Dor Abdominal no Pronto-Socorro
Dor abdominal é uma queixa muito presente no pronto-socorro, abordada classicamente pelo Dr. Cope em 1921 [1]. A evolução dos exames de imagem e a sobrecarga de pacientes trazem desafios próprios da atualidade. O New England Journal of Medicine publicou uma revisão sobre o tema em julho de 2024 [2]. Aproveitando a publicação, o tópico "dor abdominal no pronto-socorro" discute pontos-chave sobre esse cenário.
Posso fazer analgesia antes do diagnóstico?
A crença de que analgésicos podem prejudicar o processo diagnóstico do paciente com dor abdominal ainda é presente [3]. Contudo, as diretrizes atuais favorecem a analgesia e as evidências indicam que, apesar de afetar o exame físico, os analgésicos não prejudicam de maneira significativa a condução do caso [4].
Uma revisão da Cochrane de 2011 avaliou o uso de opioides na dor abdominal aguda e não encontrou aumento de risco de erro diagnóstico ou de tratamento [5]. Em 2013, outra revisão com meta-análise avaliou a analgesia em casos suspeitos de apendicite. Os autores encontraram que, apesar de um efeito discreto nas taxas de apendicectomia, a analgesia não resultou em pior morbidade, mortalidade ou acurácia diagnóstica [6]. A diretriz de abdome agudo de 2015 recomenda o uso de analgésicos antes de um diagnóstico definitivo ser estabelecido [4].
A escolha dos analgésicos varia entre instituições e profissionais. Uma revisão sistemática de 2014 pontua que, para dores moderadas a intensas, a combinação de analgésicos não opioides e opioides é uma escolha adequada [7]. A diretriz de 2015 sugere um esquema conforme a intensidade, com doses de dipirona variando de 1 g a 2,5 g, escopolamina em associação para dor em cólica e opioides em dores intensas. Anti-inflamatórios não esteroidais também são uma opção [4].
Qual exame de imagem escolher
O exame de imagem tem um papel central na dor abdominal aguda hoje. A tomografia computadorizada (TC) de abdome com contraste é o exame de escolha para a maioria dos pacientes [8]. Gestantes e pacientes com suspeita de colecistite devem fazer ultrassonografia inicialmente [9].
O uso de contraste intravenoso é necessário para um bom desempenho da TC. A realização de TC sem contraste está associada a redução de 30% na acurácia diagnóstica do exame [10]. O risco de nefropatia associada ao contraste é baixa e os pacientes com maior risco são também aqueles com maior probabilidade de doença intra-abdominal identificável por TC [11, 12]. Veja mais sobre contraste e lesão renal no tópico "Nefropatia por Contraste". O contraste oral não faz parte da avaliação de rotina e a TC pode ser feita habitualmente sem contraste oral sem prejuízo [12].
O American College of Radiology (ACR) propõe uma abordagem baseada na localização da dor [11, 13-16]. As recomendações de maneira resumida estão dispostas na tabela 1. O recomendado é que o laudo esteja disponível em até duas horas. Atraso rotineiro para a disponibilidade do laudo além desse período está associado a pior prognóstico [17].
Apesar do grande auxílio no diagnóstico, os exames de imagem devem ser usados com critério. O uso excessivo de TC de abdome expõe os pacientes a radiação, aumenta o tempo de permanência e os custos e não resulta em melhorias claras no cuidado [18]. Como exemplo, em um paciente jovem com dor epigástrica em queimação e sintomas de doença do refluxo sem fatores de risco, em que doenças biliopancreáticas e síndrome coronariana são improváveis (o que costuma requerer exames laboratoriais e eletrocardiograma), os exames de imagem não são recomendados de imediato. Uma tentativa de tratamento empírico é razoável antes de uma investigação adicional.
A presença de diarreia diminui a chance de que a imagem altere a conduta. Um estudo retrospectivo demonstrou que a TC alterou a conduta em 53% dos casos de dor abdominal sem diarreia, porém a conduta foi alterada em apenas 11% dos casos de dor abdominal com diarreia [19]. Portanto, um paciente com diarreia não inflamatória que predomina em relação à dor, especialmente com fatores sugestivos de gastroenterite (como viagem recente ou sintomas em contatos próximos), pode ser conduzido sem exame de imagem inicialmente.
A avaliação do cirurgião
A ausência ou atraso na avaliação pelo médico cirurgião está envolvida em muitos casos de eventos adversos na dor abdominal aguda [20]. O momento ideal para solicitar a avaliação e o tempo até que ela seja realizada não é padronizado e depende das condições clínicas e da suspeita diagnóstica.
Na apendicite, um atraso próximo de 72 horas está associado a piores desfechos [21]. Na colecistite aguda, o tempo ideal para a colecistectomia é em até 48 horas da admissão [22]. A isquemia mesentérica é ainda mais sensível ao tempo, com piores desfechos se a cirurgia for atrasada em mais de 6 horas ou a avaliação for retardada por mais de 24 horas [23]. De uma maneira geral, pacientes idosos, com sinais de irritação peritoneal e cirurgias prévias também devem ter uma avaliação precoce [24].
Situações que podem gerar erro
O exame de urina é solicitado com frequência na dor abdominal, especialmente em mulheres. Contudo, qualquer doença inflamatória próxima ao trato urinário pode gerar leucocitúria, sendo essa uma pista falsa em muitos casos. Alterações no sedimento urinário (hematúria e leucocitúria) podem estar presentes em 20 a 48% dos pacientes com apendicite e dilatação pielocalicial à direita [25, 26]. Hematúria pode estar presente em até 87% dos pacientes com aneurisma de aorta abdominal roto [27].
Muitas condições além de pancreatite podem elevar a lipase em níveis maiores que três vezes o limite superior da normalidade [28]. Lesão renal, neoplasias hepatobiliares e gastrointestinais, úlcera péptica e perfuração de víscera oca estão entre as causas de elevação de lipase. O d-dímero, que pode ser solicitado em condições graves indiferenciadas, pode elevar em síndromes aórticas agudas [29, 30].
A presença de líquido livre abdominal pode ter significado clínico, como em uma mulher jovem com dor abdominal sugerindo gravidez ectópica rota. Contudo, esse achado pode estar presente em pacientes saudáveis e levar a erros diagnósticos na dor abdominal [31]. Um exemplo é o relato de uma mulher jovem com dor abdominal, choque e sangramento vaginal, em que o achado de líquido livre fixou a suspeita diagnóstica em gravidez ectópica, quando a paciente tinha anafilaxia e o exantema foi ignorado [32].
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