Profilaxia Primária de Sangramento por Varizes Esofágicas
Hemorragia digestiva alta por varizes esofágicas é uma complicação frequente e grave em pacientes com cirrose. Alguns pacientes se beneficiam de profilaxia primária, farmacológica ou por intervenção endoscópica. Um novo ensaio clínico randomizado, CAVALRY [1], testou a realização das duas intervenções em conjunto para profilaxia primária desta complicação em pacientes com cirrose Child B ou C.
Risco de sangramento e seleção dos pacientes para profilaxia
O sangramento por varizes esofágicas é uma complicação grave no paciente com cirrose. Após um episódio de sangramento por varizes esofágicas, a mortalidade em 6 semanas é em torno de 17%. Em um período médio de 1 ano após um sangramento, 29% dos pacientes apresentam novo episódio [2].
Tradicionalmente, a profilaxia de sangramento se baseava na visualização direta de varizes na endoscopia digestiva alta (EDA). A prevenção pode ser feita tanto com betabloqueadores não seletivos como por ligadura através da EDA. Contudo, evidências recentes sugerem que os betabloqueadores podem ter benefícios mais amplos e em estágios mais precoces, antes mesmo da formação de varizes de alto risco. Isso modificou a seleção de pacientes para profilaxia.
A principal evidência sobre esse papel dos betabloqueadores não seletivos é o estudo PREDESCI [3]. Este foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, em pacientes com cirrose compensada e hipertensão portal clinicamente significativa (tabela 1) medida por gradiente de pressão portal e sem varizes de alto risco. Os pacientes foram randomizados para receber betabloqueadores não seletivos (propranolol ou carvedilol) ou placebo. A maioria dos pacientes era Child-Pugh A, 56% dos pacientes do grupo intervenção tinham varizes pequenas e 44% não possuíam varizes. O desfecho primário era um composto de morte e descompensação com sangramento varicoso, ascite ou encefalopatia. O desfecho primário foi menor no grupo que recebeu a intervenção (16% contra 27%; HR 0,51, IC 95% 0,26-0,97), principalmente devido à redução da incidência de ascite. Uma revisão sistemática com meta-análise posterior também sugeriu benefício dos betabloqueadores em pacientes com hipertensão portal clinicamente significativa [4].
Isso motivou mudanças nas diretrizes do Baveno VII de 2022 e da American Association for the Study of Liver Disease (AASLD) de 2024. Essas associações agora recomendam considerar betabloqueadores quando há hipertensão portal clinicamente significativa (definição na tabela 1), que pode ser determinada de maneira não invasiva por elastografia [5,6].
Com disponibilidade de elastografia
A hipertensão portal clinicamente significativa pode ser inferida de maneira não invasiva através da elastografia. O BAVENO e a AASLD recomendam a elastografia para graduar a doença hepática. Pela elastografia, as seguintes situações são consideradas de alta probabilidade de hipertensão portal clinicamente significativa [5,6]:
- Elastografia com valores > 25 kPa em pacientes não obesos.
- Elastografia com valores de 20 a 25 kPa e plaquetas < 150.000/mm³.
- Elastografia com valores de 15 a 20 kPa e plaquetas < 110.000 /mm³.
Nessas situações acima, essas duas diretrizes indicam a terapia com betabloqueadores não seletivos para prevenir a progressão da hipertensão portal e suas descompensações. No caso de rigidez hepática < 15 kPa associado a plaquetas > 150.000/mm³, a probabilidade de hipertensão portal significativa é baixa e não há indicação da profilaxia primária. Pacientes com cirrose compensada e valores da elastografia acima de 10 kPa devem realizar o exame anualmente. A tabela 2 descreve o uso da elastografia e das plaquetas para estratificar a doença hepática e o risco de desenvolver varizes esofágicas [6].
Sem disponibilidade de elastografia
Por essa nova recomendação, a EDA para rastreio de varizes tem seu lugar quando a elastografia hepática não está disponível e o paciente não estiver usando betabloqueadores não seletivos por outro motivo [5]. A EDA deve ser realizada em pacientes com cirrose compensada e plaquetas < 150.000/mm³ ou em pacientes com cirrose descompensada (tabela 1). O rastreio com EDA pode ser feito também quando existe disponibilidade de elastografia, porém o paciente tem contraindicação ou não tolera betabloqueadores.
Não possuindo varizes na EDA, um novo rastreio é recomendado a cada 2 anos caso os fatores de progressão da doença hepática não estejam controlados ou a cada 3 anos se houver controle (como abstinência alcoólica e cura da hepatite C). Se existirem varizes de baixo risco (definição de varizes de alto risco no subtópico “Ligadura elástica e terapia combinada”), a EDA pode ser repetida anualmente se os fatores de progressão não forem controlados e a cada dois anos se estes forem controlados.
Betabloqueadores: método preferencial
A profilaxia primária com betabloqueador é preferida em todos os pacientes [5,6]. A tabela 3 resume as doses, alvos terapêuticos e contraindicações para esta finalidade. Para mais detalhes sobre o uso de betabloqueadores em pacientes com cirrose, veja o tópico "Betabloqueador no Paciente com Cirrose".
Os betabloqueadores não seletivos e ligadura elástica reduzem mortalidade quando comparadas ao placebo [7]. Uma revisão da Cochrane comparou ambas as intervenções e encontrou que o risco de sangramento e mortalidade geral foram semelhantes, porém com maiores taxas de eventos adversos no grupo que realizou terapia endoscópica [8]. O Baveno VII e a AASLD reservam a terapia endoscópica como profilaxia primária para pacientes que não toleram ou com contraindicação aos betabloqueadores não seletivos [5,6].
Visualização de shunts porto-sistêmicos em exames de imagem, presença de varizes e cirrose descompensada também são indicativos de hipertensão portal clinicamente significativa, com a mesma recomendação de betabloqueadores. O fluxograma 1 resume a estratificação de risco e a decisão sobre profilaxia primária de sangramento nestes pacientes.
O carvedilol é o betabloqueador de escolha para prevenção primária de sangramento por varizes esofágicas [5,6]. Por agir no bloqueio do receptor alfa-1, o carvedilol ocasiona maior vasodilatação portal intra-hepática, gerando redução ainda maior da pressão portal [9]. Um trabalho observacional retrospectivo de 2024 encontrou menor incidência de descompensação no grupo carvedilol em relação ao grupo propranolol [10].
Ligadura elástica e terapia combinada
Recomendada como profilaxia primária quando os betabloqueadores estiverem contraindicados. Deve-se realizar a ligadura elástica nas varizes consideradas de alto risco, que são as seguintes:
- Varizes de tamanho moderado/grande (acima de 5 mm)
- Varizes com sinal da cor vermelha (red wale marks)
- Varizes em paciente com estadiamento Child-Pugh C
Pacientes que realizaram a ligadura devem repetir a EDA em 2 a 4 semanas até a erradicação das varizes. Após erradicadas, o exame deve ser repetido a cada 6 a 12 meses [5].
Varizes de pequeno tamanho costumam ser tecnicamente difíceis de serem ligadas [5]. Caso o paciente possua varizes de baixo risco na EDA, sem indicação de ligadura, este exame deve ser repetido anualmente caso a doença hepática de base não esteja controlada ou a cada dois anos em caso de controle da etiologia da cirrose.
Até o momento, a terapia combinada com betabloqueador associado à ligadura não é recomendada pelas diretrizes na profilaxia primária. As evidências sugerem que a combinação das estratégias para profilaxia primária pode reduzir incidência de sangramentos [8], porém sem redução de mortalidade geral e com maior taxa de complicações quando comparado à monoterapia [7,8]. Existe dúvida se isso se aplica a pacientes com cirrose avançada (Child Pugh B ou C) e varizes de alto risco, mas que ainda não sangraram.
Para pacientes que já apresentaram sangramento varicoso (profilaxia secundária), a terapia combinada está indicada para redução de novos episódios de sangramento. Houve benefício de mortalidade em pacientes Child-Pugh B e C [5,6,11].
O estudo CAVALRY
O ensaio clínico randomizado CAVALRY [1] foi desenhado para comparar a terapia combinada (carvedilol associado a ligadura elástica) em relação à monoterapia para profilaxia primária de sangramento em pacientes com cirrose avançada. Foram selecionados pacientes com escore de Child-Pugh entre 7 e 13 (B ou C) e com varizes esofágicas com alto risco de sangramento, mas sem história de sangramento prévio.
Foram randomizados 330 pacientes para três grupos:
- Grupo 1: Carvedilol monoterapia
- Grupo 2: Ligadura elástica monoterapia
- Grupo 3: Carvedilol e ligadura elástica combinados
O desfecho primário foi incidência de sangramento por varizes esofágicas ao final de 12 meses. Este desfecho ocorreu em 23,8% do total de pacientes. Os resultados entre os grupos foram:
- Grupo 1: 33,6% dos pacientes.
- Grupo 2: 25,5% dos pacientes.
- Grupo 3: 11,8% dos pacientes.
A terapia combinada reduziu significativamente a incidência de sangramento varicoso comparada ao grupo que recebeu apenas ligadura elástica (HR 0,37, IC 95% 0,19-0,71) e ao grupo que recebeu apenas carvedilol (HR 0,31, IC95% 0,16-0,57).
Nos desfechos secundários, encontrou-se redução de mortalidade geral e associada a sangramento no grupo de terapia combinada, comparado ao de carvedilol em monoterapia. A mortalidade entre os grupos 2 e 3 foi semelhante. Não houve diferença na incidência de eventos adversos entre os grupos.
Uma possível explicação para os achados é que o sangramento pós-ligadura (principalmente pela ulceração de mucosa) ocorre normalmente uma semana após o procedimento [12]. Esse é um tempo necessário para início de ação do carvedilol, permitindo redução do gradiente de pressão portal antes de ocorrer complicações da ligadura. Assim, o benefício de ambas as intervenções poderia ocorrer associado à redução do risco de sangramento pelo procedimento.
Uma limitação do estudo foi o seu caráter aberto, com dificuldade de cegamento devido ao procedimento endoscópico. A dose média de carvedilol utilizada foi menor que a comumente recomendada de 12,5 mg/dia [13]. Mais estudos são necessários para delimitar qual perfil de pacientes com cirrose pode se beneficiar de terapia combinada para profilaxia primária de sangramento de varizes esofágicas. O CAVALRY sugere algum benefício em pacientes com doença hepática avançada.
Aproveite e leia:
Betabloqueador no Paciente com Cirrose
Betabloqueadores fazem parte da terapia do paciente com cirrose. A percepção de que existe uma janela terapêutica - um momento certo de iniciar e de retirar esse medicamento - tem crescido. Esse tema foi revisado no Journal of Hepatology em dezembro de 2022. Trouxemos esse conceito e revisamos os betabloqueadores no paciente com cirrose.
Hipertensão Resistente e Baxdrostat
Hipertensão resistente afeta de 10% a 20% dos pacientes com hipertensão, levando a piores desfechos cardiovasculares. Em fevereiro de 2023, o New England Journal of Medicine publicou o estudo BrigHTN, testando a nova droga baxdrostat nessa população. Neste tópico revisamos hipertensão resistente e avaliamos o que o estudo adicionou.
Asma e Uso de Beta Agonistas de Curta Ação
É comum os pacientes recorrerem a beta agonistas de curta ação (SABA) em uma crise de asma. Porém, confiar apenas nos SABA não é uma boa opção. Um estudo apresentado na conferência da American Thoracic Society e publicado no New England Journal of Medicine acrescentou evidências nesse tema. Vamos ver os achados e rever o tratamento inicial de asma.
Diretriz de Insuficiência Hepática Aguda e Crônica Agudizada
A Society of Critical Care Medicine (Sociedade de Medicina Intensiva, em tradução livre) publicou uma nova diretriz de cuidados do paciente com insuficiência hepática crônica descompensada e insuficiência hepática aguda. Este tópico revisa as principais recomendações da diretriz.
Diretriz de Doença Coronariana Crônica da AHA 2023
A doença coronariana crônica (DCC) tem um amplo espectro de manifestações. Em agosto de 2023 a American Heart Association (AHA) publicou uma diretriz com orientações sobre o manejo da DCC. Esta revisão traz as principais recomendações do documento.