Intoxicações Ameaçadoras à Vida
Intoxicação crítica é aquela que leva a parada cardíaca, choque refratário ou outra condição com ameaça de parada cardíaca. Quando essas situações críticas ocorrem por intoxicações, a conduta costuma diferir do habitual. A American Heart Association (AHA) publicou uma atualização recente sobre esse tema [1]. O tópico intoxicações ameaçadoras a vida - diretriz AHA 2023 traz os principais pontos da diretriz.
Identificação da intoxicação e suporte inicial
Cerca de 90% das mortes por intoxicação são não intencionais [2]. O tratamento das intoxicações tem três pilares:
- Prevenção de exposição adicional ou remoção do tóxico quando possível.
- Tratamento de suporte - manejo das disfunções orgânicas, BLS e ACLS.
- Antídotos/descontaminação - administração de medicações ou terapias extracorpóreas que revertam, diminuam ou eliminem o efeito tóxico em seu alvo molecular.
O tratamento e a estabilização frequentemente ocorrem antes da identificação do tóxico. Sinais e sintomas relacionados a substâncias específicas formam síndromes (toxíndromes) que permitem inferir o tipo de intoxicação. Essas síndromes possibilitam o tratamento presuntivo enquanto mais informações são adquiridas. O Caso Clínico #11 discute a abordagem do paciente com intoxicação exógena.
A terapia de suporte do paciente crítico tem prioridade sobre a identificação do tóxico ou administração de antídotos. Recomenda-se a abordagem ABCDE modificada com considerações toxicológicas, incluindo manejo da via aérea, suporte hemodinâmico e correção de distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos. O tópico "Intubação por Rebaixamento e Manejo da Via Aérea na Intoxicação" detalha o manejo da via aérea no paciente intoxicado.
A diretriz discute bastante sobre a ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial) nas intoxicações. Apesar das evidências serem de estudos observacionais, a ECMO parece ser bem indicada no tratamento de duas situações:
- Choque cardiogênico persistente ou parada cardiorrespiratória devido intoxicação refratária às demais medidas de tratamento.
- Arritmias persistentes devido à intoxicação quando outras medidas de tratamento falharam.
A emulsão lipídica 20% fica bem indicada nas intoxicações por anestésicos locais, em especial a bupivacaína. A diretriz recomenda não utilizar de rotina nas intoxicações por betabloqueadores (BB) e bloqueadores de canais de cálcio (BCC) [1]. O papel da emulsão lipídica nos pacientes críticos com intoxicação por BB e BCC que não responderam a outras medidas ainda é incerto.
O contato com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da região em que ocorreu o evento faz parte do atendimento ao paciente intoxicado. O CIATox auxilia e respalda a condução do caso. Uma lista completa com o telefone de contato de cada unidade pode ser encontrada neste link do CIATox do site do ministério da saúde.
A tabela 1 resume os antídotos para as intoxicações específicas.
Betabloqueadores e bloqueadores de canais de cálcio
A intoxicação por BB e BCC causa hipotensão e bradicardia por redução da contratilidade miocárdica. Podem estar presentes rebaixamento do nível de consciência e disglicemias. Enquanto na intoxicação por BB acontece hipoglicemia, os BCC levam à hiperglicemia, o que pode ajudar na diferenciação entre esses dois agentes [3].
O manejo da hipotensão deve ser feito inicialmente com cristaloides, seguido de vasopressores para manter pressão arterial média > 65 mmHg. Uma das características da intoxicação por essas drogas é a hipotensão refratária. A diretriz recomenda a insulinoterapia euglicêmica em pacientes com hipotensão refratária, seja no momento da introdução do vasopressor ou após, caso não haja resposta aos vasopressores.
A ultrassonografia a beira leito (POCUS) cardíaco pode ajudar a guiar as medidas terapêuticas da seguinte maneira:
- Contratilidade reduzida: insulinoterapia euglicêmica em altas doses, glucagon (na intoxicação por BB), cálcio (na intoxicação por BCC), noradrenalina;
- Contratilidade normal: expansão volêmica com cristaloides;
- Contratilidade aumentada e pré-carga normal: noradrenalina.
Caso haja indisponibilidade do POCUS cardíaco, o paciente crítico deve receber todas as medidas disponíveis de forma simultânea. O manejo da bradicardia segue o algoritmo do suporte avançado de vida (ACLS).
A hemodiálise está indicada em intoxicações por atenolol e sotalol que não responderam às demais medidas.
Opioides
A intoxicação por opioides pode ocorrer por sobredosagem de medicações com prescrição médica, mas nos EUA o uso recreativo é a causa mais comum de morte associada a essa intoxicação [4]. Entre os principais fatores de risco para essa intoxicação, existem duas categorias:
- Relacionados ao opioide: alta dose, alta potência (fentanil), meia-vida longa (metadona).
- Relacionados ao paciente: uso concomitante de sedativos-hipnóticos (benzodiazepínicos), doenças
- psiquiátricas, cessação recente de medicamentos para quem já tem transtorno por uso de opioides.
A tríade clássica da toxíndrome por opioides é composta por:
- Estado mental alterado (depressão do nível consciência, euforia nos momentos iniciais);
- Miose bilateral;
- Depressão respiratória;
A ausência de miose não exclui essa intoxicação. Fatores como hipóxia, intoxicação simultânea por simpatomiméticos (cocaína, anfetaminas) e outros medicamentos (como atropina em cuidados paliativos) podem causar midríase neutralizando a miose.
A depressão respiratória induzida por opioides é a causa mais comum de morte nesse contexto. Bradipneia e ritmo respiratório irregular ocorrem inicialmente, evoluindo para parada respiratória e cardíaca se não tratada precocemente (fluxograma 1).
Na depressão respiratória, a prioridade é o manejo da via aérea com dispositivo bolsa válvula-máscara (DBVM ou Ambu®) e administração do antídoto naloxona. Já na PCR, o objetivo é fornecer o suporte básico de vida com foco inicial em compressões e ventilações efetivas, devendo a naloxona ser considerada após essas medidas estarem estabelecidas.
Benzodiazepínicos
A intoxicação por benzodiazepínicos é comum, mas situações ameaçadoras à vida por hipoventilação, instabilidade hemodinâmica ou PCR com uso isolado dessa classe medicamentosa são raras [5, 6]. As principais características dessa intoxicação são:
- Depressão leve do nível de consciência (letargia, sonolência, fala arrastada, comprometimento cognitivo) e ataxia;
- Hipotonia e hiporreflexia;
- Sinais vitais frequentemente são normais - hipotensão é incomum;
- Depressão respiratória - rara em intoxicação isolada.
Quando há sintomas graves (coma, depressão respiratória, hipotensão), deve-se considerar ingestão de quantidades exorbitantes e principalmente a co-ingestão de outro tóxico, como opioides.
Os cuidados de suporte são a base do tratamento, até que os efeitos da intoxicação sejam revertidos. Raramente é necessária intubação orotraqueal.
O flumazenil é um antagonista competitivo no receptor GABA que pode reverter a depressão do nível de consciência por benzodiazepínicos. A medicação pode precipitar crises convulsivas (especialmente com outros fatores que diminuam limiar convulsivo), abstinência refratária a benzodiazepínicos e arritmias, habitualmente com outras drogas como tricíclicos. Além disso, principalmente quando há intoxicações mistas, a depressão respiratória pode não ser revertida somente com o flumazenil. Caso haja suspeita de intoxicação por opioides associada, a administração de naloxona tem prioridade.
O flumazenil pode ser considerado em pacientes com depressão grave do SNC induzida por benzodiazepínicos que não tenham anormalidades no eletrocardiograma, que não sejam usuários crônicos de benzodiazepínicos e que os sinais vitais estejam normais. No perioperatório em que há sedação excessiva, o uso também está indicado. Diferente da naloxona, o flumazenil não tem papel na parada cardiorrespiratória.
Outros destaques da diretriz
O bicarbonato é recomendado para arritmias ameaçadoras à vida causadas por cocaína ou medicações com ação de bloqueio de canal de sódio. Algumas medicações com esse efeito são lamotrigina, antidepressivos tricíclicos e venlafaxina (tabela 2).
Em pacientes intoxicados por simpatomiméticos, como anfetaminas e alguns canabinoides sintéticos (como K2 e K9), é recomendado o uso de sedativos quando há agitação intensa. Nesse contexto, os sedativos (como benzodiazepínicos e antipsicóticos) ajudam no controle de hipertermia, acidose e rabdomiólise. Em pacientes com hipertermia ameaçadora a vida é recomendado resfriamento externo.
Aproveite e leia:
Intubação por Rebaixamento e Manejo da Via Aérea na Intoxicação
O manejo da via aérea é uma prioridade em situações de emergência. Apesar de ser uma medida fundamental, existem dúvidas sobre a indicação ideal de intubação em alguns cenários. O estudo NICO, publicado no JAMA em dezembro de 2023, avaliou o manejo da via aérea no paciente intoxicado. Este tópico revisa as indicações de intubação, a intubação no rebaixamento e os resultados do estudo.
Caso Clínico #11
Mulher de 32 anos com rebaixamento de nível de consciência e vômitos.
Diretriz de Doenças da Aorta - ESC 2024
A European Society of Cardiology (ESC) publicou em 30 de agosto de 2024 a nova diretriz de doenças da aorta e doenças arteriais periféricas. A doença arterial periférica foi abordada em "Doença Arterial Periférica: Diretriz AHA/ACC 2024". Este tópico é baseado na nova diretriz e revisa o diagnóstico, rastreio, tratamento e atualizações sobre aneurismas de aorta.
Atualização sobre Antibiótico em Infusão Estendida: Estudo BLING III
A infusão estendida ou contínua de antibióticos foi abordada no tópico Antibióticos em Infusão Estendida versus Intermitente. Este tópico de atualização traz um resumo do estudo BLING III, publicado em junho de 2024 no Journal of the American Medical Association (JAMA) com novidades sobre o tema.
Tomografia de Crânio no Delirium
Delirium é uma síndrome com várias causas e manifestações. Os exames complementares que fazem parte da investigação do delirium não são consensuais. O Journal of the American Geriatric Society publicou um trabalho que tenta responder como a tomografia de crânio pode ajudar no esclarecimento das causas de alteração do estado mental ou delirium. Este tópico revisa o diagnóstico e a investigação de delirium e traz os resultados do estudo.