Isquemia Mesentérica
Em 2024, o New England Journal of Medicine — Evidence trouxe dois artigos de revisão sobre isquemia mesentérica, uma condição grave e de difícil reconhecimento [1, 2]. Este tópico aproveita as publicações para discutir o tema.
Tipos de isquemia mesentérica
Isquemia mesentérica ocorre quando o fluxo sanguíneo para o intestino é insuficiente para suprir a demanda metabólica local. O atraso no reconhecimento influencia nas taxas de mortalidade, estimadas em 60 a 80% [3]. Os tipos de isquemia mesentérica são categorizados pela causa e cronicidade da interrupção do fluxo sanguíneo (fluxograma 1).
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A obstrução arterial aguda é a causa mais comum e é uma emergência médica. As principais etiologias são a embolia (40 a 50% dos casos) e a trombose de um vaso mesentérico estenosado (20 a 35% dos casos). Em menos de 5% dos casos, é decorrente da dissecção ou inflamação arterial.
A obstrução arterial também pode ser crônica, em pacientes com doença aterosclerótica progressiva. O principal fator de risco relacionado é tabagismo [4].
A trombose venosa intestinal pode causar edema e prejudicar o fluxo sanguíneo local. Esse evento ocorre em 5 a 15% dos casos de isquemia mesentérica. É possível identificar um fator causal em 90% dos casos de trombose venosa intestinal, como trauma, trombofilias ou inflamação local (por exemplo, pancreatite e diverticulite).
Alguns pacientes podem apresentar isquemia mesentérica não-oclusiva. Isso ocorre em situações de baixo fluxo transitório, como choque, insuficiência cardíaca ou em pacientes em hemodiálise [5]. Espasmos das artérias intestinais podem acontecer em pacientes em uso de cocaína ou vasopressores [1].
Outro diagnóstico que pode ser enquadrado como isquemia intestinal é a colite isquêmica. Diferente de isquemia mesentérica, na colite isquêmica raramente um embolo ou trombo causados por fibrilação atrial ou estados de hipercoagulabilidade é responsável pelo quadro. O mais comum é um estado de hipofluxo não oclusivo levando a isquemia de regiões já com menor irrigação (por exemplo, a flexura esplênica). Os sintomas principais são sangramento e diarreia com dor leve em abdome inferior, tipicamente em idosos. A colite isquêmica é geralmente estudada a parte de outras isquemias intestinais e não será abordada neste tópico.
Manifestações clinicas
A isquemia mesentérica é mais comum em pacientes mais velhos, com média de idade de 76 anos. A prevalência é maior que a de aneurisma abdominal roto em pacientes acima de 75 anos [6].
A apresentação clássica da isquemia mesentérica arterial aguda é a dor abdominal desproporcional ao exame físico. Apesar de dor intensa, alterações ao exame físico abdominal como dor à descompressão, defesa e rigidez são infrequentes. Febre e sinais de peritonismo podem ocorrer na doença avançada, devido necrose tecidual levando a perfuração e peritonite.
O diagnóstico deve ser considerado na presença de dor abdominal e fatores de riscos relevantes. Os principais fatores de risco são fibrilação atrial e história recente de infarto agudo do miocárdio.
Nos pacientes com trombose venosa, a dor está presente na maioria das vezes. Ocorre de forma insidiosa, podendo durar mais do que 48 horas em 75% dos casos [7, 8]. Sangramento gastrointestinal acontece em 15% dos casos. Fatores de riscos relevantes para trombose venosa intestinal são:
- Diagnósticos de trombofilias
- Trombose venosa recente
- Cirurgias recentes abdominais
- Doença inflamatória abdominal (infecção ou autoimune)
- Neoplasia
- Cirrose hepática
- Trombose da veia porta
Na isquemia mesentérica crônica, o principal sintoma é dor abdominal de 30 a 60 minutos após se alimentar. Isso pode restringir a ingesta e causar perda de peso, algo incomum em outras causas de dor pós-prandial, como úlcera péptica e colelitíase. Neoplasias do trato gastrointestinal são um diagnóstico diferencial importante e devem ser afastadas. Outras manifestações da isquemia mesentérica crônica incluem diarreia, constipação e vômitos [4]. Apesar de ser uma lesão crônica, pode acontecer deterioração clínica rápida [1].
Como diagnosticar?
Diante da suspeita clínica, o exame inicial é a angiotomografia de abdome. Nenhum exame laboratorial tem acurácia boa para impedir ou atrasar a realização de exames de imagem em casos de suspeita clínica. Elevação do lactato, dos leucócitos e da desidrogenase láctica podem ocorrer em estágios mais avançados e graves da doença.
A angiotomografia de abdome possui acurácia de 95 a 100% para o diagnóstico de isquemia mesentérica aguda. Além de estenoses e interrupções de fluxo sanguíneo, a tomografia (TC) também pode mostrar pneumatose intestinal e ar livre na cavidade abdominal [9, 10].
A TC pode diferenciar embolismo de trombose. Isquemia embólica é geralmente identificada como uma obstrução distando 3 a 15 cm da origem da artéria mesentérica superior. A lesão isquêmica costuma poupar jejuno proximal, acometendo jejuno distal, íleo e cólon ascendente. A TC também pode visualizar outros efeitos do embolismo, como infartos esplênicos ou renais. Ausência de sinais de embolismo e presença de calcificação extensa na aorta sugerem causa trombótica [1].
A angiorressonância também possui acurácia acima de 95% [9]. O uso da ressonância é limitado em pacientes com claustrofobia, dispositivos metálicos e pelo tempo de detecção da imagem. A ultrassonografia consegue detectar estenoses em artéria celíaca e mesentérica superior, sendo útil nos casos de isquemia mesentérica crônica [11].
A arteriografia por cateter é reservada para casos difíceis, uma vez que métodos menos invasivos são bastante acurados e mais disponíveis. Possui a vantagem de permitir diagnóstico e tratamento simultâneos (como trombólise in situ ou angioplastia).
Como tratar?
O tratamento da isquemia mesentérica arterial se baseia no restabelecimento do fluxo sanguíneo, seja por via endovascular ou cirurgia aberta. Não existem estudos clínicos randomizados que comparem as estratégias. Estudos retrospectivos mostraram revascularização em 87% dos pacientes com tratamento endovascular, e menor mortalidade em comparação à cirurgia aberta [12].
A terapia endovascular é mais rápida e menos invasiva, sendo vantajosa em uma situação que o paciente está mais grave. Caso essa seja a terapia escolhida, o paciente deve permanecer monitorizado, pois em até 70% dos casos pode ser necessária laparotomia para ressecar o tecido necrótico intestinal [12].
Além do tratamento específico, devem ser corrigidas disfunções hemodinâmicas e alterações metabólicas que possam ocorrer. Pelo risco de perfuração ou translocação bacteriana, antibioticoterapia de amplo espectro é geralmente recomendada.
Na isquemia crônica, também é necessária a revascularização. Nesses casos é ainda mais comum o uso de terapias endovasculares. Nas isquemias não oclusivas, o objetivo principal é reverter a doença que causou o hipofluxo ou espasmo da artéria.
Em casos de trombose venosa, o tratamento é a anticoagulação. A etiologia da trombose deve ser pesquisada, especialmente em busca de trombofilias e patologias intra-abdominais que propiciaram o quadro.
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