Será que Tem Evidência?

Azul de Metileno no Choque

Criado em: 06 de Janeiro de 2025 Autor: Kaue Malpighi Revisor: João Mendes Vasconcelos

O uso do azul de metileno no choque distributivo tem se tornado mais frequente e vem sendo cada vez mais estudado. Este tópico revisa o mecanismo de ação, os cuidados com a administração e as evidências sobre o uso no choque distributivo.

Mecanismo de ação

O principal mecanismo de ação do azul de metileno no choque está relacionado à via óxido nítrico–GMP cíclico (NO-GMPc). O óxido nítrico atua no tônus vascular, promovendo vasodilatação ao aumentar a conversão de GMP cíclico [1].

Em estados de choque, citocinas inflamatórias podem aumentar a produção de óxido nítrico e a formação de GMPc, resultando em vasodilatação excessiva. O azul de metileno age inibindo a produção de óxido nítrico e diminuindo a conversão de GMPc, induzindo vasoconstrição.

O azul de metileno tem outras aplicações na medicina, sendo as principais:

  • Metemoglobinemia: atua como agente redutor revertendo a metemoglobina em hemoglobina funcional.
  • Mapeamento de linfonodos sentinelas: utilizado em cirurgias de câncer de mama para identificação de linfonodos que drenam a área tumoral.
  • Neurotoxicidade pela ifosfamida: auxilia na prevenção e tratamento.
  • Avaliação da deglutição (com e sem traqueostomia): serve como corante para verificar possíveis episódios de broncoaspiração.

Evidências no choque séptico

Doses elevadas de noradrenalina, comumente utilizadas no choque séptico, estão associadas a efeitos adversos como taquiarritmias, isquemia periférica e isquemia mesentérica. Nesse contexto, o azul de metileno pode ser útil como poupador de catecolaminas.

Os primeiros relatos sobre os possíveis benefícios hemodinâmicos do azul de metileno no choque séptico surgiram em torno dos anos 2000, baseados em estudos retrospectivos e pequenos ensaios randomizados [2-5]. Os achados principais incluíram melhora da pressão arterial média, aumento da resistência vascular sistêmica e redução da necessidade de vasopressores. Contudo, não houve benefício de mortalidade.

A maioria das investigações avaliou o azul de metileno em fases mais tardias do choque, principalmente em casos refratários (veja mais sobre choque séptico refratário em "Vasopressores e Corticoide no Choque Séptico".  Alguns estudos sugerem que o benefício pode ser mais significativo quando o medicamento é administrado precocemente, especialmente nas primeiras 8 horas após o início do quadro — período marcado pelo aumento da produção de óxido nítrico [6].

Um estudo relevante a respeito do tema foi um ensaio clínico randomizado e duplo-cego realizado no México, em 2023 [7]. Foram incluídos 91 pacientes com choque séptico, randomizados para receber azul de metileno ou placebo em até 24 horas.

  • Definiu-se como ponto de corte de noradrenalina 0,25 mcg/kg/min para a introdução de um segundo vasopressor (vasopressina), além de hidrocortisona 200 mg/dia.
  • No grupo intervenção, administrou-se 100 mg de azul de metileno, infundidos por via endovenosa durante 6 horas, uma vez ao dia, por três dias.
  • A média para início do azul de metileno foi de cerca de 8 horas, e 80% dos pacientes já estavam recebendo um segundo vasopressor.

O grupo que recebeu azul de metileno obteve um menor tempo para descontinuação dos vasopressores e menor tempo de internação em UTI. Não houve diferença de mortalidade. Outras características do estudo podem ser encontradas na tabela 1.

Tabela 1
Características selecionadas do estudo
Características selecionadas do estudo

As diretrizes de sepse atuais ainda não mencionam o azul de metileno em seus posicionamentos. Frente às evidências disponíveis, é possível considerar o uso precoce do azul de metileno nas primeiras horas do choque séptico em pacientes que demandam titulação rápida de vasopressores, como noradrenalina e vasopressina. Entretanto, estudos mais robustos são necessários para confirmar estes achados, dadas as limitações dos estudos existentes, como tamanho de amostra reduzido, heterogeneidade no momento de introdução e variações na dose administrada (veja as posologias na tabela 2).

Tabela 2
Doses de azul de metileno
Doses de azul de metileno

Evidências em outros choques distributivos

Choque distributivo após cirurgias cardiovasculares

Também chamada de síndrome vasoplégica após cirurgia cardíaca. Ocorre em pacientes que passam por circulação extracorpórea (CEC) e é caracterizada por hipotensão persistente (pressão arterial média abaixo de 65 mmHg) que inicia em até 24 horas após a cirurgia, com baixa resistência vascular sistêmica e volume intravascular adequado. O débito cardíaco é frequentemente elevado, a depender da função cardíaca.

Esta síndrome envolve resposta inflamatória sistêmica desencadeada pela CEC, com aumento da produção de óxido nítrico e ativação da via do GMP cíclico [8]. Alguns fatores de risco descritos incluem insuficiência cardíaca pré-existente, uso de inibidores da ECA antes da cirurgia e tempo de CEC prolongado [9].

A maioria dos pacientes com este quadro responde à noradrenalina ou vasopressina. Em casos de resposta inadequada, o azul de metileno é indicado de forma precoce. Algumas recomendações orientam a administrar em até 15 minutos do diagnóstico de vasoplegia refratária [10-12].

Embora o azul de metileno possa reduzir a mortalidade em casos refratários, o uso rotineiro não é recomendado devido à qualidade limitada da evidência disponível e o risco de eventos adversos.

Choque anafilático

O uso do azul de metileno no choque anafilático é descrito em casos refratários, sobretudo em quadros de anafilaxia perioperatória [13,14]. A administração deve ser restrita a situações que ameaçam a vida, nas quais outras medidas como adrenalina e reposição volêmica falharam ou não foram suficientes. O risco de efeitos adversos relacionados ao azul de metileno é relativamente baixo, mas ainda deve ser pesado diante da falta de evidências robustas.

Cuidados e efeitos adversos

O azul de metileno deve ser administrado preferencialmente por um acesso venoso central. No caso de uso em cateter periférico, é recomendável escolher cateteres calibrosos e de localização mais proximal, com vigilância frequente para prevenir extravasamento, que pode resultar em lesão tecidual ou necrose local.

Há risco de síndrome serotoninérgica com o azul de metileno [15,16]. É prudente avaliar cuidadosamente o uso do medicamento se outras drogas que podem desencadear a síndrome estiverem presentes. Os principais medicamentos que podem influenciar nesse evento no ambiente intra-hospitalar são: opioides (principalmente fentanil), linezolida, inibidores da recaptação de serotonina e inibidores da monoaminoxidase.

O uso em pacientes com deficiência de G6PD e hipertensão pulmonar deve ser feito com cautela. Em casos de deficiência de G6PD, o azul de metileno pode desencadear hemólise e metemoglobinemia paradoxal. Por apresentar potencial de vasoconstrição pulmonar, em teoria, pode descompensar pacientes com hipertensão pulmonar [17]. O azul de metileno tem potencial de interação com diversas drogas, sendo prudente checar interações durante o uso. Essa orientação se aplica especialmente em pacientes críticos, que costumam receber múltiplos medicamentos. 

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