- Neuropatias comprimento-dependentes: a lesão se inicia nos nervos mais longos. Classicamente inicia-se em região distal de pés simetricamente. O acometimento de mãos surge quando a região próxima aos joelhos é acometida e surge, em geral, após um ano do início dos sintomas. Em alguns casos, os membros superiores podem não ser afetados. O predomínio dos sintomas é sensitivo e raramente leva a limitações funcionais graves. A principal etiologia desse grupo é diabetes.
- Neuropatias não comprimento-dependentes: são o padrão principal das polirradiculoneuropatias. Nelas, há início concomitante ou sequencial de membros superiores e inferiores e/ou de região proximal e distal dos membros. Isso ocorre pois há acometimento simultâneo de nervos (sintomas distais) e de raízes (sintomas proximais). Sintomas motores tendem a ser mais proeminentes.
O paciente apresenta padrão de polirradiculoneuropatia não comprimento-dependente. Este padrão é um dos sinais de alarme do caso, assim como limitação funcional e sintomas motores predominantes. O ideal é internar o paciente para investigação complementar com exames laboratoriais e eletroneuromiografia.
Na investigação laboratorial, a pesquisa de glicemia e hemoglobina glicada, vitamina B12 e imunofixação de proteínas séricas para pesquisa de proteínas anormais foram os exames de maior rendimento diagnóstico em população selecionada com polineuropatia distal simétrica [2]. Em séries de casos, até 10% dos pacientes com polineuropatia distal simétrica tinham presença de gamopatias de significado indeterminado (MGUS) [2]. Outros exames indicados para investigação de polineuropatia são sorologias para infecções crônicas, como HIV, HCV, HBV e sífilis, além de função hepática, função renal e função tireoidiana.
O paciente foi internado e realizou exames laboratoriais. O hemograma apresentou hemoglobina de 13.5 g/dL com VCM de 87 fL, leucócitos de 5500/mm3, sem alteração na diferenciação, e plaquetas de 350.000/mm3. Função renal, função hepática e função tireoidiana sem alterações. A vitamina B12 estava com um valor normal de 356 pg/mL, glicemia de jejum de 98 mg/dL e hemoglobina glicada de 5,6%. Sorologias para HIV, sífilis, hepatite B e C vieram não reagente. Eletroforese de proteínas com imunofixação não detectou presença de proteínas anormais.
O paciente não teve alterações na avaliação laboratorial. O próximo passo da investigação de uma polineuropatia é identificar o padrão de acometimento eletrofisiológico através da eletroneuromiografia.
A eletroneuromiografia auxilia em subdividir as neuropatias em axonais e desmielinizantes. Essa diferenciação é útil por restringir as causas possíveis para a neuropatia. Não há como diferenciar os dois padrões apenas pela avaliação clínica.
A bainha de mielina funciona como a cobertura de proteção de um fio elétrico e o axônio como a parte metálica interna do fio. Lesões de padrão axonal primário são causadas por dano à parte metálica interna do fio, enquanto lesões desmielinizantes são danos à cobertura de proteção do fio. Lesões desmielinizantes graves podem levar a um dano axonal secundário, causando um padrão chamado intermediário ou misto (figura 2).
A eletroneuromiografia é um exame neurofisiológico que é composto pelo estudo de condução nervosa e a eletromiografia. No estudo condução nervosa, os dois parâmetros principais são a velocidade de condução e bloqueios de condução. As neuropatias desmielinizantes causam principalmente diminuição das velocidades de condução e presença de bloqueios de condução, quando há diminuição significativa da amplitude entre dois pontos de avaliação do mesmo nervo. As neuropatias axonais não modificam a velocidade de condução, porém causam diminuição das amplitudes dos potenciais de ação motores e sensitivos [3].
O acometimento de raízes nervosas é avaliado pela onda F, no estudo de condução nervosa. Essa avaliação é feita emitindo um estímulo elétrico em direção proximal. Ao atingir a ponta anterior da medula, os corpos dos neurônios motores inferiores são novamente despolarizados. Essa nova despolarização gera a onda F, que pode ser captada pelo eletrodo situado no nervo estimulado. Um aumento no tempo de resposta reflete lesão na parte proximal, onde ficam situadas as raízes nervosas.
Já o estudo da eletromiografia é realizado com uma agulha inserida no músculo de interesse. Analisa-se a atividade elétrica muscular no repouso e na contração muscular voluntária. A eletromiografia tem achados mais exuberantes e específicos nas doenças do músculo e da junção neuromuscular. Em casos de neuropatias, a desnervação dos músculos causa uma instabilidade de membrana que gera os achados de fibrilações e ondas agudas e alteração no recrutamento muscular de padrão neurogênico [3].
Como regra geral, a maioria das polineuropatias sensitivas distais tóxico-metabólicas tem padrão axonal, enquanto grande parte das neuropatias adquiridas e imunomediadas tem padrão desmielinizante. No entanto, os sinais de alarme clínico são importantes, pois há exceções a essa regra (fluxograma 2).
Foi realizado a eletroneuromiografia. No estudo de condução nervosa, as velocidades de condução motoras estavam reduzidas nos quatro membros. Bloqueio de condução nos nervos fibulares, tibiais, ulnares e medianos foram notados. As ondas F estavam com latências prolongadas. Na eletromiografia, há presença de ondas agudas positivas e fibrilação ao repouso nos músculos flexores do carpo e abdutor do hálux. À contração muscular, um padrão de recrutamento neurogênico estava aparente. O laudo final era de um exame compatível com polineuropatia periférica desmielinizante sensitivo-motora multifocal nos quatro membros.
A eletroneuromiografia do paciente apresenta sinais compatíveis com neuropatia desmielinizante com acometimento de raízes (polirradiculoneuropatia) pelo achado de latência aumentada de ondas F.
Por se tratar de um quadro de polirradiculoneuropatia desmielinizante crônica (mais de oito semanas), é necessária a investigação de causas imunomediadas e inflamatórias. Algumas causas já foram afastadas como infecções virais e paraproteinemias.
É necessário analisar o líquor nesse momento. A análise do líquor é recomendada nos casos de neuropatias desmielinizantes ou em casos de polirradiculoneuropatias agudas. A elevação de proteínas (hiperproteinorraquia) com baixa celularidade no líquor é conhecida como dissociação proteino-citológica. Esse achado é característico de neuropatias inflamatórias imunomediadas como a Síndrome de Guillain Barré e a polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica (PIDC).
Foi detectada uma hiperproteínorraquia de 98 mg/dL com uma citologia normal de 4 cél/mm³, configurando uma dissociação proteíno-citológica. O diagnóstico final do paciente foi de polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica (PIDC).
O paciente foi submetido a pulsoterapia com metilprednisolona com melhora importante dos sintomas. Houve manutenção da imunossupressão com prednisona oral com programação de desmame. O paciente no momento está em acompanhamento ambulatorial e apresentou melhora da atrofia de mãos (figura 3).
A PIDC é uma doença rara, com incidência aproximada de 1 caso para 100.000 pessoas por ano, com predomínio masculino. No início do quadro, há um importante diagnóstico diferencial com síndrome de Guillain-Barré, que costuma ter uma apresentação aguda. O principal ponto de diferenciação é a apresentação insidiosa e progressiva do PIDC, com progressão em mais de 8 semanas. No entanto, também há apresentações recorrentes de PIDC. Quadros que parecem recorrência de síndrome de Guillain-Barré podem ter como diagnóstico final PIDC.
A dissociação proteíno-citológica está presente em até 90% dos casos de PIDC. A maioria dos pacientes têm celularidade normal (até 5 células/mm³) e aqueles com mais de 10 células/mm³ devem ser investigados para causas infecciosas. A eletroneuromiografia é característica de desmielinização em 60% dos pacientes. O reconhecimento sindrômico da PIDC é importante, pois é uma doença tratável com até 75% pacientes com sequelas mínimas no seguimento de longo prazo [4].
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- As neuropatias periféricas podem ter diversos padrões de acometimento. O mais comum é a polineuropatia distal simétrica, cuja etiologia mais comum é a neuropatia diabética.
- Ao avaliar um paciente com neuropatia periférica, deve-se buscar ativamente sinais de alarme que motivem investigação adicional e encaminhamento para o especialista.
- A investigação laboratorial é necessária em todo paciente com diagnóstico de neuropatia periférica. Um diagnóstico de polineuropatia “idiopática” ou polineuropatia diabética não deve ser estabelecido sem que haja uma correta investigação.
- A eletroneuromiografia é um exame útil na avaliação diagnósticae das neuropatias periféricas. O padrão desmielinizante é mais associado a neuropatias imunomediadas, enquanto o padrão axonal é mais relacionado às neuropatias tóxico-metabólicas.
- A PIDC é um diagnóstico diferencial das polineuropatias desmielinizantes subagudas e crônicas. Seu reconhecimento é importante por se tratar de uma doença tratável com boas taxas de recuperação funcional.
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