Caso Clínico #26

Criado em: 28 de Novembro de 2024 Autor: Kaue Malpighi Revisor: João Mendes Vasconcelos

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Homem de 36 anos relata fadiga e náuseas há 2 semanas, sem vômitos. Há 1 semana, notou urina de coloração marrom, sem sangue vivo e sem disúria. Há 4 dias, percebeu a pele amarelada com piora progressiva e fezes esbranquiçadas, além de prurido. Negou febre, calafrios ou dor abdominal neste período. 

O paciente teve o diagnóstico de infecção pelo HIV há 3 anos e está em uso regular de dolutegravir, tenofovir e lamivudina, com as últimas duas cargas virais indetectáveis. Nega uso de outros medicamentos e fitoterápicos. Não apresenta parceria sexual fixa e informa uso de preservativo regularmente. Já utilizou testosterona para fins estéticos previamente, com a última aplicação há 1 ano. Não fez viagens recentes e tem condições de saneamento adequadas. Nega história familiar de hepatopatia.

Ao exame físico, está afebril com demais sinais vitais normais. Apresenta icterícia perceptível em conjuntiva, mãos e pés, com alguns sinais de escoriações na pele. Está consciente e orientado, não apresenta clônus induzível. Exame cardiovascular, pulmonar e abdominal sem alterações. 


A icterícia recente é o sintoma chave na apresentação do paciente e deve ser usada como guia para iniciar o raciocínio. Todo paciente com icterícia nova deve ser rapidamente avaliado com relação a três condições ameaçadoras à vida: lesão hepática com insuficiência hepática aguda, hemólise e colangite. 

A insuficiência hepática aguda é definida pela presença de lesão hepática aguda e alteração da razão normalizada internacional (RNI) que evolui com encefalopatia em até 26 semanas [1]. Deve-se buscar ativamente asterixis (flapping) e alterações de funções mentais que caracterizam encefalopatia — achados que, neste caso, não estão presentes.

Hemólise grave também pode causar icterícia aguda. O paciente apresentou sintomas inespecíficos, como fadiga e náuseas, que podem estar relacionados à anemia. Alterações na cor da urina ocorrem na hemólise intravascular, devido à hemoglobinúria. No entanto, prurido e acolia fecal tendem a surgir mais frequentemente com aumento da bilirrubina direta, enquanto na hemólise espera-se predomínio de bilirrubina indireta. A avaliação de palidez é prejudicada em pacientes com icterícia, mas um hemograma sem anemia ajudaria a excluir essa possibilidade.

Colangite tende a ser um quadro mais agudo e costuma cursar com febre e dor em hipocôndrio direto. A ausência de febre, dor ou alteração ao exame físico abdominal tornam essa hipótese pouco provável. Uma ultrassonografia de via biliar sem sinais de dilatação das vias extra-hepáticas pode afastar ainda mais esta hipótese.

A investigação da icterícia pode avançar distinguindo hiperbilirrubinemia direta e indireta com exames iniciais e os marcadores de lesão hepática (fluxograma 1). A comparação entre os níveis de transaminases e enzimas canaliculares diferencia o padrão de lesão em hepatocelular ou colestático, reduzindo o leque de possibilidades.

Fluxograma 1
Sugestão de fluxograma para investigação de icterícia
Sugestão de fluxograma para investigação de icterícia

O prurido e a acolia fecal sugerem um predomínio de hiperbilirrubinemia direta. A acolia costuma estar associada a obstruções das vias biliares, mas também ocorre em casos de hepatite viral aguda ou lesão hepática induzida por medicamentos com predomínio colestático.

Os exames laboratoriais mostram hemoglobina 13,4 g/dL, leucócitos 8.120/mm³ com contagem diferencial sem alterações, plaquetas 223.000/mm³, creatinina 0,9 mg/dL, ureia 42 mg/dL, sódio 138 mg/dL, potássio 4,1 mg/dL, TGO/AST 932 U/L, TGP/ALT 1.320 U/L, fosfatase alcalina 242 U/L, gama-GT 132 U/L, bilirrubina total 11,6 mg/dL, bilirrubina direta de 9,8 mg/dL, lactato desidrogenase 232 U/L e proteína C reativa 3,0 mg/dL. Sorologias para hepatite B e C e sífilis negativas.

A ultrassonografia de abdome superior evidenciou hepatomegalia leve, vesícula biliar e vias biliares extra-hepáticas sem alterações, ausência de sinais de hipertensão portal e baço de dimensões normais.


A ausência de anemia e o predomínio de bilirrubina direta permitem excluir hemólise como causa da icterícia. A ultrassonografia das vias biliares sem alterações afasta a hipótese de colangite. O quadro clínico deve ser uma consequência da lesão hepática evidenciada pelos exames.

As lesões hepáticas podem ser classificadas em padrão hepatocelular ou colestático. Veja mais em "Abordagem à Elevação de Enzimas Hepáticas". Neste caso, a elevação desproporcional das transaminases indica uma lesão hepática de padrão hepatocelular, com início agudo e sem sinais de hepatopatia crônica no exame físico ou de imagem.

As principais causas de lesão hepática aguda de padrão hepatocelular são medicamentos, hepatites virais, hepatite alcoólica, hepatite autoimune e doença de Wilson.

O paciente apresenta lesão hepatocelular grave, caracterizada por um aumento de transaminases mais de 15 vezes o limite superior da normalidade. Quando as transaminases estão maiores que 1.000, as etiologias mais frequentes são hepatite isquêmica, hepatite viral, medicamentosa e doenças da via biliar [2].

Hepatite isquêmica ocorre geralmente no contexto de choque circulatório, porém o paciente não apresentou instabilidade hemodinâmica. Doenças biliares não são boas explicações pela ausência de padrão colestático e ultrassonografia normal. Hepatites virais são uma forte possibilidade, visto a sua frequência e a ausência de outras causas que expliquem o quadro.

A hepatite B é a causa viral mais frequente de hepatite aguda e pode ser afastada com as sorologias negativas. Hepatite C aguda é geralmente assintomática, mas para excluir completamente essa hipótese é necessário pesquisar diretamente o RNA de HCV, já que a sorologia pode estar negativa em uma infecção recente.

A hepatite A, embora menos comum, costuma se manifestar de forma aguda com icterícia, podendo haver prurido, acolia e hepatomegalia dolorosa. Sintomas sistêmicos, como fadiga, náuseas e dor abdominal, habitualmente precedem o quadro, o que é compatível com os sintomas do paciente. É possível que ele não tenha sido vacinado contra a hepatite A, já que a vacina não estava disponível no SUS na época de seu nascimento. A revisão de exposições a alimentos contaminados e do histórico sexual é necessária, considerando que a transmissão da hepatite A ocorre por via fecal-oral. A sorologia pode auxiliar no diagnóstico.

Nos Estados Unidos, a causa de lesão hepática medicamentosa mais comum é o paracetamol, embora esse agravo seja menos frequente no Brasil [3,4]. Veja mais em "Consenso de Intoxicação por Paracetamol". Na América Latina, os medicamentos mais associados a lesão hepática são amoxicilina-clavulanato, suplementos herbáceos e dietéticos e drogas antituberculose (tabela 1) [3,5]. O paciente utiliza dolutegravir, tenofovir e lamivudina, que raramente causam lesão hepática aguda.

Tabela 1
Principais causas de lesão hepática induzida por drogas na américa latina
Principais causas de lesão hepática induzida por drogas na américa latina

Não há relato de uso atual de medicamentos hepatotóxicos pelo paciente. Uma ferramenta para checar o risco de hepatotoxicidade das substâncias é o LiverTox. Por apresentar histórico de uso de anabolizantes, deve-se pesquisar ativamente a administração recente dessas substâncias, além de suplementos alimentares ou fitoterápicos.

A hepatite autoimune ocorre mais em mulheres ou associada a outras condições autoimunes, sendo pouco provável neste caso. A doença de Wilson é normalmente considerada em uma lesão hepática sem causa clara, principalmente em associação com manifestações neuropsiquiátricas, hemólise não imune ou história familiar de primeiro grau positiva, o que não está presente.

Em casos de lesão hepática aguda, deve-se pesquisar a coagulopatia com tempo de protrombina/RNI e manter vigilância neurológica pelo risco de progressão para insuficiência hepática aguda. O paciente deve ser internado e encaminhado para um hospital com hepatologista e equipe de transplante hepático para acompanhamento da evolução do quadro. Caso desenvolva encefalopatia, o monitoramento em unidade de terapia intensiva é necessário. 

O coagulograma evidenciou um INR de 1,7. As transaminases reduziram nas 48 horas seguintes, com TGO 620 U/L e TGP 910 U/L, e a bilirrubina direta aumentou para 12,0 mg/dL. O paciente evoluiu com sonolência, mas despertando ao chamado, mantendo-se vigil durante a conversa, obedecendo a comandos e orientado em tempo e espaço. Havia tremores, mas sem asterixis (flapping) e sem déficits focais. Foi transferido para unidade de terapia intensiva de outro hospital de referência com equipe de transplante hepático disponível.

Neste novo hospital, foi solicitado sorologia para hepatite A, anticorpos para hepatite autoimune, ceruloplasmina e cobre urinário. Todos ainda sem resultado. O histórico de medicamentos, suplementos e exposições sexuais foi revisto. Nenhum medicamento novo, suplemento nutricional ou fitoterápico foi usado recentemente e o uso de anabolizantes com testosterona foi de fato feito pela última vez há um ano. Relata múltiplos parceiros sexuais com uso de preservativo nos últimos meses.


O paciente preenche os critérios para insuficiência hepática aguda, com lesão hepática, RNI maior que 1,5 e encefalopatia de grau I segundo a classificação de West-Haven, com evolução em menos de 26 semanas. Esta é a definição mais usada atualmente, embora outras classificações também existam [6]. O paciente deve ser monitorizado em UTI. 

A queda nas transaminases nem sempre indica melhora da lesão hepática. Quando ocorre com a piora do RNI e alterações neurológicas, pode significar progressão da insuficiência, refletindo uma redução na massa de hepatócitos. É necessário monitorar o RNI e os níveis de bilirrubina para interpretar a evolução laboratorial precisamente.

Comprometimento neurológico é a principal disfunção orgânica associada à mortalidade na insuficiência hepática aguda [7]. O aumento da amônia sérica pode causar rápida deterioração neurológica, levando à hipertensão intracraniana (HIC). A monitorização deve incluir avaliação do nível de consciência, alterações pupilares e sinais de HIC, como bradicardia, hipertensão e taquipneia.

A dosagem de amônia arterial pode ser útil nesses casos, correlacionando-se com o risco de herniação cerebral, especialmente quando acima de 150 umol/L. Esse parâmetro pode orientar decisões quanto à profilaxia de edema cerebral [8]. Veja mais em "Encefalopatia Hepática".

O aumento do RNI representa piora da função hepática, mas não está necessariamente relacionado a risco de sangramento. Em um estudo usando tromboelastografia, apenas um a cada cinco pacientes apresentava estado de hipocoagulabilidade [9]. Nesse contexto, não é recomendado uso de plasma fresco congelado ou complexo protrombínico de rotina ou para correção de RNI antes de procedimentos de baixo a moderado risco de sangramento [1]. O RNI é um parâmetro importante para o transplante e o uso desnecessário desses produtos pode atrasar as condutas e aumentar o risco de reações transfusionais. 

O tratamento da insuficiência hepática aguda deve ser direcionado para a causa de base. O acompanhamento é feito em conjunto com a equipe de transplante hepático e a indicação de transplante deve ser constantemente avaliada, sendo um dos critérios utilizados o de King's College. Terapias de resgate, como N-acetilcisteína e plasmaférese, podem ser consideradas.

A N-acetilcisteína é recomendada para tratamento de intoxicação por paracetamol. O benefício no contexto de insuficiência hepática aguda não associada ao paracetamol é incerto. Um estudo que avaliou o uso neste contexto não encontrou benefício de sobrevida em 3 semanas. Em análise de subgrupo de pacientes com encefalopatia grau I e II, foi encontrado benefício [10]. A decisão de realizar neste paciente pode ser tomada em conjunto com o hepatologista.

Apesar de a insuficiência hepática aguda não ser comum na hepatite A, esta permanece uma importante hipótese neste caso pela exclusão dos diagnósticos diferenciais. Mesmo com o uso de preservativos, ainda há risco de adquirir essa infecção pelo contato sexual [11,12]. Enquanto os resultados das sorologias e outras investigações estão pendentes, o paciente deve permanecer em UTI, com monitorização neurológica constante e controle da coagulopatia. A dosagem de amônia arterial deve ser solicitada para auxiliar no manejo e na avaliação do prognóstico neurológico.

Veja o desfecho do caso

Após 5 dias de internação e observação em UTI, as transaminases reduziram progressivamente e a bilirrubina direta e o INR também começaram a normalizar, com valores de 7,8 mg/dL e 1,3, respectivamente. O paciente apresentava nível de consciência preservado, orientado e com melhora dos tremores.

Os anticorpos para hepatite autoimune estavam negativos, cobre urinário e ceruloplasmina sérica normais. A sorologia para hepatite A apresentou IgM positivo e IgG negativo. O paciente recebeu alta da UTI por melhora dos sinais de insuficiência hepática e manteve observação em enfermaria.


A hepatite viral aguda é a principal causa de insuficiência hepática aguda no mundo [1,13]. A hepatite A costuma ser autolimitada e menos de 1% dos casos evoluem com insuficiência hepática aguda. Mesmo nestes casos, apenas 30% necessitam de transplante hepático [1]. 

A transmissão é fecal-oral, ocorrendo por contato pessoal próximo, contato sexual ou por alimentos e água contaminados. Pode ocorrer transmissão em surtos, como o de São Paulo em 2017, no qual 40% das pessoas eram homens que fazem sexo com homens e em Curitiba em 2024, onde a principal via de transmissão também foi o contato sexual.

A vacina contra hepatite A entrou no calendário de vacinação em 2014 no SUS, sendo aplicada aos 12 e 18 meses de idade. A vacina é duradoura e não há necessidade de reforço após as doses iniciais [14,15]. Pela idade do paciente, ele não foi vacinado na infância. Adultos, principalmente em risco de hepatite A, podem tomar a vacina caso não tenham sido vacinados na infância.

Não há tratamento específico para hepatite A além do suporte.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • Em casos de icterícia aguda, três causas de risco de vida devem ser excluídas: insuficiência hepática aguda, colangite e hemólise. A investigação em seguida deve diferenciar causas de hiperbilirrubinemia direta e indireta. Em casos de bilirrubina direta elevada, o padrão das enzimas hepáticas pode auxiliar no diagnóstico diferencial, identificando se é um padrão colestático ou hepatocelular.
  • Na América Latina, o paracetamol não é a principal causa de lesão hepática aguda induzida por medicamentos. As principais causas medicamentosas são a amoxicilina-clavulanato, suplementos alimentares e fitoterápicos, terapia antituberculosa e anabolizantes.
  • Em casos onde as transaminases ultrapassam 1.000 U/L, as principais hipóteses diagnósticas a serem consideradas são hepatite isquêmica, hepatite viral, uso de medicamentos e doenças das vias biliares.
  • Insuficiência hepática aguda é definida como lesão hepática aguda com coagulopatia e encefalopatia hepática que evolui em menos de 26 semanas na ausência de cirrose. Pacientes com insuficiência hepática aguda devem ser manejados em locais com recursos para avaliação rápida para transplante.
  • A disfunção neurológica é a principal causa de mortalidade na insuficiência hepática aguda. Pacientes podem apresentar rápida deterioração neurológica devido ao edema cerebral, especialmente quando a amônia arterial está acima de 150 umol/L.
  • Embora incomum, a hepatite A pode causar insuficiência hepática aguda. Os últimos surtos da doença no Brasil envolveram a transmissão por via sexual, tornando esse um importante fator de risco a ser considerado.

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