Nova Diretriz de Perioperatório da AHA: Risco Cardiovascular

Criado em: 06 de Janeiro de 2025 Autor: Joanne Alves Moreira Revisor: João Mendes Vasconcelos

O American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee publicou uma diretriz de manejo cardiovascular no perioperatório de cirurgias não cardíacas em setembro de 2024 [1]. Essa publicação atualizou a diretriz de 2014 [2]. Este tópico aborda os principais pontos da nova diretriz. 

O Guia já abordou betabloqueadores, iECA/BRA e iSGLT2 no perioperatório em "Manejo Medicamentoso no Perioperatório", AAS no perioperatório em "Ácido Acetilsalicílico (AAS) no Perioperatório", anticoagulação no perioperatório em "Anticoagulação no Perioperatório" e manejo de diabetes no perioperatório em "Diabetes Mellitus e Drogas Antidiabéticas no Perioperatório".

Impacto e objetivo da avaliação

As complicações cardiovasculares perioperatórias são uma importante causa de morbimortalidade em procedimentos não cardíacos. Um estudo retrospectivo dos Estados Unidos com cirurgias não cardíacas encontrou que MACE perioperatório ocorreu em 3,1% dos pacientes internados, com queda para 2,6% entre 2004 e 2013 [3]. No Brasil, duas coortes em pacientes admitidos na UTI após cirurgias não cardíacas de alto risco mostraram redução de mortalidade, complicações cardiovasculares e infecções entre 2008 e 2018 [4].

A avaliação de risco cardiovascular visa estabelecer estratégias de redução de MACE no período perioperatório. Ela depende do momento e risco da cirurgia proposta, conforme descrito na tabela 1.

Tabela 1
Definição de cirurgia segundo o tempo e risco cirúrgico
Definição de cirurgia segundo o tempo e risco cirúrgico

Para dar suporte à tomada de decisão, existem diversas calculadoras de avaliação de risco cardiovascular perioperatório. Alguns exemplos são o Revised Cardiac Risk Index (RCRI), a calculadora do National Surgical Quality Improvement Program (NSQIP) do American College of Surgeons e o AUB-HAS2 (tabela 2). Não há evidência clara de superioridade entre essas ferramentas. A escolha pode variar conforme a experiência local e familiaridade do profissional com cada instrumento.

  • O RCRI, também conhecido como escore de Lee, é composto por apenas seis variáveis, sendo validado e utilizado em diferentes países.
  • A calculadora NSQIP é mais abrangente, contemplando comorbidades como obesidade, DPOC e presença de ascite nos 30 dias que antecedem o procedimento.
  • O AUB-HAS2, de elaboração mais recente, foi validado na população norte-americana e recomendado pela diretriz brasileira.
Tabela 2
Calculadoras de avaliação de risco cardiovascular no perioperatório
Calculadoras de avaliação de risco cardiovascular no perioperatório

Avaliação da capacidade funcional

A diretriz orienta que é razoável uma avaliação estruturada da capacidade funcional para estratificar o risco de eventos cardiovasculares em cirurgias não cardíacas de alto risco (recomendação 2a).

A capacidade funcional é um preditor do risco de eventos cardiovasculares após cirurgias não cardíacas. Uma capacidade funcional inferior a 4 equivalentes metabólicos (METs) foi associada a maiores taxas de MACE e mortalidade cardiovascular em 30 dias e 1 ano [5-8].

A avaliação da capacidade funcional pode ser feita de maneira subjetiva, habitualmente perguntando se o paciente consegue subir dois lances de escada sem interrupção — o que equivale a uma atividade de aproximadamente 4 METs. Outra maneira para avaliar a capacidade funcional em METs é o Duke Activity Status Index (DASI) [9]. O DASI é um questionário autoaplicado que estima a capacidade funcional a partir de diversas atividades (veja tabela 3).

Tabela 3
Duke Activity Status Index (DASI) adaptado para o português
Duke Activity Status Index (DASI) adaptado para o português

Quando comparado com a avaliação subjetiva, alguns estudos encontraram que o DASI melhora a predição de injúria miocárdica, infarto ou morte em 30 dias, com maior risco dessas complicações nos pacientes com escore DASI ≤ 34 pontos [10,11]. O DASI já foi traduzido e adaptado para o português, mas ainda necessita de ampla validação [12]. 

Fluxograma 1
Abordagem passo a passo da avaliação cardíaca perioperatória
Abordagem passo a passo da avaliação cardíaca perioperatória

Pela diretriz, pacientes assintomáticos com boa capacidade funcional (> 4 METs ou DASI > 34) podem prosseguir com cirurgias não cardíacas sem necessidade de avaliação adicional (fluxograma 1).

Avaliação adicional: papel dos biomarcadores

Em pacientes com elevado risco perioperatório e baixa capacidade funcional, os autores sugerem ponderar se avaliações adicionais vão efetivamente mudar a condução do caso. Se a resposta for positiva, o documento orienta dosar o peptídeo natriurético tipo B (BNP) ou o peptídeo natriurético N-terminal pró-tipo B (NT-proBNP) (recomendação 2a) e a troponina (recomendação 2b) antes da cirurgia para complementar a avaliação do risco perioperatório. Se os marcadores estiverem normais, o paciente pode seguir com a cirurgia sem avaliação adicional (fluxograma 1).

Conforme a diretriz, antes de cirurgias não cardíacas de alto risco, é recomendado avaliar o risco perioperatório por meio da dosagem de biomarcadores cardíacos. Em pacientes com doença cardiovascular conhecida, naqueles com 65 anos ou mais, ou com 45 anos ou mais que apresentem sintomas sugestivos de doença cardiovascular, é considerado apropriado medir o peptídeo natriurético tipo B (BNP) ou o peptídeo natriurético N-terminal pró-tipo B (NT-proBNP) (recomendação 2a) e a troponina (recomendação 2b). Essa avaliação precoce auxilia na identificação e manejo de possíveis complicações. 

A dosagem de BNP ou NT-proBNP auxilia na estimativa de complicações perioperatórias. Concentrações pré e pós-operatórias aumentadas de NT-proBNP foram associadas a riscos aumentados de mortalidade pós-operatória ou IAM não fatal em 30 dias, além de predizerem aumento da mortalidade em 1 ano [11-14]. 

Pontos de corte pré-operatórios:

  • Uma revisão sistemática observou que valores de BNP < 92 ng/L e NT-proBNP < 300 ng/L associaram-se a menor incidência de morte ou infarto não fatal em 30 e 180 dias após a cirurgia. Já níveis elevados de BNP ou NT-proBNP pré-operatórios foram fortes preditores de morte ou infarto não fatal em 180 dias [12]. 

Pontos de corte pós-operatórios:

  • Níveis de BNP entre 250 e 400 ng/L e > 400 ng/L apresentaram taxas de complicações cardiovasculares de 15,7% e 29,5%, respectivamente. Para NT-proBNP, valores entre 300 e 900 ng/L tiveram 8,7% de complicações, enquanto níveis > 900 ng/L alcançaram 27% [14].

Em relação a troponina, uma revisão sistemática de 2019 indicou que valores pré-operatórios desse marcador predizem MACE em menos de 30 dias, embora as evidências ainda sejam limitadas e incluam populações heterogêneas [15]. A dosagem pré-operatória de troponina também facilita a interpretação de resultados pós-operatórios, especialmente na distinção entre injúria miocárdica aguda e elevações crônicas de troponina.

Caso esses marcadores se apresentem alterados, a diretriz sugere discussão multidisciplinar para avaliar a possibilidade de um novo exame complementar, como ecocardiograma, teste de estresse não invasivo (recomendação 2b) ou angiografia coronariana por tomografia (recomendação 2b).

Avaliação adicional: papel das provas funcionais

Os testes de estresse (provas funcionais) podem ser considerados em pacientes que serão submetidos a cirurgia não cardíaca de alto risco, apresentem capacidade funcional ruim ou desconhecida (definida como < 4 METs ou DASI ≤ 34) e tenham risco elevado de eventos cardiovasculares perioperatórios, segundo um escore de risco validado (recomendação 2b). Por outro lado, em indivíduos classificados como baixo risco de complicações, com capacidade funcional adequada e sintomas estáveis, ou que se submeterão a procedimentos de baixo risco, não se recomenda a realização de teste de estresse rotineiramente (recomendação 3, “sem benefício”).

A diretriz sugere que o teste de estresse só seja indicado quando houver suspeita prévia de isquemia miocárdica de alto risco ou quando o exame já estaria indicado independentemente do procedimento cirúrgico em questão [16]. No entanto, os autores não especificam quais são os critérios para suspeição clínica de isquemia de alto risco em pacientes assintomáticos.

A diretriz europeia afirma que o teste ergométrico só deve ser considerado uma alternativa para o diagnóstico de doença coronariana obstrutiva na indisponibilidade dos outros testes não invasivos, além de não ter valor diagnóstico em paciente com anomalias do segmento ST pré-existentes [17]. A diretriz brasileira reforça a ausência de evidências robustas para essa conduta [18]. 

Em relação às provas funcionais de imagem, defeitos reversíveis moderados a graves na perfusão miocárdica auxiliaram na previsão de morte e infarto no pós-operatório [19]. Por outro lado, a ausência de defeitos reversíveis apresentou alto valor preditivo negativo para infarto e morte pós-operatória [20]. Na tabela 4 estão resumidas as contraindicações aos testes de esforço.

Tabela 4
Considerações e contraindicações a testes de estresse
Considerações e contraindicações a testes de estresse

Um estudo randomizado com pacientes submetidos a cirurgia vascular arterial não encontrou diferença de mortalidade entre os pacientes submetidos a revascularização e os não submetidos [21]. Similarmente, em pacientes que passaram por artroplastia total de quadril ou joelho com pelo menos um fator de risco no RCRI não foi encontrado diferença de desfechos entre os grupos que realizaram ou não a revascularização pré-operatória [22]. 

Estudos recentes, como ISCHEMIA e COURAGE, corroboram que, em pacientes com doença coronária estável, não houve benefício de uma estratégia invasiva (angioplastia ou revascularização) em comparação à estratégia não invasiva na redução de morte, infarto e outras complicações cardiovasculares [23,24]. 

Cuidados pós-operatórios

A diretriz orienta que é razoável dosar troponina 24 e 48 horas após uma cirurgia não cardíaca de alto risco em pacientes com doença cardiovascular conhecida, sintomas de doença cardiovascular, ou ≥ 65 anos com fatores de risco cardiovasculares (recomendação 2b). O objetivo é identificar lesão miocárdica no pós-operatório.

Estudos que avaliaram a vigilância de troponina após cirurgias não cardíacas detectaram que a elevação de troponina no pós-operatório associa-se a maior mortalidade em 30 dias [25-27]. Em contrapartida, a monitorização de troponina em cirurgias não cardíacas de baixo risco não é recomendada de forma rotineira, considerando a baixa probabilidade de eventos cardiovasculares perioperatórios nesse contexto [28].

A diretriz brasileira recomenda pós-operatório em UTI por 48 horas em pacientes de risco alto (recomendação 1) ou intermediário (recomendação 2b) de complicações conforme a classificação das calculadoras de risco, quando submetidos a cirurgias não cardíacas de risco intermediário ou alto [18].

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