Rastreio de Transtornos Psiquiátricos
Transtornos mentais são prevalentes e negligenciados. O estudo GET.FEEDBACK.GP foi publicado em abril de 2024 no Lancet Psychiatry e aborda o rastreio de depressão [1]. Este tópico discute o tema e traz os resultados do estudo.
Por que rastrear transtornos mentais?
A prevalência estimada de transtornos mentais na população mundial é de 13%. Um terço dessas pessoas têm transtornos de ansiedade ou depressivos. A prevalência de depressão maior na cidade de São Paulo é em torno de 15% durante a vida [2].
Problemas de saúde mental são negligenciados. Em 2019, a prevalência autorreferida de um diagnóstico de depressão foi de 10% em adultos. Porém, metade desses pacientes relatou não ter recebido atendimento médico para depressão no último ano [3].
Os pacientes podem não trazer ativamente os sintomas da depressão ao consultório. Algumas explicações para isso são a preocupação com a prescrição de medicamentos, quebra do sigilo médico ou acreditarem que não é função do médico generalista atender queixas psiquiátricas [3].
Um estudo dos Estados Unidos identificou que a mediana de tempo para tratamento a partir do início dos sintomas de ansiedade foi de 23 anos. Baixo nível socioeconômico e sexo feminino são associados a altas taxas de transtornos de ansiedade [4].
Por serem condições comuns, com impacto em morbimortalidade e terem tratamentos eficazes, os transtornos depressivos e de ansiedade são candidatos a estratégias de rastreio populacional (tabela 1).
Rastreio de depressão
A United States Preventive Service Task Force (USPSTF) recomenda o rastreio de depressão para toda a população adulta. Segundo a organização, o rastreio aumenta a detecção, a taxa de tratamento e os desfechos. Há menor prevalência de depressão em seis meses e maiores taxas de remissão após o rastreio [5].
Há algumas ferramentas validadas para o rastreio de depressão (tabelas 2 e tabela 3). Os instrumentos mais usados são o Patient Health Questionnaire (PHQ) e, em idosos, a Geriatric Depression Scale (GDS). A GDS não inclui sintomas somáticos, o que pode ser uma vantagem em idosos com comorbidades levando a sintomas físicos que podem ser confundidos com depressão.
A frequência de rastreio não é bem definida. Uma estratégia possível é estruturar em duas etapas. A primeira deve ser mais rápida e sensível, e a segunda, mais longa e específica, só aplicada se a primeira etapa for positiva. Para a primeira etapa, as duas primeiras perguntas do PHQ-9 podem ser utilizadas, seja pelo médico ou como um questionário respondido pelo paciente (PHQ-2). Se o paciente responder “sim” a uma das duas perguntas ou pontuar 2 ou mais no PHQ-2, a segunda etapa pode ser realizada com o PHQ-9 ou GDS (opção na população geriátrica). A tabela 4 compara o desempenho das ferramentas.
Após o rastreio positivo, o diagnóstico de transtorno depressivo maior deve ser confirmado pela anamnese, segundo os critérios do DSM-V. Algumas condições podem positivar o rastreio e devem ser diferenciadas de depressão maior, entre elas o transtorno depressivo persistente, depressão menor, transtorno de luto prolongado e transtorno bipolar. O número de falsos positivos de depressão é considerável. O acompanhamento dos pacientes com avaliações periódicas pode esclarecer a dúvida entre o diagnóstico de depressão ou outra condição [6].
Rastreio de ansiedade
Pacientes com transtornos de ansiedade têm medo e ansiedade excessivos, causando sofrimento. Os transtornos de ansiedade diferem entre si nos tipos de objetos ou situações que induzem os sintomas. Alguns exemplos são: ansiedade generalizada, ansiedade de separação, ansiedade social, pânico, fobias, mutismo seletivo, agorafobia e induzido por medicamento ou substância.
A USPSTF recomenda o rastreio de ansiedade para todos os adultos até 65 anos. Após essa idade, não há evidência suficiente de benefício [5].
As principais escalas validadas no Brasil que podem ser utilizadas para rastreio são Generalized Anxiety Disorder Scale (GAD), Edinburgh Postnatal Depression Scale (EPDS) e Geriatric Anxiety Inventory (GAI) [7].
As ferramentas de rastreio mais estudadas são a GAD-7 e a GAD-2, que compreende apenas as duas primeiras perguntas da GAD-7 (tabela 5). A estratégia de realizar o rastreio em duas etapas, similar a de depressão, também pode ser usada nesse caso. Uma sugestão é usar inicialmente a GAD-2 (mais sensível) e, caso positiva, prosseguir com a aplicação da GAD-7 (mais específica) (tabela 4) [8]. O intervalo adequado para repetir o rastreio não é bem definido.
Um rastreio positivo para ansiedade generalizada deve ser confirmado com a aplicação de critérios diagnósticos, conforme descrito na figura 1.
Estudo GET.FEEDBACK.GP: como comunicar o rastreio positivo?
Existem dúvidas sobre o impacto dos programas de rastreio de depressão e o que um programa deve ter para melhorar os desfechos para os pacientes. Apenas 37% dos indivíduos de um estudo italiano aceitaram tratamento para depressão após o rastreio positivo [9]. Por outro lado, o estudo DEPSCREEN-INFO mostrou que informar os pacientes e os médicos sobre o rastreio positivo com material educativo reduziu a gravidade da depressão após seis meses, em comparação a informar apenas os médicos [10].
O GET.FEEDBACK.GP avaliou como e quem informar sobre o rastreio positivo de depressão. O trabalho foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, prospectivo, feito em 64 centros de atenção primária na Alemanha. Os pacientes foram recrutados na sala de espera de consulta de médico generalista e preencheram o PHQ-9 para rastreio de depressão. Mais de 1000 pacientes foram incluídos e 80% da população tinha mais de 10 anos de educação formal.
A amostra foi randomizada em três grupos. No primeiro, ninguém recebeu informações do resultado do rastreio. No segundo, o médico recebeu uma carta com recomendação para abordar depressão na consulta, pois o rastreio havia sido positivo, e o paciente recebeu uma carta de agradecimento por participar do estudo. No terceiro, o médico recebeu a mesma carta do segundo grupo e o paciente recebeu uma carta informando o rastreio positivo para depressão, material educativo e recomendação para abordar a questão na consulta. Tanto os médicos quanto a equipe de pesquisa que entregavam as cartas estavam cegados quanto ao conteúdo escrito.
O desfecho primário era a gravidade da depressão após seis meses da randomização. Não houve diferença significativa no desfecho primário entre os grupos.
No grupo em que médicos e pacientes foram informados sobre o rastreio positivo, houve maiores taxas de abordagem de depressão e mais informações entregues pelos médicos. Os pacientes deste grupo também tiveram menor gravidade de sintomas somáticos. Não houve diferença para os outros desfechos secundários que incluíam escalas de ansiedade, qualidade de vida, satisfação e tratamento da depressão.
O tempo para início de tratamento de depressão foi semelhante entre os grupos. Menos de 25% dos pacientes com rastreio positivo foram tratados com psicoterapia ou medicamento.
Os resultados ilustram a dificuldade de implementar um programa de rastreio de depressão que modifique desfechos maiores. Os desfechos secundários sugerem algum benefício de fornecer informações por escrito para o paciente e o médico, mas novos estudos devem avaliar que outras intervenções podem aumentar o impacto dos programas de rastreio.
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