Hemocromatose Hereditária: Diagnóstico e Investigação

Criado em: 09 de Dezembro de 2024 Autor: Gabriel Paes Revisor: João Mendes Vasconcelos

Hemocromatose hereditária é a doença genética mais comum entre indivíduos com descendência do norte europeu, ocorrendo 1 caso a cada 200-400 pessoas [1, 2]. Em 2022 foi publicado um artigo de revisão sobre o tema no New England Journal of Medicine (NEJM) [3]. Este tópico revisa a definição, sintomas mais comuns, diagnóstico e tratamento da doença.

O que é hemocromatose?

Hemocromatose hereditária (HH) é uma doença genética autossômica recessiva que pode causar sobrecarga de ferro no corpo, com acúmulo principalmente no fígado, coração e hipófise.

A forma mais comum da doença está associada às mutações C282Y e H63D, que afetam a função da proteína HFE, responsável pela regulação do ferro corporal. A perda da função da HFE reduz a expressão de hepcidina, resultando em maior absorção intestinal de ferro.

A HH é classificada em quatro tipos, conforme o gene afetado. O tipo 1, representado pela mutação dos genes C282Y/H63D, é responsável por mais de 95% dos casos. A penetrância das mutações é variável, com até 25% dos pacientes permanecendo assintomáticos ao longo da vida [4].

A sobrecarga de ferro pode ocorrer por mecanismos diferentes de HH. O termo hemocromatose secundária deve ser evitado nessas situações, pois pode gerar confusão diagnóstica a falsa associação com a doença genética. Exemplos são talassemia e mielodisplasia, onde existe eritropoiese ineficaz, bem como pacientes com histórico de múltiplas transfusões [5]. Pacientes que recebem a partir de 15 a 20 concentrados de hemácia possuem risco mais elevado de desenvolver sobrecarga de ferro. [6]. Esses pacientes também podem ter sintomas relacionados à sobrecarga, como cirrose e cardiomiopatia [7].

Quando suspeitar?

O desenvolvimento de sobrecarga de ferro e início dos sintomas demoram décadas para se manifestar. A idade média do diagnóstico de HH é dos 40 aos 50 anos [2] Mulheres costumam ser diagnosticadas um pouco mais tarde devido a perdas menstruais. Em pacientes jovens com ferritina elevada, a HH é improvável e não deve ser a primeira hipótese.

A apresentação clínica mais comum da HH é a hepatopatia, que pode ocorrer em várias intensidades diferentes [3]. O paciente pode apresentar desde elevação de transaminases sem sintomas até quadros avançados como cirrose hepática. Hepatomegalia e carcinoma hepatocelular também podem ocorrer. Hepatite aguda não é uma manifestação associada a HH isolada, mas o paciente pode ter outros motivos simultâneos para uma hepatite, como uso de álcool ou infecções virais.

Os sintomas mais comuns incluem fadiga/letargia, hiperpigmentação cutânea, artralgia e disfunção erétil [8]. A infiltração pancreática do ferro pode resultar em diabetes. A tríade diabetes mellitus, cirrose e hiperpigmentação é descrita em pacientes em fase avançada, mas está presente em menos de 10% dos casos atualmente [2] (tabela 1).

Tabela 1
Manifestações clínicas da hemocromatose hereditária
Manifestações clínicas da hemocromatose hereditária

O acometimento cardíaco pode resultar em cardiomiopatia e insuficiência cardíaca ou em manifestações eletrofisiológicas, como distúrbios de condução e arritmias. Os pacientes com HH são mais suscetíveis a certas infecções, como por Vibrio vulnificus e Yersinia enterocolitica [9, 10].

Na artropatia por HH, a 2º e 3º articulações metacarpofalangeanas são as mais acometidas, seguidas de quadril, tornozelo e joelho. A presença de artropatia nesses pacientes está associada com hepatopatia crônica, já que 34% dos pacientes com artrite tem fibrose hepática avançada [11].

Por ser uma doença genética, pode-se também suspeitar de hemocromatose em casos de história familiar de doença hepática. 

O diagnóstico diferencial inclui doenças que podem elevar a ferritina e transaminases, como doença hepática esteatótica associada a disfunção metabólica (MASLD), hepatopatia alcoólica e outras causas de hepatopatia crônica.

Diagnóstico

Após suspeita clínica em pacientes sintomáticos e/ou com aumento de transaminases em investigação, deve-se pesquisar sobrecarga de ferro com ferritina e índice de saturação de transferrina (IST).

Ferritina > 200 ng/ml em mulheres ou > 300 ng/ml em homens e uma IST > 45% indicam sobrecarga de ferro [1, 3]. Pacientes com esses valores devem prosseguir para avaliação genética. Deve ser realizada a pesquisa de mutação C282Y. O diagnóstico de HH se dá por sobrecarga de ferro associada à mutação genética. O achado mais comum em pacientes com HH é a mutação C282Y em homozigose. Sexo masculino e ferritina > 1000 ng/dL elevam o risco de evolução para hepatopatia avançada [3].

Ressonância magnética (RM) e biópsia hepática podem quantificar a sobrecarga de ferro. Essas ferramentas auxiliam no diagnóstico em pacientes que não conseguem realizar o teste genético. Além disso, esses exames avaliam diagnósticos alternativos em casos duvidosos e estimam o grau de fibrose hepática com objetivo prognóstico. 

A RM consegue estimar a sobrecarga de ferro no fígado e no coração, através de programas específicos para análise de ferro. O exame também auxilia no diagnóstico diferencial, já que o depósito de ferro no baço é visto apenas nas sobrecargas de ferro por causas diferentes de HH [1].

Para estimar a fibrose hepática, a diretriz do colégio americano de gastroenterologia recomenda a realização da biópsia ao invés da RM. Nesse cenário, a biópsia hepática deve ser realizada apenas em pacientes com ferritina acima de 1000 ng/ml e com alteração do C282Y em homozigose. Sem esses critérios, menos de 2% dos pacientes apresentam fibrose hepática [1]

A American Family Physician recomenda um fluxograma diagnóstico que considera as diversas apresentações laboratoriais (fluxograma 1). 

Fluxograma 1
Esquema diagnóstico na suspeita de hemocromatose hereditária
Esquema diagnóstico na suspeita de hemocromatose hereditária

Existe também a recomendação de teste genético em pacientes acima de 18 anos assintomáticos e com familiar de primeiro grau com diagnóstico confirmado [1, 3].

Tratamento

Prevenir e tratar outros insultos hepáticos como etilismo, obesidade e síndrome metabólica faz parte do tratamento. Até 25% dos pacientes com HH evoluem para hepatopatia avançada e possuem maior risco de diabetes mellitus. A prática de exercícios físicos regulares é recomendada.

Hemocromatose também eleva o risco de neoplasia hepática (principalmente carcinoma hepatocelular), bem como de neoplasia colorretal e de mama [2, 3]. Atualmente não há recomendações de rastreio de doenças oncológicas em pacientes com HH. No entanto, em casos de cirrose, deve-se seguir as recomendações de rastreio de carcinoma hepatocelular, detalhadas no tópico "Carcinoma Hepatocelular".

Medidas dietéticas como redução do consumo de alimentos ricos em ferro (como carne vermelha) e vitamina C (adjuvante na absorção intestinal de ferro) podem ser consideradas, apesar de menor grau de evidência [1, 2]. Existe recomendação de evitar frutos-do-mar pelo risco aumentado de infecção por Vibrio vulnificus.

A flebotomia está indicada em pacientes com sobrecarga laboratorial de ferro. A recomendação é realizar flebotomia semanal de 500 ml até o alvo de ferritina sérica de 50-150 ng/ml. Após atingi-lo, a flebotomia pode ser realizada 3 a 4 vezes por ano, com dosagem semestral de ferritina para mantê-la em torno de 50 ng/ml [1, 2]. A flebotomia não reverte lesões de órgão alvo já estabelecidas, como diabetes, hipogonadismo e cirrose hepática, porém pode reduzir sintomas da doença e evitar a progressão de hepatopatia e cardiomiopatia [1, 2, 3].

Outros tratamentos como quelantes de ferro e aférese de hemácias possuem efeitos colaterais e custo mais elevado, portanto não são recomendados como tratamento de primeira linha [2, 3].

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