Intoxicação por Varfarina
O uso clínico de varfarina foi abordado no tópico "Varfarina: Bulário e Quando Preferir em Relação aos DOACs". O manejo de sangramento por anticoagulantes orais diretos foi abordado em "Manejo de Sangramento Maior em Pacientes em Uso de Anticoagulante Oral".
Aproximadamente 20% das pessoas em uso de varfarina podem apresentar valores de razão normalizada internacional (RNI) acima do limite terapêutico [1]. Até 3% apresentam sangramento ameaçador a vida [2, 3]. O tópico “Intoxicação por Varfarina” revisa o manejo e cuidados dos pacientes com RNI supraterapêutico e sangramentos graves em uso de varfarina.
Pacientes em uso de varfarina com sangramento
O manejo em pacientes com sangramento é dividido em sangramento leve e sangramento maior. A International Society for Thrombosis and Haemostasis (ISTH) define sangramento maior como um dos seguintes [4]:
- Sangramento fatal
- Redução de 2 g/dL de hemoglobina
- Necessidade de transfusão de dois ou mais concentrados de hemácias
- Sangramento com acometimento de órgão ou área crítica (intracraniano, intraespinhal, ocular, retroperitoneal, pericárdico, articular ou intramuscular com síndrome compartimental).
Sangramentos maiores
Três condutas são recomendadas nessa situação: suspender a varfarina, administrar vitamina K e administrar complexo protrombínico.
A varfarina deve ser suspensa imediatamente. Recomenda-se também administrar vitamina K1 (fitometadiona) 5 a 10 mg por via intravenosa, com infusão em 15 a 30 minutos. O risco de reações anafiláticas é raro e o controle de RNI é mais rápido comparado a via oral, principalmente nas primeiras horas [5, 6, 7].
Não é necessário aguardar a dosagem do RNI para iniciar a administração de vitamina K em pacientes com sangramento maior em uso de varfarina. A ação não é imediata, levando de 24 a 48 horas para o efeito máximo no RNI. Um efeito rebote com novo aumento do RNI pode ocorrer mesmo após suspensão da varfarina e administração da vitamina K [8]. Esse fenômeno pode ocorrer por conta da meia vida mais prolongada da varfarina em relação à vitamina K.
A administração de complexo protrombínico de 4 fatores também é recomendada em sangramento maior, já que a vitamina K demora a agir. O efeito é similar ao do plasma fresco congelado, porém com menor risco de reações transfusionais [9, 10]. A dose é de 1.500 a 2.000 unidades, com checagem do RNI após 15 minutos. Pode ser necessário dose adicional se o RNI se mantiver maior que 1,5 [11].
O plasma fresco congelado pode ser utilizado caso o complexo protrombínico não esteja disponível. A dose inicial é de 15 a 30 mL/kg, com checagem do RNI após 15 minutos. Se necessário, pode-se repetir a dose se o RNI persistir acima de 1,5.
Sangramentos leves
Em casos de sangramentos controláveis ou compressíveis, como epistaxe anterior ou lesões cutâneas, pode-se continuar a varfarina em dose menor ou omitir a dose. Em sangramentos de difícil acesso (como epistaxe posterior refratária ou sangramentos gastrointestinais) ou em pacientes com alto risco de sangramento (tabela 1), o uso da vitamina K é uma opção [12]. Se o sangramento progredir mesmo com as intervenções recomendadas, o complexo protrombínico pode ser considerado.
Quando retornar a varfarina após o sangramento?
O retorno da varfarina após sangramentos maiores deve ser individualizado, considerando o risco tromboembólico e o risco de sangramento. A evidência sobre o momento ideal é limitada, com recomendações principalmente para sangramentos intracranianos e gastrointestinais.
Após sangramentos intracranianos, é recomendado aguardar de 4 a 8 semanas. Em pacientes de alto risco tromboembólico, como valvas mecânicas ou dispositivos ventriculares, o retorno precoce em 14 dias pode ser considerado a depender do risco de ressangramento [13, 14, 15]
Após sangramentos gastrointestinais nos quais o foco foi controlado, o retorno da anticoagulação em 7 a 14 dias parece ser seguro [16].
RNI supraterapêutico sem sangramento
Em pacientes com RNI maior ou igual a 4,5 sem sangramento, a primeira medida é suspender a varfarina e realizar nova aferição de RNI em até uma semana. A monitorização em regime hospitalar deve ser considerada para pacientes com alto risco de sangramento ou RNI acima de 9 a 10.
Quando o RNI está entre 4,5 e 10, a suspensão da varfarina parece ser suficiente, sem a necessidade de administrar vitamina K [17]. A utilização de vitamina K nestes casos não está associada a redução de sangramentos e pode atrasar o ajuste das metas de RNI após a retomada da varfarina [18, 19].
Para pacientes com RNI maior que 10, deve-se considerar a vitamina K em dose de 2,5 a 5 mg via oral. A recomendação é mais forte para pacientes com alto risco de sangramento (tabela 1) [18, 20, 21].
O uso de complexo protrombínico de 4 fatores ou plasma fresco congelado não é recomendado em pacientes sem sangramento. Não há benefício em prevenção de sangramentos e aumenta-se o risco de reações transfusionais.
Em casos de RNI maior que 4,5, a varfarina deve ser retomada quando o RNI estiver em faixa terapêutica. É recomendado retorno com uma dose menor à previamente utilizada. Em pacientes com RNI acima da faixa terapêutica, mas abaixo de 4,5, pode-se suspender uma dose de varfarina e retornar a dose conforme tabela 2.
Investigação da causa do sangramento e causa da alteração do RNI
Investigação das Causas do Sangramento
O sangramento propiciado pelo anticoagulante pode revelar lesões previamente desconhecidas.
A presença de lesões gástricas ou intestinais é comum, e a investigação deve ocorrer da mesma forma que em pacientes que não estão em anticoagulação. Aproximadamente 20% dos casos tem uma etiologia específica para o sangramento, sendo as mais comuns úlcera péptica, doença diverticular do cólon e neoplasias [22, 23].
Nos casos de hematúria associada à intoxicação por varfarina, a investigação também deve focar em possíveis causas secundárias. Em um estudo de acompanhamento de pacientes com hematúria microscópica em uso de anticoagulantes, até 80% apresentaram uma causa secundária, com as principais sendo infecção do trato urinário, cistos renais, nefrolitíase e neoplasias [24].
Causa da Intoxicação
As principais causas de intoxicação por varfarina incluem erros de dosagem e interações medicamentosas [25, 26].
Durante o acompanhamento e monitorização do RNI, é fundamental educar repetidamente o paciente sobre o uso correto dos medicamentos. A dose deve ser revisada em conjunto com o paciente, verificando a cartela do medicamento. Deve-se perguntar sobre mudanças de dose fora do acompanhamento médico.
Qualquer alteração na prescrição de pacientes em uso de varfarina deve ser acompanhada de uma checagem de interações medicamentosas. Os fármacos mais frequentemente associados a interações incluem antifúngicos (azólicos), antibióticos (cefalosporinas, quinolonas, sulfonamidas e penicilinas), anti-inflamatórios não esteroidais, paracetamol e amiodarona [27]. A tabela 3 exibe uma lista completa das interações.
Aproveite e leia:
Varfarina: Bulário e Quando Preferir em Relação aos DOACs
A varfarina é um anticoagulante antagonista da vitamina K. Ela atua inibindo os fatores de coagulação dependentes desse nutriente: proteína C, proteína S e fatores de coagulação II, VII, IX e X. Os anticoagulantes orais diretos (DOAC) são a primeira escolha em muitas situações, mas a varfarina ainda tem espaço na prática. Uma recente revisão do Journal of the American College of Cardiology avaliou essa questão e um ensaio clínico de janeiro de 2024 publicado no Circulation estudou a varfarina em indivíduos frágeis. Este tópico revisa o uso atual de varfarina.
Manejo de Sangramento Maior em Pacientes em Uso de Anticoagulante Oral
Sangramento é o principal evento adverso dos anticoagulantes e deve ser rapidamente identificado e manejado. Em julho de 2023, foi lançado um consenso no European Journal of Emergency Medicine sobre o tratamento de sangramento maior em pacientes em uso de anticoagulantes orais. Este tópico revisa a definição de sangramento maior e as estratégias para reverter a anticoagulação.
Investigação de Trombofilias
Trombofilias são condições que aumentam o risco de tromboses. A investigação de trombofilias após um evento trombótico tem indicações específicas. A British Society for Haematology lançou em 2022 uma diretriz com recomendações para testar trombofilias hereditárias e adquiridas. Esse tópico revisa as principais orientações do documento.
Intoxicações Ameaçadoras à Vida
Intoxicação crítica é aquela que leva a parada cardíaca, choque refratário ou outra condição com ameaça de parada cardíaca. Quando essas situações críticas ocorrem por intoxicações, a conduta costuma diferir do habitual. A American Heart Association (AHA) publicou uma atualização recente sobre esse tema. O tópico intoxicações ameaçadoras a vida - diretriz AHA 2023 traz os principais pontos da diretriz.
Diretriz de Dissecção de Artérias Cervicais 2024 AHA/ASA
A dissecção de artérias cervicais pode representar até 25% de todos os acidentes vasculares cerebrais (AVC) em pacientes com menos de 50 anos de idade. A condição pode acometer tanto a circulação anterior, pela artéria carótida interna (ACI), como a circulação posterior, pelas artérias vertebrais. Esse tópico revisa a nova diretriz publicada na Stroke em fevereiro de 2024.