Rastreamento de Neoplasias
O rastreamento (ou rastreio) é uma estratégia para a detecção de doenças assintomáticas e/ou fatores de risco. Pode ser aplicada a diversos tipos de câncer, visando reduzir a mortalidade e melhorar outros desfechos clínicos. Esta revisão aborda as evidências dos principais rastreamentos oncológicos.
O Guia abordou o rastreamento de câncer de mama ("Rastreio de Câncer de Mama: Novo Posicionamento da USPSTF") e próstata ("Rastreio de Câncer de Próstata") em dois tópicos específicos. Esses dois temas não serão tratados nessa revisão.
Rastreamento de câncer: conceito e objetivos
Os cânceres mais frequentes variam conforme o sexo biológico. Excluindo os cânceres de pele não melanoma, os mais comuns são os seguintes (em ordem de frequência) [1]:
- Homens: próstata, pulmão, colorretal, estômago e cavidade oral.
- Mulheres: mama, colorretal, colo do útero, pulmão e tireoide.
O rastreamento caracteriza-se pela aplicação de testes em indivíduos assintomáticos, em população-alvo definida, visando reduzir a morbidade e a mortalidade atribuídas a uma doença específica. Definir uma população-alvo para o rastreamento de câncer envolve equilibrar os benefícios potenciais, como a redução da morbimortalidade, com os riscos, incluindo o sobrediagnóstico e os efeitos adversos associados ao rastreamento. O rastreamento é uma estratégia de detecção precoce. Entre as estratégias de detecção precoce, o rastreamento é aplicado em indivíduos assintomáticos. Já o diagnóstico precoce visa identificar o câncer o mais rapidamente possível em pessoas sintomáticas. [2].
O rastreamento pode ser classificado como oportunístico ou organizado (conhecido também como populacional). O oportunístico é realizado a partir da demanda do paciente ou durante uma avaliação clínica rotineira, considerando fatores individuais, sem um planejamento prévio. No rastreamento organizado há coordenação das ações, com programas estruturados e metas definidas para uma população específica [3].
Diagnosticar a doença mais cedo em sua história natural, isoladamente, não justifica a implementação de uma estratégia de rastreamento, exceto se estiver relacionada a uma redução significativa de desfechos clínicos relevantes. Os estudos que avaliam estratégias de rastreamento são suscetíveis a vieses específicos. Dois vieses importantes nesse contexto são o de tempo de duração e o de antecipação/tempo ganho. Eles dificultam a interpretação dos resultados e tendem a superestimar os benefícios da estratégia. Conhecer esses vieses permite analisar de maneira mais precisa a intervenção.

- Viés de tempo de duração (length time bias, figura 1): neoplasias de crescimento lento permanecem mais tempo em fase assintomática (período pré-clínico), aumentando a probabilidade de serem encontradas pelos exames nessa fase [4]. Os tumores de crescimento rápido, que evoluem para sintomas mais precocemente, têm menor chance de serem captados pelo rastreamento no mesmo estágio. Dessa maneira, a proporção de cânceres de evolução mais lenta (com melhor prognóstico) pode ser super-representada durante o rastreamento, levando à impressão de que a sobrevida do grupo rastreado é maior. O ganho de sobrevida pode estar refletindo a natureza mais lenta da doença em parte dos casos detectados, e não necessariamente um benefício causal do rastreamento.
- Viés de tempo ganho ou de antecipação (lead-time bias, figura 2): pode ocorrer quando o diagnóstico de uma doença é feito antecipadamente, dando a falsa impressão de aumento da sobrevida, mesmo que o curso da doença não seja alterado. Em outras palavras, consiste em confundir a precocidade do diagnóstico com um ganho real de sobrevida. O tempo de convivência com o diagnóstico da doença aumenta, mas sem adiar o óbito [4].

Estudos evidenciando aumento da taxa de sobrevida ou a redução do estadiamento não devem ser usados unicamente para avaliar a efetividade de um programa de rastreamento, por serem esperados em qualquer intervenção desse tipo. A mortalidade pelo câncer em questão é um parâmetro mais indicado do que a sobrevida, evitando o viés de tempo ganho. Os ensaios clínicos randomizados são o desenho de estudo mais confiável, pois a distribuição aleatória dos participantes favorece uma quantidade similar de tumores de desenvolvimento lento e rápido entre os grupos, evitando o viés de tempo de duração.
Os benefícios de um programa de rastreamento podem ser medidos por alguns dos indicadores abaixo [5]:
- Risco relativo e redução do risco relativo.
- Ganho na expectativa de vida.
- Custo por caso detectado.
- Custo por vida salva.
- Ganho em qualidade, ajustado aos anos de vida (QALYs).
- Número necessário para rastrear (NNR)
O NNR é calculado pelo inverso da redução do risco absoluto. Representa o número de pessoas que devem participar de um programa de rastreamento durante um determinado tempo (cinco, dez anos) para se evitar uma morte ou desfecho substituto pela doença em questão [4]. Essa é uma métrica mais fácil de ser entendida por profissionais e pacientes.
Um rastreamento populacional requer infraestrutura, capacitação de profissionais, disponibilidade de exames e investigação de casos positivos. Análises de custo-efetividade são importantes para decidir implementar esse tipo de estratégia, especialmente em sistemas de saúde públicos.
Rastreamento de câncer de cólon e reto
Dados retrospectivos mostram aumento na incidência de câncer colorretal em todas as faixas etárias, particularmente entre 50 e 69 anos, em todas as macrorregiões do Brasil [6]. Nos Estados Unidos, a incidência anual de câncer colorretal duplicou em adultos com menos de 55 anos [7].
População-alvo
Em adultos sem história pessoal ou familiar de câncer colorretal, o Ministério da Saúde do Brasil/Instituto Nacional de Câncer (INCA) recomenda o rastreamento entre 50 e 75 anos [5]. Tanto exames de análise de fezes como endoscópicos podem ser utilizados. Entretanto, o Caderno de Atenção Primária sobre rastreamento menciona que, na ausência de evidências de custo-efetividade e sustentabilidade, devem ser priorizadas ações de diagnóstico precoce e abordagem personalizada para situações de alto risco [5]. A página do INCA para profissionais de saúde destaca que o Brasil apresenta diferentes realidades e ainda são necessários estudos para subsidiar a viabilidade do rastreamento nos diversos contextos [8].
A American Gastroenterology Association (AGA) recomenda iniciar o rastreamento aos 45 anos em pessoas com risco habitual para esse câncer [9]. Já a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) destaca níveis de evidência diferentes conforme a faixa etária [10]:
- 50 a 75 anos — Recomendação A.
- 45 a 49 anos — Recomendação B.
A evidência de benefício para a população com menos de 50 anos é limitada. Estima-se que reduzir a idade de início do rastreamento de 50 para 45 anos resulta em 2 a 3 casos adicionais de câncer colorretal evitados, 1 morte adicional por câncer colorretal evitada e 22 a 27 anos de vida adicionais ganhos por 1000 adultos (8 a 10 dias de vida adicionais por pessoa rastreada) [11]. Por outro lado, o rastreamento a partir de 45 anos resulta em mais complicações (perfuração e sangramento) e mais colonoscopias [11, 12].
AGA e USPSTF pontuam que tanto exames endoscópicos como exames de análise de fezes de alta sensibilidade podem ser utilizados, considerando disponibilidade e preferências do paciente.
Métodos de rastreamento
Os métodos de rastreamento podem ser divididos em dois grupos: exames de visualização endoscópica ou radiológica e testes de análise das fezes. Os exames de visualização são a colonoscopia, a sigmoidoscopia flexível e a colonografia por tomografia computadorizada (TC). O segundo grupo inclui o teste imunoquímico fecal (FIT), o FIT-DNA e o sangue oculto nas fezes baseado em guáiaco (g-FOBT, sigla em inglês). A USPSTF sugere também a associação de sigmoidoscopia flexível com FIT (co-teste) [13]. Todos os métodos recomendados estão na tabela 1. Existem estudos com testes com amostras de sangue, porém ainda sem recomendação formal pelas sociedades [14].

A colonoscopia é o exame padrão-ouro para a detecção de câncer colorretal. Quando há alteração nos outros exames, a colonoscopia deve ser realizada.
Evidências
Todas as estratégias (quando comparadas à ausência de rastreamento) produzem aumentos de anos de vida e reduções no número de casos e mortes por câncer colorretal [11, 15]. A figura 3 dispõe os métodos com estimativas de sensibilidade, especificidade e redução de mortes relacionadas a esta neoplasia.

Estima-se que o rastreamento com FIT ou FIT-DNA anual proporcione um ganho de mais anos de vida do que o g-FOBT anual ou o FIT-DNA a cada 3 anos [11, 12]. A colonoscopia ou a colonografia por TC têm uma estimativa de anos de vida ganhos superior à da sigmoidoscopia flexível considerando as periodicidades recomendadas [11, 12]
As evidências de benefício com a colonoscopia são de um único ensaio clínico randomizado pragmático de 2022 e de estudos observacionais e de modelagem [16 - 19]. A análise por protocolo do ensaio clínico NordICC encontrou redução da mortalidade por câncer colorretal em 10 anos com a colonoscopia. Esse estudo foi discutido em "Colonoscopia no Rastreio de Câncer de Cólon".
Situações especiais
Em pacientes com alto risco para câncer colorretal, a AGA recomenda iniciar o rastreamento 10 anos antes da idade de diagnóstico do familiar mais novo afetado ou aos 40 anos, o que ocorrer primeiro [9].
Após os 76 anos, o Ministério da Saúde recomenda que o rastreamento não seja realizado. Nessa faixa etária, USPSTF e AGA pontuam que o benefício populacional é pequeno e orientam selecionar com cuidado o paciente, considerando as condições de saúde atuais, história prévia de rastreamento e preferências (recomendação C) [9, 10, 20]. Após os 86 anos, a USPSTF recomenda não realizar o rastreamento. A presença de comorbidades (doença cardiovascular, diabetes, doença pulmonar obstrutiva crônica, hepatopatia, HIV, doença renal crônica, doença reumatológica) reduz qualquer benefício de rastreamento (NNR 1118 a 1685) [20].
Rastreamento de câncer de pulmão
Critérios de seleção
A USPSTF, as Sociedades Brasileiras de Cirurgia Torácica e Pneumologia e Tisiologia e o Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem recomendam o rastreamento de câncer de pulmão em pessoas entre os 50 e os 80 anos com carga tabágica de pelo menos 20 anos-maços que atualmente fumam ou pararam de fumar nos últimos 15 anos (recomendação B) [21, 22].
A página do INCA não faz uma recomendação clara sobre o rastreamento, apesar de mencionar os estudos avaliando a estratégia em grupos de risco. A entidade coloca como opção o rastreamento oportunístico após decisão compartilhada com o paciente [23]. Até o momento, não há uma recomendação formal do Ministério da Saúde orientando o rastreamento populacional.
Métodos de rastreamento
A USPSTF recomenda rastreamento anual com tomografia computadorizada (TC) de tórax de baixa dosagem de radiação. A dose de radiação de uma TC de baixa dosagem é de aproximadamente 1 mSv. Comparando com outros métodos, a dose média efetiva de radiação por radiografia póstero-anterior de tórax é de 0,04 a 0,25 mSv e da TC do tórax é de 3,2 mSv, com variação de até 27 mSv a depender do protocolo [24, 25, 26].
O tamanho e o crescimento do nódulo são as variáveis utilizadas na avaliação da probabilidade de malignidade, porém existem variações nos algoritmos de rastreamento. A avaliação do volume do nódulo possibilita maior reprodutibilidade das medidas e aumento na sensibilidade na avaliação de crescimento [27]. A avaliação do tamanho linear está associada à variabilidade significativa intra e interobservador para nódulos pulmonares pequenos não calcificados [28].
Em relação a como proceder após um achado relevante, o modelo do American College of Radiology (ACR) Lung-RADS 2022 classifica o nódulo e recomenda condutas durante o rastreamento (veja neste link).
O rastreamento deve ser descontinuado em pacientes com mais de 80 anos ou que estejam a mais de 15 anos sem fumar ou tenham comorbidade/estado funcional que impeça o tratamento com cirurgia pulmonar curativa [21, 22].
Evidências de eficácia
Dois importantes estudos sobre esse rastreamento são o NLST e o NELSON. O NLST avaliou 53 mil voluntários de alto risco. Houve redução relativa da mortalidade por câncer de pulmão com o rastreamento por TC de baixa dosagem de 20% (IC 95% 6,8-26,7) e redução da mortalidade geral de 6,7%. O NNR com TC de baixa dosagem para evitar uma morte por câncer de pulmão foi de 320 [29]. O estudo NELSON também encontrou redução de mortes por câncer de pulmão (redução de 24%) em um acompanhamento de 10 anos. Uma revisão sistemática incluindo esses dois estudos encontrou um NNR de 130 para evitar uma morte por câncer de pulmão em 10 anos de acompanhamento [30].
Um receio sobre esse rastreamento no Brasil é o aumento de resultados falsos-positivos em função da alta prevalência de tuberculose, gerando imagens que dificultam o diagnóstico diferencial. O estudo BRELT1 [31] avaliou os critérios de rastreamento do NLST em 790 participantes brasileiros com alta prevalência de doenças granulomatosas. A taxa de câncer de pulmão nessa população foi semelhante à do NLST (1,3% contra 1,0%), apesar de o valor preditivo positivo para a TC de baixa dosagem ter sido ligeiramente menor no BRELT1 (3,2% contra 3,8%). Dez participantes apresentaram doenças granulomatosas, dentre os quais dois casos de tuberculose [31]. Já o estudo BRELT2 avaliou uma coorte maior (3.470 indivíduos), também no Brasil [32]. A prevalência de doenças granulomatosas não aumentou o número de biópsias pulmonares.
Aspectos práticos
A maioria dos achados incidentais é clinicamente insignificante. Os mais comuns são os achados pulmonares (69%), cardiovasculares (67%) e gastrointestinais (25%). Alguns requerem avaliação adicional (veja tabela 2) [33].

Existem diversos modelos probabilísticos que podem ser utilizados para aprimorar a seleção dos pacientes para o rastreamento. O modelo de Bach, PLCOm2012, Lung Cancer Risk Assessment Tool (LCRAT) e Lung Cancer Death Risk Assessment Tool (LCDRAT) apresentaram melhor desempenho na seleção de ex-tabagistas para rastreamento [34]. Na população brasileira, um estudo evidenciou que o uso do modelo PLCOm2012 aumentou a eficácia do rastreamento e reduziu a taxa de falsos positivos quando comparado aos critérios do NLST [35]. Por outro lado, uma revisão sistemática encontrou melhor relação de custo-efetividade nas pessoas entre 55 e 75 anos e com carga tabágica de pelo menos 20 anos-maço, sem diferença no uso de modelos probabilísticos [36].
A diretriz brasileira reforça a necessidade de uma equipe multidisciplinar para recrutamento e interpretação da TC de baixa dosagem pelo Lung-RADS, com capacidade de realizar diagnóstico diferencial nos casos de teste positivo e tratamento adequado nos casos de câncer (biópsia, cirurgia), além de um programa de cessação de tabagismo [22, 37]. Ou seja, os recursos necessários para implementar essa estratégia vão além da disponibilidade de TC de baixa dosagem. A cessação do tabagismo é a intervenção com maior potencial para reduzir as mortes relacionadas ao câncer de pulmão.
Rastreamento de câncer de colo de útero
População-alvo e periodicidade
Homens trans (pessoas que tiveram o sexo feminino ao nascer, mas que se identificam com o gênero masculino), indivíduos não binários, de gênero fluido e intersexuais nascidos com sistema reprodutivo feminino e que não realizaram a remoção cirúrgica dos seus órgãos reprodutivos, necessitam do mesmo cuidado indicado à população feminina, como exames preventivos e imunizações.
O Ministério da Saúde recomenda o rastreamento do câncer do colo do útero e de suas lesões precursoras em mulheres que já iniciaram atividade sexual. O método recomendado é o exame citopatológico do colo do útero (teste de Papanicolau). A recomendação é iniciar aos 25 anos e manter até os 64 anos. Os dois primeiros exames devem ser realizados com intervalo anual e, se ambos os resultados forem negativos, os próximos devem ser realizados a cada 3 anos (recomendação A) [38]. A tabela 3 resume as condutas após a realização do exame citopatológico.

O Ministério orienta que o rastreamento não seja realizado em dois grupos: mulheres que nunca tiveram relação sexual, por não terem sido expostas à infecção por tipos oncogênicos do HPV, e mulheres antes dos 25 anos [38].
Nas mulheres sem história de doença neoplásica pré-invasiva, o rastreamento deve ser interrompido aos 64 anos quando essas mulheres tiverem pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos (recomendação B). Em mulheres com mais de 64 anos que nunca se submeteram ao exame citopatológico, deve-se realizar dois exames com intervalo de um a três anos. Se ambos os exames forem negativos, essas mulheres podem ser dispensadas de exames adicionais (recomendação B). O rastreamento de gestantes deve seguir as recomendações de periodicidade e faixa etária aplicadas para as demais mulheres (recomendação A) [38].
A USPSTF também recomenda o rastreamento de câncer de colo de útero, porém com algumas diferenças. Segundo essa instituição, o rastreamento deve ser realizado em pessoas com colo do útero de 21 a 65 anos, independentemente do seu histórico sexual. Os níveis e as faixas etárias da recomendação são [39]:
- 21 a 29 anos — citologia cervical (Papanicolau) a cada 3 anos (recomendação A).
- 30 a 65 anos — citologia cervical a cada 3 anos ou teste de HPV de alto risco (hrHPV) a cada 5 anos ou teste do hrHPV em combinação com a citologia a cada 5 anos (co-teste) (recomendação A).
A USPSTF recomenda evitar o rastreamento em mulheres com mais de 65 anos que tenham feito um rastreamento prévio adequado e que não apresentem um risco elevado de câncer do colo do útero [39].
As recomendações da USPSTF estão em processo de atualização. Na versão preliminar da nova recomendação, há menção aos testes para HPV por autocoleta, em que o próprio paciente coleta e envia ao laboratório. Essa é uma alternativa para alcançar alguns grupos, como pessoas com dificuldades de acesso, minorias e pessoas com história de trauma/abuso.
Ministério da Saúde e USPSTF recomendam evitar o rastreamento em mulheres submetidas à histerectomia total sem antecedentes de neoplasia intraepitelial cervical (NIC) de grau II ou III ou de câncer do colo do útero. Em casos de histerectomia por lesão precursora ou câncer do colo do útero, a mulher deverá ser acompanhada conforme a lesão tratada (recomendação A).
Os testes moleculares para detecção de HPV de alto risco foram incorporados no rastreamento do câncer do colo do útero no SUS em 2024. Nesta atualização, sugere-se a utilização de teste de DNA-HPV oncogênico com genotipagem parcial ou estendida como método de rastreamento primário para o câncer do colo do útero. A consulta pública está em andamento para finalização da recomendação. A conduta preliminar está disponível no fluxograma 1, conforme este manual.

Evidências de eficácia
Revisões sistemáticas de estudos observacionais e um ensaio clínico realizado na Índia indicam que o rastreamento de câncer de colo do útero reduz a mortalidade por esse câncer [40, 41, 42]. Todas as estratégias de rastreamento apresentam reduções de casos de câncer e de mortes, além de anos de vida ganhos.
Alguns fatores explicam diferenças nas recomendações de rastreamento:
- Diferença de incidência conforme a idade: a incidência de câncer de colo do útero em mulheres mais jovens é menor. Um estudo realizado pelo International Agency for Research on Cancer (IARC) descreveu uma baixa incidência de câncer de colo de útero abaixo dos 25 anos [43]. Diversos estudos encontraram incidência de até 1% nessa faixa etária [44, 45]. Existe uma diferença significativa no número de casos de câncer de colo do útero comparando o período de 21 a 24 anos com 25 a 29 anos (0,8% contra 4,0%, dados dos Estados Unidos) [46]. Não se sabe quantas dessas pessoas com 21 a 24 anos vivem com HIV ou estão em imunossupressão, grupos em que se aplicam outras recomendações.
- Resolução espontânea: a prevalência de lesão intraepitelial escamosa de alto grau (HSIL, sigla em inglês) correspondente a NIC II é maior do que NIC III em mulheres até os 29 anos [47]. O impacto do rastreamento em NIC II é menor e essas lesões têm maior probabilidade de regressão espontânea. Um estudo brasileiro descreveu que, em mulheres jovens com lesões na citologia oncótica, 54,9% regrediram para NIC I e 71,4% para NIC II, com somente 3,1% de progressão [48].
- Eventos adversos: o tratamento de lesões precursoras do câncer de colo envolve excisão e ablação. Em adolescentes e mulheres jovens, estas intervenções estão associadas com parto prematuro, baixo peso de nascimento ao nascer e necessidade de parto via cesárea [49].
Vacinação contra HPV
A prevenção primária é feita com a vacinação contra o HPV. Estudos mostram redução significativa nas infecções por HPV e surgimento de NIC II ou mais entre meninas e mulheres e nos diagnósticos de lesões anogenitais entre homens e mulheres em populações vacinadas [50].
A vacina disponível no SUS é a quadrivalente, oferecendo proteção contra os tipos 6, 11, 16 e 18. Deve ser ofertada a crianças com 9 a 14 anos em dose única. O Programa Nacional de Imunização (PNI) recomenda que adolescentes dos 15 aos 19 anos não vacinados devem realizar estratégia de resgate com dose única da vacina. A vacina nonavalente confere proteção para os sorotipos 16, 18, 31, 33, 45, 52 e 58 do HPV, porém não está disponível no SUS.
A recomendação atual é que pessoas vacinadas devem realizar o rastreamento recomendado para a faixa etária, pois a vacina não protege contra todos os tipos de vírus oncogênicos.
Rastreamento de câncer de pele
Câncer de pele é o tipo de câncer mais comum. Entre os cânceres de pele, os mais frequentes são os do tipo não melanoma (carcinoma basocelular e espinocelular), seguido do melanoma. A maioria das mortes por câncer de pele é por melanoma.
Métodos de rastreamento
A USPSTF concluiu que as evidências são insuficientes para avaliar os riscos e benefícios do rastreamento de câncer de pele pelo exame da pele a olho nu ou com dermatoscopia [51].
O Ministério da Saúde reforça a ausência de benefício no rastreamento. A recomendação é o diagnóstico precoce. A regra ABCDE ajuda na identificação de melanomas (figura 4).

Pessoas de alto risco para melanoma, como aquelas com história familiar ou pessoal desse câncer, podem se beneficiar de um acompanhamento periódico, segundo o INCA.
Evidências
A sensibilidade do exame da pele por um médico (médico da atenção básica, dermatologista ou cirurgião plástico) para detectar melanoma variou entre 40% e 70% e a especificidade variou entre 86% e 98%. As evidências que avaliaram a exatidão diagnóstica do exame visual da pele para detectar câncer não melanoma são limitadas e inconsistentes [52]. Não existem ensaios clínicos disponíveis sobre esse tema.
O estudo SCREEN é uma evidência importante no rastreamento de melanoma. Esse trabalho avaliou a mortalidade por melanoma numa região da Alemanha antes e depois da implementação de um programa de rastreamento. No seguimento de 5 anos, a mortalidade por melanoma diminuiu 49% na região de rastreamento em comparação com as áreas sem um programa de rastreamento. No entanto, o benefício de mortalidade diminuiu no seguimento de 10 anos, voltando a taxas semelhantes às do início do rastreamento [53]. A provável ineficácia do rastreamento de melanomas relaciona-se com a baixa incidência na população, logo, o potencial de benefício absoluto é pequeno.
Os danos associados ao rastreamento incluem danos cosméticos resultantes de biópsias (por exemplo, cicatrizes), danos psicossociais (por exemplo, ansiedade, depressão) e sobrediagnóstico [52].
Situações especiais
Os rastreamentos de câncer de pâncreas, câncer de canal anal e carcinoma hepatocelular seguem recomendações específicas. O rastreamento de carcinoma hepatocelular em pacientes com hepatopatia foi abordado em "Carcinoma Hepatocelular".
Câncer de pâncreas
A USPSTF recomenda não realizar o rastreamento em adultos assintomáticos (recomendação D) [54]. Essa recomendação não se aplica em pessoas de alto risco, que são aquelas com síndrome genética hereditária ou história familiar de câncer de pâncreas.
As recomendações de condições de rastreamento do International Cancer of the Pancreas Screening (CAPS) Consortium e AGA estão disponíveis na tabela 4 [55,56]. O teste genético e o aconselhamento devem ser considerados para os familiares de pessoas com câncer de pâncreas elegíveis para vigilância [55].

A AGA recomenda iniciar o rastreamento aos 50 anos ou 10 anos mais cedo do que a idade inicial do diagnóstico do familiar. O rastreamento deve ser iniciado aos 40 anos em portadores de mutações CKDN2A e PRSS1 com pancreatite hereditária e aos 35 anos no caso da síndrome de Peutz-Jeghers [55].
A ultrassonografia endoscópica (EUS) e a ressonância magnética (RM) são os exames de preferência e devem ser utilizados em conjunto. A RM é sensível para a detecção de lesões císticas e a EUS para lesões sólidas [57]. A periodicidade dos exames depende dos achados, mas pacientes sem alterações relevantes costumam realizar anualmente.
Não há consenso quanto à recomendação sobre a idade para parar o rastreamento [58]. A AGA sugere considerar a possibilidade de interromper o rastreamento quando os pacientes têm maior probabilidade de falecer de causas não relacionadas com o câncer de pâncreas e/ou não são candidatos à ressecção do pâncreas [55].
Não existem ensaios clínicos randomizados comparando a estratégia de rastreamento contra o não rastreamento em populações de alto risco.
Câncer de canal anal
A International Anal Neoplasia Society (IANS) recomenda o rastreamento a partir de 35 anos para pessoas que vivem com HIV e são homens que fazem sexo com homens ou mulheres trans. O rastreamento a partir dos 45 anos é recomendado para [59]:
- Homem sem HIV que faz sexo com homem.
- Homem com HIV que não faz sexo com homem.
- Mulheres trans sem HIV.
- Mulher com HIV.
A citologia anal, o teste molecular hrHPV (incluindo a genotipagem para o HPV16), o co-teste (citologia anal e hrHPV) e o exame anal digital são estratégias utilizadas para o rastreamento que apresentam um desempenho aceitável. Quando há alteração, deve-se realizar a anuscopia de alta resolução. Se os resultados forem normais, deve-se repetir a cada 1 a 2 anos.
Em um estudo recente em pessoas com HIV, o co-teste (citologia anal e hrHPV), quando comparado à citologia anal, apresentou maior especificidade, resultando em menos encaminhamentos para a anuscopia de alta resolução [60].
Rastreamentos não recomendados ou em fase de estudo
Câncer de ovário
A USPSTF recomenda que não seja realizado o rastreamento de câncer de ovário em mulheres assintomáticas (recomendação D). Essa recomendação não se aplica a mulheres com síndromes hereditárias com alto risco de câncer [61]. O INCA também pontua que o rastreamento desse câncer não é recomendado [62].
Para as mulheres com história familiar ou pessoal de câncer de mama, ovários, trompas ou peritônio, ou com familiares com mutações nos genes BRCA1/2, a USPSTF recomenda avaliação do risco familiar com uma ferramenta apropriada. Essa avaliação pode ser feita com instrumentos como o Ontario Family History Assessment Tool, International Breast Cancer Intervention Study (modelo de Tyrer-Cuzick). Caso o resultado seja positivo, devem receber aconselhamento genético e testagem, se indicada [63].
Em mulheres de baixo risco, não existe nenhuma estratégia para a detecção precoce que comprovadamente reduza a mortalidade por câncer de ovário [64]. A utilização de ultrassonografia transvaginal e de marcadores tumorais (como o CA 125), isoladamente ou em combinação, não reduziu a mortalidade. Além disso, existem danos decorrentes de testes de diagnóstico invasivos (por exemplo, cirurgia) resultantes de resultados falsos positivos [64].
Câncer de endométrio
A American Cancer Society (ACS) afirma que o rastreamento em geral não está indicado pela ausência de dados que sustentem a eficácia desse rastreamento na redução da mortalidade por câncer do endométrio. O INCA também pontua que o rastreamento não é recomendado [65].
Cerca de 75 a 90% das pacientes com câncer de endométrio são sintomáticas (ou seja, apresentam sangramento uterino anormal) [66,67]. A presença de um sintoma comum e a disponibilidade de uma terapêutica eficaz resultam em elevadas taxas de sobrevida sem rastreamento. A ACS destaca que todas as mulheres devem ser informadas sobre os riscos e sintomas do câncer do endométrio e fortemente encorajadas a comunicar qualquer sangramento uterino anormal.
Pacientes com síndrome de Lуnϲh têm um risco acentuadamente aumentado de câncer de endométrio e devem ser aconselhadas sobre o rastreamento.
Câncer de tireoide
A USPSTF e diversas sociedades recomendam não realizar o rastreamento de câncer de tireoide em pessoas assintomáticas [68.69].
As evidências de rastreamento utilizando a palpação do pescoço ou ultrassonografia são limitadas. Um trabalho evidenciou que o uso de ultrassonografia de tireoide no rastreamento não preveniu mortes por câncer da tireoide [70]. Além disso, o rastreamento pode levar ao sobrediagnóstico, com intervenções cirúrgicas desnecessárias, que estão associadas a riscos significativos, como hipoparatireoidismo permanente e paralisia do nervo laríngeo recorrente [68].
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