Caso Clínico #21

Criado em: 27 de Junho de 2024 Autor: João Mendes Vasconcelos

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Homem de 48 anos procura o pronto-socorro na madrugada por diarreia há um dia. Informa mais de dez episódios de diarreia, sem produtos patológicos (sangue ou muco). Relata também náuseas e vômitos não quantificados. Nega febre. Possui diabetes mellitus.

Os sinais vitais mostram pressão arterial 120/68 mmHg, frequência cardíaca 114 bpm, frequência respiratória 16 irpm, saturação de oxigênio 98% em ar ambiente e temperatura 36,5 °C. O exame físico é notável por sinais de desidratação e o abdome distendido, porém flácido e indolor.


Diarreia aguda é definida como diarreia que dura até duas semanas. A maioria dos casos de diarreia aguda é infecciosa (gastroenterite), geralmente causada por vírus. Os quadros tendem a ser autolimitados e resolvem com tratamento sintomático. Manifestações mais graves aumentam a chance de a causa ser bacteriana [1]. A duração varia conforme o agente, sendo tipicamente uma doença de menos de uma semana. Uma discussão mais aprofundada de diarreia pode ser encontrada no caso clínico de diarreia.

Infecções fora do trato gastrointestinal podem causar diarreia aguda, um fenômeno que pode ser denominado de "diarreia parenteral" [2]. Pneumonia, infecção urinária e viroses agudas, incluindo dengue e influenza, podem se manifestar dessa forma [3]. Nesses casos, a diarreia é raramente o sintoma dominante e uma evolução fora do habitual para uma gastroenterite deve levantar a hipótese de uma diarreia parenteral. Existem também causas não infecciosas de diarreia aguda, com destaque para medicamentos. O início de qualquer medicamento que coincida com a diarreia deve levantar a suspeita, mas as substâncias mais implicadas são antibióticos e quimioterápicos. 

A história precisa ser mais explorada, especificamente em relação ao diabetes mellitus (DM). Há quanto tempo o paciente tem o diagnóstico? Uma doença de longa duração aumenta a chance de doença renal crônica, sendo esse o principal fator de risco para lesão renal aguda. Quais medicamentos o paciente usa? Inibidores da SGLT2 predispõem à desidratação e metformina deve ser suspensa se houver redução da taxa de filtração glomerular. Apesar de ter várias manifestações no trato gastrointestinal, como gastroparesia (veja mais no tópico sobre gastroparesia), diarreia aguda é uma manifestação pouco associada a DM. De qualquer maneira, DM aumenta a chance de desenvolver e de morrer por infecções [4].

O exame físico deve registrar os sinais vitais, buscar sinais de desidratação e avaliar se o abdome é sugestivo de alguma complicação (como sinais de peritonite). Nesse caso, como o paciente tem diabetes, a glicemia capilar também deve ser registrada. Mucosas úmidas diminuem a chance de desidratação, enquanto turgor de pele, tempo de enchimento capilar e leve tontura postural tem pouco valor clínico nesse contexto. Os sinais clássicos de desidratação são inconsistentes em adultos e tem desempenho diferente a depender se a perda de volume foi por sangramento ou perda de líquido por diarreia e vômitos [5]. O desempenho desses achados é ainda pior em idosos [6, 7]. Se houver dúvida, exames complementares como função renal e eletrólitos devem ser solicitados.

Esse paciente tem indicação de exames complementares, considerando o número de evacuações e os sinais de desidratação. O hemograma pode ajudar, mostrando hemoconcentração. Anemia pode ocorrer em diarreia sanguinolenta e leucocitose marcante, às vezes maior que 30.000/microL, deve levar a suspeita de colite por C. difficile. Anemia e plaquetopenia em um paciente com diarreia devem levantar a suspeita de síndrome hemolítico urêmica. Função renal, sódio, potássio e bicarbonato também devem ser solicitados na suspeita de desidratação.

Enquanto os resultados estão pendentes, se o paciente tiver condição, deve se hidratar pela via oral. Na prática, muitos recebem inicialmente hidratação intravenosa, além de antieméticos e analgésicos, até melhora sintomática.

O paciente recebeu escopolamina, dipirona e ondansetrona, além de 1000 ml de NaCl 0,9%. Os exames laboratoriais mostram hemoglobina 16,4 g/dL, hematócrito 47,6%, leucócitos 12.990/mm³, segmentados 11.301/mm³, linfócitos 779/mm³, linfócitos atípicos 390/mm³, plaquetas 240.000/mm³, creatinina 1,06 mg/dL, glicemia 244 mg/dl, fosfatase alcalina 119 U/L, gama GT 12 U/L, bilirrubina total 0,5 mg/dL, lactato 16 mg/dL.

Um segundo plantonista reavalia o paciente e decide administrar mais 1000 ml de NaCl 0,9%. O paciente passa a madrugada no pronto-socorro, evoluindo com febre e náuseas. Recebe ainda metoclopramida e dimenidrinato. Tem alta na manhã com melhora do quadro e tolerando dieta por via oral.

A prescrição de alta inclui azitromicina 500 mg por três dias, racecadotrila, ondansetrona, escopolamina e dipirona.


Os exames mostram uma resposta inflamatória inespecífica. A gasometria é necessária nesse paciente que tem sinais de descompensação do diabetes e um insulto infeccioso novo. A necessidade de múltiplas medicações antieméticas, sendo que o sintoma mais intenso na entrada era a diarreia, também pode indicar náuseas de origem metabólica.

O uso de antibióticos é um dilema na gastroenterite aguda. A maioria não se beneficia e os riscos devem ser ponderados, já que a doença é autolimitada geralmente [8]. Como o paciente tem manifestações intensas e inflamatórias, com mais de seis evacuações, desidratação e febre, a antibioticoterapia empírica é recomendada para abreviar os sintomas. Azitromicina (1 g em dose unica ou 500 mg por tres dias) ou ciprofloxacino (500 mg de 12/12 horas por tres a cinco dias) são opções.

A terapia sintomática com agentes antidiarreicos pode ser utilizada, especialmente em casos de diarreia aguda não inflamatória. Loperamida é comumente prescrita, agindo como um opioide no trato gastrointestinal e reduzindo a motilidade. Existe uma fraca associação de loperamida com complicações de diarreia aguda em pacientes com gastroenterite bacteriana. O risco é baixo e parece existir apenas em agentes com alto potencial inflamatório e sem tratamento específico [9]. Outra opção é a racecadotrila, um inibidor da encefalinase que atua como droga antisecretiva. Essa medicação é tão efetiva quanto a loperamida e tem menos eventos adversos, com menor incidência de constipação e distensão abdominal [10,11]. Em pacientes com desconforto abdominal por gases, a associação de simeticona a loperamida parece resolver mais rápido os sintomas [12].

Orientações de dieta fazem parte do plano terapêutico na alta. Os pacientes podem evoluir com intolerância transitória a alguns alimentos, em especial leite e derivados, sendo razoável a redução momentânea do consumo e reintrodução assim que tolerados.

Apesar da melhora que propiciou a alta, o paciente recebeu múltiplas medicações e complicações de diabetes não foram descartadas. Após a cessação do efeito dos remédios o quadro pode retornar com intensidade similar.

O paciente retorna na noite do mesmo dia. Informa que a diarreia e a náusea persistem, porém em menor quantidade. Mantem-se com febre e intensa indisposição. Antes de iniciar o quadro, seus filhos tiveram sintomas similares e confirmaram rotavírus nas fezes.

O diabetes foi diagnosticado há dez anos. Trabalha como engenheiro civil e, durante uma viagem para uma obra, iniciou quadro de poliúria e polidipsia, tendo o diagnóstico nesse contexto. Precisou de insulina após três anos do diagnóstico. Atualmente utiliza metformina, dapagliflozina e insulinas degludeca e lispro. Realizou colecistectomia videolaparoscópica há 15 anos. Nega alergias.

Nesse momento os sinais vitais mostram pressão arterial 111/59 (69) mmHg, frequência cardíaca 126 bpm, frequência respiratória 18 irpm, saturação de oxigênio 98% em ar ambiente e temperatura 38,5 °C. A glicemia capilar é de 192 mg/dL. Os sinais de desidratação estão presentes, sem demais alterações ao exame físico.

Prescrito 1000 ml de NaCl 0,9% e solicitado gasometria venosa. A gasometria venosa mostra pH 7,28 e bicarbonato 10 mEq/L. Demais exames disponíveis nesse momento mostram sódio 132 mEq/L, cloro 103 mEq/L, potássio 4,2 mEq/L e lactato de 12 mg/dL.


A readmissão no pronto-socorro em 72 horas aumenta a chance de existir um evento adverso associado ao cuidado desse paciente [13,14]. Pacientes que foram atendidos de madrugada ou em finais de semana tem maior risco de eventos adversos.

O início do diabetes com sintomas de níveis elevados de glicose (poliúria e polidipsia) e a necessidade de insulina relativamente cedo ao londo da doença (menos de cinco anos), sugerem a possível existência de um componente autoimune. A insulinopenia nesse contexto torna o paciente mais suscetível a complicações como cetoacidose e estado hiperosmolar (veja mais em Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar e Outras Complicações Agudas do Diabetes). O uso de inibidores da SGLT2 também acrescenta vulnerabilidade, propiciando a ocorrência de cetoacidose euglicêmica e desidratação.

Rotavírus é um agente típico de diarreia aguda em crianças, mas também pode acometer adultos, comumente os pais da criança doente [15]. Esse agente causa desidratação iso ou hipernatrêmica e acidose metabólica [16].

A análise da acidose metabólica ajuda no entendimento do quadro. Uma gasometria arterial é necessária para avaliar se existe compensação respiratória, porém algumas inferências podem ser feitas com os exames disponíveis. O primeiro passo é avaliar o ânion gap (AG) que no caso está elevado com valor de 19 [17]. A acidose metabólica com AG elevado estreita o leque diagnóstico para quatro possibilidades: cetoacidose, acidose lática, disfunção renal e intoxicação. A principal hipótese para o caso é cetoacidose, já que lactato e função renais estavam normais.

Uma ferramenta adicional é avaliar a variação de AG e de bicarbonato, conhecido como delta AG/delta HCO₃ [18]. Em uma acidose metabólica de AG aumentado, a elevação de AG representa novos ácidos no corpo do paciente. Assim, o incremento de AG deve ser comparável ao consumo de bicarbonato. Se a variação desses parâmetros estiver muito discrepante, distúrbios associados podem estar ocorrendo.

Fórmula do delta/delta

AG calculado - AG normal / HCO₃ normal - HCO₃ medido

AG normal é habitualmente considerado entre 10 a 12 mEq/L
HCO₃ normal é 24 mEq/L

O valor habitualmente tolerado para o delta AG/delta HCO₃ é de 1 a 2. Valores fora dessa faixa podem ter o seguinte significado:

  • Delta AG/delta HCO₃ menor que 1
    O consumo de bicarbonato é maior que a elevação de AG. Isso sugere a existência de duas acidoses associadas: uma de AG elevado e outra de AG normal, que consume adicionalmente o HCO₃ sem elevar o AG.
  • Delta AG/delta HCO₃ maior que 2
    O consumo de bicarbonato é menor que a elevação de AG. Isso sugere a existência de uma acidose de AG elevado associada a uma alcalose. A alcalose impede que o HCO₃ seja consumido como esperado, de modo que o delta/delta fica maior que 2. Outra possibilidade é um paciente que já tem o bicarbonato elevado antes de o distúrbio ocorrer, como paciente com retenção crônica de CO₂ e elevação de HCO₃ compensatória.

O delta AG/delta HCO₃ do caso é 0,64. A explicação mais plausível é de uma cetoacidose diabética (que eleva o AG) associada a uma acidose por perda de HCO₃ nas fezes (que não eleva o AG). Cetoácidos precisam ser pesquisados agora. O paciente deve ficar sob monitorização, já que esse nível de acidose é ameaçador.

A urina 1 mostrou cetonúria 3+++. Exames laboratoriais com PCR 37 mg/dL e os demais similares aos exames da madrugada do mesmo dia. Pesquisa de rotavírus nas fezes positiva.

Iniciado tratamento para cetoacidose diabética euglicêmica com insulina em bomba 0,1 UI/kg e solução de soro glicosado a 5% com 20 ml de NaCl 0,9% e 10 ml de KCl 19,1%.


Tabela 1
Condições associadas a cetoacidose diabética euglicêmica
Condições associadas a cetoacidose diabética euglicêmica

O paciente preenche os critérios de CAD euglicêmica (tabela 1). Algumas referências trazem o corte de glicemia < 250. O diagnóstico requer um alto nível de suspeição, já que a glicemia estará normal. Vários fatores contribuíram para a ocorrência de CAD nesse caso, entre eles o DM com necessidade de insulina, uso de iSGLT2 e infecção por rotavírus.

As principais condições associadas a CAD euglicêmica estão na tabela 1. Os sintomas são inespecíficos e se confundem com várias outras condições. Náuseas, vômitos, fadiga, dor abdominal, poliúria, taquipneia e confusão mental podem ocorrer. Como a clínica é inespecífica, a suspeita surge ao valorizar a presença condições associadas a CAD euglicêmica.

O reconhecimento tardio dessa condição pode ter consequências graves. A acidose intensa pode levar a instabilidade hemodinâmica, arritmias e disfunções orgânicas, além de agravar condições de base. Distúrbios eletrolíticos do sódio, potássio e fósforo são comuns. A hipocalemia pode ser grave a ponto de causar arritmia e fraqueza muscular. Edema cerebral e lesão renal aguda também podem ocorrer.

Veja o desfecho do caso

Realizado tratamento para CAD conforme protocolo. Tem resolução do quadro após 24 horas do início da terapia. 

Reconciliadas as medicações de uso habitual e tem alta para casa.


O tratamento de CAD euglicêmica é bastante similar ao da CAD comum. Na CAD euglicêmica, os pacientes já recebem insulina e glicose desde o começo, já que os níveis de glicemia são baixos. Esse paciente teve resolução relativamente demorada do quadro, o que pode ocorrer na CAD euglicêmica pela dificuldade de aumentar a vazão de insulina, já que a glicemia é mais baixa. Esse é o motivo que alguns autores sugerirem uma vazão maior de glicose, permitindo infusão de quantidades maiores de insulina, levando a resolução mais rápida [19, 20].

O valor do sódio pode gerar confusão no manejo da CAD. A hiperglicemia reduz falsamente os níveis aferidos de sódio. Algumas regras foram feitas para estimar o valor real de sódio nesse contexto. Esse valor de sódio corrigido é utilizado para escolher a tonicidade da solução cristaloide utilizada, porém não deve ser usado para calcular o AG. O AG deve usar o valor medido de sódio.

Os iSGLT2 são drogas com aplicação em diversas condições e cada vez mais vistos na prática (veja mais no tópico sobre gliflozinas). Apesar dos benefícios, eles tornam o paciente vulnerável a desidratação e CAD durante doenças agudas. Baseado nisso, alguns autores recomendam a suspensão dessas drogas durante períodos de estresse fisiológico, como perioperatório, hospitalização por doenças graves, lesão renal aguda e cetoacidose [21].

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • Rotavirose é uma causa de diarreia grave em crianças, mas pode acometer adultos, em especial os pais da criança doente. Acidose metabólica é um achado laboratorial associado a essa condição.
  • A análise do delta AG/delta HCO₃ pode ser feita na acidose metabólica com AG elevado para avaliar a presença de distúrbios associados.
  • Cetoacidose diabética não pode ser excluída por que a glicemia está relativamente normal ou pouco elevada.
  • Os sintomas de cetoacidose diabética euglicêmica são inespecíficos e a suspeita deve ser levantada na presença de condições associadas.
  • Os inibidores da SGLT2 tornam o paciente vulnerável a períodos de estresse fisiológico, devendo ser suspensos momentaneamente durante o perioperatório, hospitalizações, lesão renal aguda e cetoacidose.

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