Diretriz Americana de Doença Celíaca: Diagnóstico e Tratamento
A doença celíaca é uma condição imunomediada induzida pela exposição alimentar ao glúten. As manifestações são variadas, entre sintomas gastrointestinais e extraintestinais. O único tratamento eficaz é a dieta isenta de glúten. Este tópico revisa o diagnóstico e o manejo da doença celíaca, embasado principalmente pela diretriz do American College of Gastroenterology (AGC), de 2023 [1].
Definição, manifestações e quando pesquisar
A doença celíaca é uma condição imunomediada, desencadeada pela exposição alimentar ao glúten. O glúten é um complexo de proteínas composto pelas proteínas gliadina e glutenina presente em cereais como trigo, centeio e cevada. A prevalência estimada no Brasil é entre 0,3 e 1,3%, no entanto, alguns estudos nacionais sugerem que a condição é subdiagnosticada [2, 3 ,4].

Os sintomas podem ser divididos em gastrointestinais e extraintestinais (tabela 1). Entre as formas gastrointestinais, são frequentes diarreias crônicas, distensão abdominal, dor abdominal e perda de peso. Das manifestações extraintestinais, destacam-se:
- Dermatite herpetiforme: ocorre em até 10% dos adultos com doença celíaca [5]. É caracterizada por vesículas dolorosas em joelhos, cotovelos e couro cabeludo (figura 1) [6, 7].
- Deficiências nutricionais: anemia ferropriva, deficiência de ferro, vitamina B12 e vitamina D (levando à osteopenia).
- Elevação de transaminases: a doença celíaca é um diagnóstico diferencial desse achado laboratorial [8]. Veja mais sobre a investigação de elevação de transaminases no tópico "Abordagem à Elevação de Enzimas Hepáticas".

Em casos mais graves, podem ocorrer desnutrição e atraso de crescimento e desenvolvimento em crianças. O risco de linfoma intestinal é maior em pacientes com doença celíaca não tratada [9].
Não há recomendação de rastreio universal para doença celíaca [10]. A diretriz do American College of Gastroenterology (ACG) recomenda que a doença seja pesquisada nos seguintes grupos:
- Pacientes com sinais e sintomas sugestivos: manifestações gastrointestinais, extraintestinais e alterações laboratoriais (tabela 1).
- Familiares de primeiro grau de pacientes com doença celíaca. Especialmente se apresentarem manifestações clínicas ou laboratoriais sugestivas.
- Indivíduos com diabetes tipo 1 que apresentem sintomas gastrointestinais ou baixa estatura, com diminuição da velocidade de crescimento.

Outras condições que podem estar associadas à doença celíaca estão listadas na tabela 2 [1].
Diagnóstico de doença celíaca
A maioria das diretrizes recomenda que o diagnóstico seja estabelecido pela combinação de manifestações clínicas, sorológicas e histopatológicas (fluxograma 1) [1]. Os testes sorológicos e histopatológicos devem ser realizados enquanto o paciente está exposto ao glúten. A retirada prolongada do glúten da dieta (> 12 meses) pode negativar a presença de autoanticorpos e reverter a atrofia de vilosidades do duodeno [9].

Sorologias
O exame de escolha para iniciar a investigação de doença celíaca é o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA (anti-TTG IgA). Deve-se dosar também a IgA total, visto que a deficiência de IgA é mais frequente em pacientes com doença celíaca, podendo interferir na interpretação do anti-TTG IgA [11, 12].
Outras sorologias podem auxiliar o diagnóstico quando existe alta probabilidade de doença celíaca associada à deficiência de IgA ou quando o anti-TTG IgA é negativo. A diretriz recomenda complementar a investigação nesses casos com a dosagem de anticorpos da classe IgG: anti peptídeo de gliadina deaminada (anti-DGP) ou anti-TTG IgG [1]. O papel do anti-endomísio (EMA) se limita à confirmação diagnóstica de pacientes com alto título de anti-TTG IgA, especialmente em crianças sem critérios para biópsia duodenal (ver fluxograma 1).
O desempenho das sorologias no diagnóstico está descrito na tabela 3.

Endoscopia e biópsia de intestino delgado
A endoscopia digestiva alta com biópsia de intestino delgado deve ser realizada quando houver positividade de anti-TTG IgA ou alta suspeição de doença celíaca [1]. As alterações macroscópicas na endoscopia de duodeno são pregas mucosas serrilhadas, padrão em mosaico, pregas achatadas, menor tamanho e desaparecimento das pregas [13]. Mesmo na ausência de alterações macroscópicas, devem ser realizadas pelo menos quatro biópsias do duodeno distal e uma do bulbo duodenal se houver suspeita de doença celíaca [1].
Os achados histológicos esperados são:
- Aumento do número de linfócitos intraepiteliais.
- Atrofia de vilosidades.
- Hiperplasia de criptas.

A classificação de Marsh é utilizada para quantificar esses achados (tabela 4). As alterações histológicas descritas são frequentes na doença celíaca, mas podem ocorrer em outras condições (tabela 5).

Em pacientes com sorologias limítrofes ou biópsia duvidosa, pode-se repetir a sorologia após algum tempo de reintrodução controlada de glúten, se a condição clínica permitir [1].
Pacientes que não podem realizar endoscopia
Nesse grupo, a diretriz do ACG possibilita o diagnóstico a partir de:
- Títulos de anti-TTG IgA > 10 vezes o limite superior da normalidade, em conjunto com:
- Positividade de anti-endomísio (EMA).
- Presença do HLA DQ2/DQ8. Este teste, embora não seja obrigatório, fortalece a hipótese diagnóstica [1].
- Biópsia de pele compatível com dermatite herpetiforme [7, 14]. O achado característico na imunofluorescência direta são depósitos granulares de IgA na derme.
HLA DQ2/DQ8
Quase 100% dos pacientes com doença celíaca possuem HLA DQ2/DQ8 [6, 15]. A ausência do HLA DQ2/DQ8 praticamente exclui essa hipótese em casos de dúvidas. No entanto, é um exame pouco disponível e não deve ser realizado na rotina de investigação de doença celíaca. A principal indicação é em situação de dúvida diagnóstica, como a divergência entre testes sorológicos e histológicos ou em indivíduos que já seguem uma dieta isenta em glúten [1].
Tratamento e acompanhamento da doença celíaca
A dieta isenta em glúten é a única terapia eficaz para doença celíaca até o momento. Pacientes com esse diagnóstico devem receber orientações nutricionais específicas, para adequação do consumo de fibras e minerais [1]. A adesão à dieta pode ser um desafio, especialmente entre adolescentes, indivíduos oligossintomáticos e com menor poder aquisitivo [7].
A diretriz do ACG recomenda que não sejam usadas ferramentas para verificação de glúten na dieta [1]. Essa recomendação se baseia em estudos que não evidenciaram melhora da qualidade de vida ou na adesão à dieta a partir do uso dessas ferramentas [16].
A aveia não possui glúten naturalmente, mas existem relatos de presença de glúten em produtos com aveia por contaminação. Não há recomendação de exclusão desse alimento para todos os pacientes com doença celíaca. Contudo, a diretriz orienta que o consumo deva ser monitorado, tendo atenção para o surgimento de sintomas [1].
A dieta isenta em glúten pode melhorar os sintomas nos primeiros 60 dias de tratamento em até 80% dos pacientes [1]. Uma cartilha com recomendações gerais para essa dieta está disponível aqui.
Não há consenso sobre a realização de endoscopia ou biópsias de controle em pacientes aderentes à dieta isenta em glúten [1]. A dosagem de anti-TTG IgA durante o tratamento auxilia a avaliar a adesão. Positividade após 12 meses de tratamento é um forte indicador de que o paciente segue ingerindo glúten. A normalização sorológica, no entanto, não é capaz de predizer a melhora da atrofia de vilosidades [1, 17].
Os pacientes com doença celíaca devem ser investigados quanto à presença de deficiências nutricionais e doenças associadas. Recomenda-se avaliação do perfil de ferro, ácido fólico, vitamina B12, cálcio, fosfato e vitamina D. Devem ser pesquisadas doenças imunomediadas (com avaliação de TSH e glicemia) e hepáticas (dosagem de transaminases) [1, 17].
Pacientes com doença celíaca possuem maior risco de infecções pelo S. pneumoniae [1, 18]. Isso pode ser explicado pelo hipoesplenismo que ocorre em até um terço dos pacientes [1, 6, 19]. A diretriz do ACG sugere que os pacientes com o diagnóstico sejam vacinados [6]. Leia mais sobre a vacina pneumocócica no tópico "Vacina Pneumocócica no Adulto". Outras diretrizes recomendam ainda a vacinação para Haemophilus influenzae e Meningococcus [17].
Aproveite e leia:
Vacina Pneumocócica no Adulto
Atualmente, o esquema de vacinação pneumocócica no Brasil é baseado em duas vacinas: VPC13 e VPP23. Em outubro de 2021, o Comitê de Práticas Imunizantes dos Estados Unidos recomendou o uso das novas vacinas PCV15 ou PCV20, considerando uma maior efetividade com relação ao esquema anterior. Assim, trazemos uma revisão do esquema vacinal brasileiro e os principais pontos desta nova recomendação.