Caso Clínico #27

Criado em: 19 de Dezembro de 2024 Autor: João Urbano Revisor: João Mendes Vasconcelos

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Uma mulher de 19 anos busca assistência em consulta ambulatorial com queixa de cefaleia há dois anos, que se tornou diária e mais intensa há seis meses. A paciente caracteriza os episódios de dor como de forte intensidade, duração de pelo menos seis horas, com limitação importante de atividades diárias. A localização é holocraniana, de caráter pulsátil, associado à fotofobia, fonofobia e zumbido bilateral. Ela reporta que a dor piora ao deitar e já a acordou durante a noite. Não havia náuseas ou vômitos. Previamente, procurou o pronto atendimento em episódios de dor com pouca resposta a analgésicos simples e anti-inflamatórios não esteroidais.


Os pontos principais na abordagem diagnóstica da cefaleia são:

  • Checar a presença de sinais de alerta para a investigação de cefaleias secundárias.
  • Procurar ativamente critérios que satisfaçam o diagnóstico de uma cefaleia primária.

Cefaleia primária é aquela em que a dor de cabeça constitui o próprio distúrbio, sem causa subjacente detectável, caracterizando-se por padrões clínicos específicos, como na enxaqueca ou cefaleia tensional. Veja exemplos de características clínicas das cefaleias primárias na tabela 1.

Tabela 1
Características clínicas das principais cefaleias primárias
Características clínicas das principais cefaleias primárias

As cefaleias secundárias resultam de uma condição subjacente, como hemorragias ou neoplasias. A mais comum delas é a cefaleia por uso excessivo de analgésicos [1, 2]. As demais cefaleias secundárias têm representatividade muito variável nos estudos, variando conforme a população e o cenário de atendimento. Em um estudo de coorte brasileiro, as doenças intracranianas não vasculares, como a hipertensão intracraniana idiopática, foram a segunda causa mais prevalente, após a cefaleia por uso excessivo de analgésicos [2].

Os sinais de alarme foram compiladas em um acrônimo chamado SNNOOP10 e estão organizados na tabela 2 conforme a cefaleia secundária associada [3].

Tabela 2
Descrição dos sinais de alarme para cefaleias secundárias - SNNOOP10
Descrição dos sinais de alarme para cefaleias secundárias - SNNOOP10

O principal tipo de cefaleia primária nos atendimentos ambulatoriais e de emergência é a enxaqueca. Apesar de a cefaleia tipo tensão ser mais prevalente na população geral, comumente ela é resolvida sem que o paciente procure atendimento médico [4]. 

A presença de sinais de alarme deve motivar a pesquisa de cefaleias secundárias. Isso é válido mesmo se o paciente fechar critérios para o diagnóstico de uma cefaleia primária ou se tiver melhora sintomática com analgésicos. Isso se aplica à paciente do caso, cuja cefaleia possui características clínicas de enxaqueca, mas também apresenta sinais de alarme na anamnese para cefaleia secundária, pelo caráter progressivo e posicional. O próximo passo é realizar o exame neurológico para prosseguir com a investigação. 

Além da persistência da cefaleia, uma piora da visão há dois meses motivou a consulta. A perda visual é binocular, mas predomina no olho esquerdo. Ela descreve como afunilamento e embaçamento do campo visual. Cerca de quatro vezes desde o início da cefaleia, apresentou pioras transitórias de visão com duração de segundos, descritas como “apagões”.


Achados visuais podem ocorrer em cefaleias primárias. A principal delas é a aura visual de enxaqueca, que é a aura mais prevalente dentre as enxaquecas com aura. Ela tem a principal característica de ser transitória, com duração entre 5 e 60 minutos.

O achado de alteração persistente de campo visual reforça a necessidade de investigação adicional. Entre as condições que podem se apresentar com cefaleia e episódios de perda visual de curta duração (alguns segundos) incluem-se a amaurose fugaz associada à arterite de células gigantes e as perdas visuais transitórias decorrentes da hipertensão intracraniana idiopática.

Já sintomas visuais persistentes podem ocorrer no contexto de cefaleia por causas como síndrome da encefalopatia posterior reversível (conhecida como PRES, do acrônimo em inglês), hipertensão intracraniana levando a dano permanente no nervo óptico ou condições oftalmológicas como glaucoma de ângulo fechado.

A paciente possui histórico de obesidade desde a infância, atualmente com índice de massa corporal (IMC) de 37 kg/m², e depressão controlada com psicoterapia e uso de sertralina 100 mg/d. Ao exame físico, a paciente apresentava sinais vitais normais, com pressão arterial de 120/78 mmHg e glicemia capilar de 90 mg/dL. Foi encontrado papiledema ao exame de fundoscopia direta (figura 1). O exame motor, sensitivo, de coordenação e equilíbrio e demais nervos cranianos estava normal.


O exame físico na cefaleia é limitado, mas deve conter obrigatoriamente os seguintes pontos: 

  • Aferição de sinais vitais 
  • Dados de antropometria como peso e altura
  • Exame de fundo de olho para pesquisa de papiledema
  • Procura de sinais neurológicos focais pelo exame neurológico geral 

A elevação da pressão arterial a valores menores que 180 mmHg de pressão sistólica e 120 mmHg de pressão diastólica parece não causar cefaleia. No entanto, aumentos abruptos e em conjunto com outros sintomas como alteração da consciência, sintomas visuais, palpitações e disautonomia podem estar associados a causas de cefaleia secundária como encefalopatia hipertensiva, PRES, feocromocitoma e pré-eclâmpsia [5].

Obter dados de antropometria, como peso e altura, são relevantes na suspeita de hipertensão intracraniana idiopática, visto que a obesidade é o principal fator de risco modificável da doença. Existe correlação entre a perda de peso e a melhora sintomática e diminuição da progressão da doença. A inspeção pode fornecer pistas de fatores perpetuadores de cefaleia, como síndrome de apneia obstrutiva do sono, se houver alterações como circunferência aumentada do pescoço ou retrognatia.

O papiledema é um achado importante com alta associação com doenças graves que cursam com hipertensão intracraniana, como tumores do sistema nervoso e hipertensão intracraniana idiopática. O papiledema é um preditor de alterações estruturais em exames de neuroimagem [6].

A fundoscopia pode ser realizada de maneira mais acessível por meio da oftalmoscopia direta com oftalmoscópio. É possível visualizar achados do nervo óptico na retina e seus vasos. Na avaliação das cefaleias, o achado mais relevante é a presença de papiledema (figura 1). O papiledema nem sempre surge na sua forma completa e a alteração por hipertensão intracraniana segue uma ordem de alterações graduadas pela escala de Frisen (exemplos podem ser vistos neste link). O exame de oftalmoscopia indireta requer uma maior curva de aprendizado e dilatação pupilar para melhor visualização.

Figura 1
Retinografia com achado de papiledema.
Retinografia com achado de papiledema.

Um déficit neurológico focal, como afasia, paralisia de nervos cranianos ou alteração de campo visual (figura 2), pode indicar uma lesão estrutural. A paralisia do nervo abducente pode ser um falso sinal localizatório na síndrome de hipertensão intracraniana. A paralisia desse nervo craniano pode estar presente sem que haja uma lesão propriamente dita dessa estrutura. O motivo desse fenômeno é o trajeto desse par craniano, particularmente suscetível ao aumento da pressão local, com pontos passíveis de compressão. Quaisquer outros achados de exame neurológico devem ser encarados como representantes de uma lesão estrutural.

Figura 2
Campo visual manual realizado na paciente demonstrando constrição de campo visual
Campo visual manual realizado na paciente demonstrando constrição de campo visual

A paciente apresenta papiledema e alteração da visão como déficit neurológico. Esses achados, em conjunto com a característica clínica de piora da cefaleia com decúbito, sugerem uma cefaleia por hipertensão intracraniana. É necessário um exame de imagem (ressonância magnética ou tomografia computadorizada com estudo de vasos venosos) para afastar causas estruturais, como tumores intracranianos, e vasculares, como trombose venosa cerebral.

A ressonância magnética e a angiorressonância magnética venosa de crânio mostraram sela túrcica parcialmente vazia, espessamento da bainha do nervo óptico, achatamento do polo posterior do globo ocular com protrusão da papila e estenose focal do seio transverso. 


Figura 3
Achados sugestivos de hipertensão intracraniana em exames de imagem
Achados sugestivos de hipertensão intracraniana em exames de imagem

A imagem não apresentou lesões expansivas ou trombose venosa cerebral. No entanto, existem alterações sugestivas de hipertensão intracraniana. Essas alterações são decorrentes do aumento da pressão intracraniana, transmitida através do líquor. Veja as alterações na figura 3 e figura 4 [7].

Figura 4
Achados oculares sugestivos de hipertensão intracraniana em exames de imagem
Achados oculares sugestivos de hipertensão intracraniana em exames de imagem

A suspeita de hipertensão intracraniana é uma contraindicação da punção lombar sem exame de imagem. Nesse contexto, a tomografia ou ressonância auxiliam a descartar que o quadro seja causado por lesões expansivas. A tabela 3 reúne as contraindicações à punção lombar. Após o exame de imagem, a punção lombar com análise bioquímica, citológica e microbiológica do líquor deve ser feita.

Tabela 3
Contraindicações ao exame de punção lombar
Contraindicações ao exame de punção lombar

Ao exame do líquor, revelou-se uma pressão de abertura de 52 cmH₂O, com análise bioquímica, citológica e microbiológica normal.


Quadro clínico sugestivo, papiledema, ausência de sinais focais no exame neurológico, aumento da pressão intracraniana confirmado pela punção lombar e exame de imagem com parênquima encefálico normal e sem trombose venosa confirmam o diagnóstico de hipertensão intracraniana idiopática (veja fluxograma 1).

Fluxograma 1
Investigação de papiledema
Investigação de papiledema

Apesar disso, há outras causas específicas de hipertensão intracraniana com imagem normal que fazem diagnóstico diferencial com hipertensão intracraniana idiopática e devem ser pesquisadas ativamente (tabela 4). 

Tabela 4
Outras causas sistêmicas de hipertensão intracraniana
Outras causas sistêmicas de hipertensão intracraniana

Veja o desfecho do caso

A paciente não apresentava suspeita de causas secundárias de hipertensão intracraniana com imagem normal, determinando o diagnóstico de hipertensão intracraniana idiopática. Iniciado tratamento com acetazolamida 2 g/d e topiramato 200 mg/d com bom controle da cefaleia, além de encaminhamento para início de tratamento clínico da obesidade.

Durante o seguimento oftalmológico, houve progressão da perda visual, apesar do tratamento. A paciente foi submetida à derivação ventriculoperitoneal com estabilidade da perda visual e melhor controle da pressão intracraniana. 


A hipertensão intracraniana idiopática é caracterizada pela presença de hipertensão intracraniana sem outra causa identificada. Tem patogenia ainda não completamente conhecida, predominando em mulheres e com associação direta com a obesidade. 

Além da cefaleia, outros sintomas podem ocorrer e são decorrentes da hipertensão intracraniana. Aqueles que estão presentes em mais de 50% dos pacientes são: diplopia por paralisia do nervo abducente, tinido pulsátil, perdas visuais transitórias com duração de segundos e dor lombar [8].

Os critérios diagnósticos para hipertensão intracraniana idiopática requerem (fluxograma 2):

Fluxograma 2
Critérios diagnósticos hipertensão intracraniana idiopática (HII)
Critérios diagnósticos hipertensão intracraniana idiopática (HII)

A - Presença de papiledema
B - Exame neurológico normal (exceto paralisia de nervo abducente)
C - Imagem sem alteração de parênquima e exclusão de trombose venosa central pelo estudo venoso
D - Líquor com constituintes normais (bioquímica e microbiológico)
E - Líquor com pressão de abertura ≥ 25 cmH₂O.

Em pacientes com suspeita clínica de hipertensão intracraniana idiopática que preencham todos os critérios, mas sem papiledema, deve-se buscar achados de imagem que sugiram o aumento da pressão intracraniana (figura 3 e figura 4). Se o paciente apresentar ao menos três dos quatro achados radiológicos característicos, além da ausência de outras causas de hipertensão intracraniana sem lesão cerebral, é possível caracterizar o diagnóstico de hipertensão intracraniana idiopática.

O tratamento é dividido em três pilares:

  • Modificação de doença com perda de peso: obesidade é o principal fator de risco modificável. Todos os pacientes com hipertensão intracraniana idiopática e IMC ≥ 30 kg/m² devem ser aconselhados a iniciar tratamento para perda de peso. A perda de peso está diretamente relacionada à melhora clínica e da pressão intracraniana. Um estudo recente encontrou que uma perda de peso de 24% foi associada à remissão de doença e normalização da pressão intracraniana em pacientes com IMC ≥ 35 kg/m² submetidos à cirurgia bariátrica [9].
  • Proteger a visão: o tratamento clínico de escolha é a acetazolamida, com melhora em desfechos de campo visual e qualidade de vida relacionada à visão [10]. A dose inicial é de 250 a 500 mg, duas vezes ao dia, com progressão conforme tolerância até 4 g/d. Efeitos adversos gastrointestinais e de parestesias são comuns e podem ser minimizados com a prescrição de bicarbonato de sódio [11]. Em doses mais elevadas, é recomendado o acompanhamento de bicarbonato com gasometria venosa. Os pacientes com hipertensão intracraniana idiopática devem ter acompanhamento periódico com oftalmologista para realização de campo visual formal para quantificação da perda visual [12].
  • Controle da cefaleia: os pacientes podem utilizar analgésicos simples e anti-inflamatórios não esteroidais em caso de cefaleia, mas devem ser alertados do risco de desenvolver cefaleia por uso excessivo de analgésicos. A maioria dos pacientes se beneficia de tratamento profilático para cefaleia. As opções de tratamento são semelhantes ao tratamento profilático da enxaqueca, visto que a grande parte dos pacientes possui características clínicas de enxaqueca. A droga de escolha é o topiramato, por também possuir efeitos em diminuição de produção liquórica e auxílio em perda de peso. Fármacos profiláticos que promovem o ganho de peso devem ser evitados, como antidepressivos tricíclicos.

Prejuízo acentuado da visão ao diagnóstico ou piora progressiva mesmo com tratamento clínico otimizado, mantendo pressão intracraniana elevada, configuram indicações de intervenção cirúrgica. O principal objetivo das intervenções é proteger a visão. A derivação ventriculoperitoneal (DVP) é a opção mais utilizada, por ser mais estudada e de técnica mais conhecida pelos neurocirurgiões [13]. Outra modalidade possível é a fenestração da bainha do nervo óptico, que exige habilidade específica e traz risco de lesão do nervo óptico. Técnicas endovasculares como stent de seio venoso são menos estudadas e não são de primeira escolha.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • As cefaleias secundárias podem apresentar características clínicas de quaisquer cefaleias primárias. A suspeita de etiologia secundária deve se basear na presença de sinais de alarme.
  • O exame físico da cefaleia é limitado, mas deve conter obrigatoriamente a realização do exame do fundo de olho para busca de papiledema.
  • A síndrome de hipertensão intracraniana é um diagnóstico clínico que deve ser investigado para outras causas secundárias obrigatoriamente com um exame de imagem.
  • A ausência de outras causas identificadas para hipertensão intracraniana e a documentação de uma pressão de abertura elevada na punção lombar é suficiente para o diagnóstico de HII.
  • A HII é uma doença que ocorre predominantemente em mulheres e tem íntima associação com a obesidade.
  • O tratamento da HII é baseado em 3 pilares: Modificação de doença com perda de peso, proteger a visão e controle da cefaleia.

Aproveite e leia:

7 de Outubro de 2024

Profilaxia Farmacológica de Enxaqueca

A enxaqueca é a cefaleia mais frequente nos atendimentos de emergência e uma das causas mais comuns de incapacidade no mundo (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30353868/). Um novo alvo para profilaxia da enxaqueca foi avaliado em um estudo no New England Journal of Medicine em setembro de 2024. Esse tópico revisa as opções terapêuticas e perspectivas futuras sobre o tema.

13 de Novembro de 2023

Tratamento Agudo de Enxaqueca

O tratamento agudo da enxaqueca envolve analgésicos e antieméticos, mas pode incluir também a dexametasona como prevenção à recorrência precoce de cefaleia. A dose ideal dexametasona nesse contexto é desconhecida. Buscando responder essa pergunta, foi publicado na Neurology em outubro de 2023 um estudo que procurou estabelecer se uma dose menor do que a habitual de dexametasona seria benéfica aos pacientes. Este tópico revisa o tratamento agudo de enxaqueca e traz os resultados do estudo.

31 de Outubro de 2024

Caso Clínico #25

Mulher de 88 anos com artralgia e rigidez matinal há três meses.

15 de Junho de 2023

Caso Clínico #9

Homem de 25 anos com náuseas, vômitos e soluços intratáveis há uma semana.

3 de Julho de 2023

Intoxicação por Antidepressivos e Síndrome Serotoninérgica

Um medo nos pacientes que ingerem altas doses de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) é a ocorrência de síndrome serotoninérgica. Um estudo publicado em novembro de 2022 da revista Clinical Toxicology avaliou o desenvolvimento de síndrome serotoninérgica após a ingestão de elevadas doses de ISRS. Este tópico revisa o tema e traz os resultados do estudo.

Caso Clínico #27