Consenso de Emergências Hiperglicêmicas
Um novo consenso internacional de emergências hiperglicêmicas foi publicado em agosto do 2024 pela American Diabetes Association (ADA), European Association for the Study of Diabetes (EASD), American Association of Clinical Endocrinology (AACE) e outras sociedades [1]. Publicado originalmente em 2001 e atualizado pela última vez em 2009, o documento agora incorpora os avanços mais recentes para o manejo dessas condições. Este tópico revisa aspectos práticos no diagnóstico e manejo da cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar.
A fisiopatologia das crises hiperglicêmicas, fatores desencadeantes e critérios de sobreposição entre cetoacidose e estado hiperosmolar pode ser conferida no tópico "Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar e Outras Complicações Agudas do Diabetes".
Diagnóstico de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar
Cetoacidose diabética (CAD) e estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH) possuem critérios diagnósticos bem definidos segundo o último consenso da ADA [1] (tabela 1). Para estabelecer o diagnóstico dessas condições, todos os critérios elencados devem estar presentes.
A presença de corpos cetônicos pode ser identificada no sangue ou na urina. A mensuração pode ser feita por análises semiquantitativas do ácido acetoacético ou pela avaliação direta da presença de beta-hidroxibutirato, sendo este último o principal cetoácido produzido durante a CAD. A aferição de beta-hidroxibutirato no sangue é mais sensível e específica do que a de ácido acetoacético, elevando-se mais precocemente e mensurando de maneira mais fidedigna o grau de cetonemia [2]. Uma opção muito utilizada na prática é a avaliação do ácido acetoacético na urina por meio de tiras reagentes que graduam a cetonúria em cruzes. No entanto, essa medida pode estar alterada mesmo em pessoas sadias, pelas limitações do método que pode sofrer influência de medicações ou da análise laboratorial [3].
A elevação do ânion gap não é considerada um critério diagnóstico segundo o consenso. Cerca de um terço dos pacientes com CAD apresentam distúrbios ácido-básicos mistos, o que pode confundir a avaliação da gasometria desses pacientes. O motivo mais comum é a associação de uma alcalose metabólica devido à depleção de volume secundária às náuseas e vômitos e uma alcalose respiratória compensatória [4]. Para mais detalhes sobre a abordagem de distúrbios ácido-básicos mistos, confira o "Caso Clínico #21".
Outra novidade é a inclusão da história de diabetes mellitus (DM) como critério diagnóstico. Caso o paciente tenha histórico de DM, não é necessário glicemia elevada para o diagnóstico. Essa mudança visa incluir os casos de cetoacidose euglicêmica, que aumentaram em proporção nos últimos anos [5,6].
Manejo de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar
O manejo das emergências hiperglicêmicas inclui a reposição de volume e eletrólitos, correção da hiperglicemia e identificação de causas da descompensação [5]. O fluxograma 1 traz os principais eixos do manejo de CAD e EHH.
A reposição de fluidos intravenosos (IV) pode ser feita com soro fisiológico ou soluções balanceadas, priorizando a solução mais disponível para não atrasar a hidratação do paciente. O consenso recomenda soluções balanceadas, principalmente se grandes volumes forem utilizados, pelo risco de acidose hiperclorêmica e aumento do tempo de resolução da CAD [7,8].
A recomendação do documento é de 500 a 1000 mL de fluido nas primeiras 2 a 4 horas. Esse volume deve ser utilizado com cautela em pacientes com disfunção renal ou cardíaca, gestantes ou idosos [1]. Após essa expansão inicial, a escolha da solução e do volume subsequentes vai depender da perfusão do paciente, variação do sódio e osmolaridade.
No EHH, a hiperglicemia tende a demorar mais a resolver, de 8 a 10 horas. A glicemia deve reduzir em velocidade menor que 90 a 120 mg/dL/h, para reduzir o risco de edema cerebral. Pelo mesmo motivo, a redução da natremia não deve exceder 10 mmol/l em 24 horas e a taxa de queda da osmolaridade não deve ser maior que 3,0 a 8,0 mOsm/kg/h. Soluções hipotônicas devem ser utilizadas apenas se a osmolaridade não reduzir com o tratamento inicial [9].
A maioria dos pacientes com CAD inicialmente apresenta potássio sérico normal ou elevado, apesar do déficit corporal total. Ao longo do tratamento, a maioria evolui com queda desse eletrólito [10]. Uma coorte de 2019 [11] mostrou que pacientes com hipocalemia grave (< 2,5 mEq/L) tiveram maior mortalidade mesmo após ajuste para confundidores. O potássio sérico deve ser medido antes do início da insulina e, a partir disso, três condutas são possíveis:
- Se potássio < 3,5 mEq/L, a insulina não deve ser iniciada e o eletrólito deve ser reposto a níveis acima de 3,5 mEq/L;
- Se potássio entre 3,5 e 5,2 mEq/L, a infusão de volume deve ser acompanhada de infusão de KCl 19,1% a 10-30 mEq/h, enquanto o K estiver abaixo de 5,2 mEq/L;
- Se potássio sérico > 5,2 mEq/L, não infundir potássio e a insulina deve seguir sendo administrada.
Durante o tratamento da CAD, o potássio deve ser medido em gasometria a cada 1 a 4 horas, a depender dos níveis séricos.
Na CAD com potássio > 3,5 mEq/L, o início de insulina intravenosa deve ser imediato [1]. A taxa de infusão deve ser de 0,1 U/kg/h ou conforme protocolo institucional. A diretriz brasileira traz como alvo a queda da glicemia de 50 a 70 mg/dL/h, já o consenso de 2024 não traz isso como um dos objetivos do tratamento. A infusão de bolus inicial de insulina não é superior ao início de infusão contínua, sendo o bolus recomendado apenas se não houver disponibilidade de iniciar a infusão imediatamente.
O consenso ressalta a possibilidade de administração de insulina basal (0,15-0,3 U/kg via SC) simultaneamente à infusão contínua de insulina regular. O uso dessa estratégia reduz tempo de resolução da CAD, de infusão de insulina e de internação hospitalar, além de prevenir hiperglicemias de rebote, sem aumento do risco de hipoglicemias [12,13].
Em pacientes com CAD, a hiperglicemia chega geralmente a valores menores que 250 mg/dL em 4 a 8 horas, habitualmente antes da resolução da acidose. Por isso, a recomendação é adicionar solução glicosada a 5% junto à solução cristaloide quando a glicemia reduzir a este patamar [14]. O objetivo é manter a glicemia em torno de 200 mg/dL durante a infusão até a resolução da acidose. Nesse momento, a infusão deve reduzir para 0,5 U/kg/h via IV.
Na CAD leve a moderada (tabela 2), a escolha de insulina pode ser tanto regular IV em infusão contínua, como análogos de ação rápida via subcutânea (SC), sem superioridade entre os dois esquemas para esse perfil de paciente [15]. A administração SC a cada 1 a 2 horas de análogos de ação rápida pode ser uma alternativa eficaz para cenários de escassez de recursos, poupando a necessidade de internação em leito de UTI [16].
Nos casos de EHH, a insulina basal que o paciente usa deve ser mantida e a insulina regular IV deve ser iniciada a 0,05 U/kg/h. A expansão volêmica por si já reduz a glicemia e
alguns autores sugerem iniciar a insulina apenas após a parada da queda da glicemia com essa medida. O argumento é evitar variações acima do esperado da osmolaridade sérica [1,17].
O bicarbonato não deve ser reposto de rotina. Uma exceção é quando o pH estiver < 7,0 pelo risco de arritmias e de hipocontratilidade cardíaca secundários à acidemia grave. Se indicado, deve ser reposto com 100 mmol de HCO₃⁻ diluídos em 400 mL de solução isotônica, a cada 2 horas até atingir um pH > 7,0 [1]. Acima deste pH, a administração de bicarbonato pode atrasar a resolução da CAD, piorar ou deflagrar hipocalemia e gerar acidose paradoxal no sistema nervoso central com injúria cerebral [3].
A hipofosfatemia também pode ocorrer na CAD devido a perda de fósforo urinário. Contudo, a reposição de rotina não é recomendada. A reposição rápida de fósforo pode precipitar hipocalcemia, sem melhora em desfechos para CAD. O uso deve ser reservado para casos com fósforo sérico < 1,0 mmol/L com evidência de insuficiência respiratória ou cardíaca [3,18].
Os principais fatores desencadeantes de CAD se encontram na tabela 3.
Critérios de resolução
A CAD é considerada resolvida quando [5]:
- cetonemia < 0,6 mmol/L E
- pH > 7,3 ou HCO₃⁻ > 18 mmol/L
O ânion gap não deve ser utilizado como critério de resolução da CAD, segundo o consenso. Grandes volumes de cloreto de sódio 0,9% são administrados para corrigir a desidratação. Esse fluido contém altas concentrações de cloreto, o que pode reduzir o ânion gap, dificultando a interpretação desse parâmetro.
Na CAD, após a resolução da acidose, a insulina subcutânea deve ser iniciada em esquema basal-bolus similar a dose prévia do paciente ou 0,4 a 0,8 U/kg. A administração deve ocorrer de 1 a 2 horas antes da suspensão da insulina IV, para garantir que haja insulina disponível quando a infusão for descontinuada. Não é recomendado o uso das insulinas ultra longas como degludeca ou glargina U300 nesse momento, por não terem sido estudadas nesse cenário. A tabela 4 mostra os cuidados na transição da insulina IV para SC.
Para EHH, o consenso considera resolução quando a osmolaridade estiver < 300 mOsm/kg, hiperglicemia corrigida, débito urinário > 0,5 mL/kg/h e melhora do nível de consciência [1].
Situações especiais
Dois cenários especiais devem ser ressaltados: pacientes em uso de inibidores de SGLT2 (iSGLT2) e pacientes com doença renal crônica (DRC) estágio V ou em terapia de substituição renal.
Pacientes em uso de iSGLT2 podem se apresentar com CAD e glicemias normais ou abaixo de 200 mg/dL. Nesses casos, a solução glicosada a 5 ou 10% já entra no início do tratamento [19]. Além disso, o iSGLT2 deve ser suspenso e o consenso não recomenda seu retorno após a resolução do quadro. Apesar dessa recomendação, uma metanálise de 2021 encontrou que os benefícios cardiovasculares e renais superariam os riscos de CAD [20].
Pacientes com DRC estágio V ou dialíticos geralmente apresentam níveis mais acentuados de hiperglicemia, hiponatremia, osmolaridade e hipercalemia, porém menores concentrações de cetonas. Esses pacientes normalmente estão em sobrecarga de fluidos, e a hidratação deve ser muito cautelosa, se indicada. O monitoramento do potássio e glicemia devem ser mais frequentes.
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