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Caso Clínico #1

Criado em: 06 de Outubro de 2022 Autor: João Mendes Vasconcelos

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Mulher de 60 anos vem ao pronto socorro por adinamia e fraqueza há 2 meses. Os antecedentes clínicos são diabetes, dislipidemia e tabagismo de 15 maços ano. Atualmente em uso de insulina, metformina e sinvastatina. Trabalha na lavanderia de uma instituição de longa permanência.

O hemograma da admissão revela hemoglobina de 9,6 g/dL, leucocitos de 16.000/mm³, com 39% de blastos, e plaquetas de 132.000/mm³. Demais exames sem alterações.

A paciente é diagnosticada com leucemia mieloide aguda e admitida para início da terapia com citarabina e daunorrubicina. Um cateter central de inserção periférica (PICC) é inserido.


A leucemia mieloide aguda (LMA) é um grupo de neoplasias hematológicas agressivas que envolvem a proliferação de blastos da linhagem granulocítica, monocítica, eritróide ou megacariocítica. Na LMA, uma célula precursora mielóide começa a se reproduzir em clones de maneira descontrolada. Esses clones malignos têm baixa capacidade de se diferenciarem em formas maduras, permanecendo na forma de blastos.

A LMA é a leucemia aguda mais comum do adulto, acometendo pessoas com uma idade média de 65 anos. Os sintomas mais frequentes são consequências de citopenias causadas pela doença:

  • Anemia e sinais e sintomas relacionados, por prejuízo da série eritroide
  • Infecções, por neutropenia
  • Sangramentos, por plaquetopenia

A paciente do caso tem um quadro clínico e laboratorial sugestivo de LMA. O diagnóstico pode ser presumido pela visualização de blastos na circulação periférica, porém para definição é necessário estudar a medula óssea com aspirado (mielograma) e biópsia. Didaticamente, são necessários os dois critérios abaixo [1]:

  • Infiltração da medula óssea: pelo menos 20% de blastos na medula. A presença de mais de 20% de blastos no sangue periférico também configura LMA. Existem exceções, por exemplo, quando há anormalidades genéticas específicas, como t(15;17), t(8;21), inv(16), em que se pode caracterizar LMA mesmo com menos que 20% de blastos.
  • Origem mielóide: as células leucêmicas devem ter essa linhagem, podendo ser demonstrada através da visualização de bastonete de Auer, positividade para mieloperoxidase ou marcadores específicos na imunofenotipagem.

A terapia depende do status performance e da idade do paciente. Inicialmente faz-se uma terapia de indução de remissão e em seguida de consolidação. Pacientes que tem um bom status são candidatos a terapia mais agressiva. A indução habitual para esses pacientes é o esquema conhecido como 7+3: sete dias de citarabina e 3 dias de um antracíclico (como daunorrubicina). Essa terapia ocasiona citopenias significativas e prolongadas.

No décimo dia de internação, apresenta febre de 38,5 ºC. Os demais sinais vitais são estáveis e não há alterações no exame físico. Sítio de PICC sem alterações. Nesse dia, os leucócitos totais eram de 300/mm³ com 50% de neutrófilos. A paciente estava recebendo alopurinol para profilaxia de síndrome de lise tumoral e voriconazol e aciclovir para profilaxia de infecções. É iniciado cefepime empiricamente. Radiografia e exame de urina sem alterações. Hemocultura solicitada. PCR para Sars-CoV-2 negativo.


Febre no contexto de quimioterapia recente deve levantar a suspeita de neutropenia febril. Nesse cenário, considera-se febre como uma aferição de temperatura elevada ou temperatura subfebril mantida por uma hora. Neutropenia é definida como neutrófilos menores que 1500 a 1000/mm³ dependendo da referência utilizada. Apesar disso, na discussão de neutropenia febril, considera-se neutropenia significativa como neutrófilos abaixo de 500/mm³ ou com expectativa de cair abaixo de 500/mm³ em 48 horas [2].

Neutropenia febril é uma emergência médica e a terapia antimicrobiana deve ser administrada em no máximo 60 minutos. Está indicado terapia antimicrobiana com um betalactâmico com ação anti-pseudomonas. Algumas opções são cefepime 2g de 8/8 horas ou piperacilina-tazobactam 4,5g de 6/6 horas. Pela diretriz da Infectious Disease Society of America, deve-se acrescentar cobertura para gram positivos com vancomicina nos seguintes cenários [3]:

  • Instabilidade hemodinâmica
  • Pneumonia
  • Infecção de pele e partes moles ou suspeita de infecção associada a cateter
  • Resultado parcial de hemocultura com gram-positivo

É necessário pesquisar ativamente um foco infeccioso, pois esses pacientes dão poucos sinais localizatórios. Além das hemoculturas periféricas, também é necessário colher amostras da PICC. Caso nenhum foco seja encontrado, o antibiótico deve ser mantido até a contagem de neutrófilos subir acima de 500/mm3 e a febre se resolver.

No terceiro dia de febre seguido, o décimo terceiro da internação, a paciente fica taquipneica e surge um infiltrado pulmonar no lobo superior esquerdo. Realizado tomografia de tórax que evidencia lesão consolidativa de formato nodular com vidro fosco ao redor e linfonodos hilares ipsilaterais.

Antígenos urinários para legionella e pneumococo são negativos. O paciente não produzia escarro, por isso não foi coletada secreção respiratória. Coletadas beta-D-glucana e galactomanana séricas, ambas negativas. Associado vancomicina e amicacina.


Agora o foco se anunciou. Sindromicamente, o problema evoluiu de uma "neutropenia febril" para uma "pneumonia no paciente imunossuprimido" . Todo paciente com pneumonia grave que se considera internação em UTI deve ter coletado hemocultura, cultura de secreção respiratória e antígenos urinários [4]. Caso o paciente esteja intubado, colhe-se a secreção respiratória do tubo orotraqueal; se estiver sem ventilação invasiva, deve-se coletar o escarro do paciente. Diferente de infecção urinária, em que comumente encontramos germes na cultura, na pneumonia é comum não encontrar agentes, ainda mais em uma paciente que já estava em uso de antibiótico.

Figura 1
Tomografia de tórax
Tomografia de tórax

A imagem e a ausência de melhora com 3 dias de cefepime sugerem uma causa diferente de pneumonia. Consolidações com a aparência de nódulos ou massas podem ocorrer em vários cenários. A área de vidro fosco ao redor da consolidação forma o chamado "sinal do halo", sugerindo etiologia fúngica, em especial aspergilose. O vidro fosco reflete uma área de hemorragia ao redor do fungo. Outras causas de pneumonia como Nocardia, Actinomyces e tuberculose também podem causar esses achados radiográficos.

Beta-D-glucana e galactomanana são biomarcadores de fungos. Beta-d-glucana pode ser utilizada na suspeita de pneumocistose e cândida e galactomanana pode auxiliar no diagnóstico de aspergilose. A profilaxia com voriconazol e esses biomarcadores negativos formam um argumento contra infecção fúngica, mas essa hipótese ainda não pode ser descartada. Mucormicose (infecção por fungos da ordem Mucorales) é uma possibilidade, já que o voriconazol não confere cobertura para esses agentes. Para mais informações sobre os biomarcadores fúngicos, veja o tópico "Biomarcadores de infecções fúngicas".

Tabela 1
Exames microbiológicos que podem ser feitos em pacientes imunossuprimidos hospitalizados com pneumonia
Exames microbiológicos que podem ser feitos em pacientes imunossuprimidos hospitalizados com pneumonia

A associação de vancomicina é razoável nesse momento de ausência de melhora com definição de um foco pulmonar. Dobrar a cobertura para gram-negativos com amicacina é discutível, mas pode fazer sentido a depender da incidência de germes gram negativos multidroga resistentes no serviço. Dada a incerteza diagnóstica e os fatores de risco para agentes diversos, a realização de broncoscopia com análise do lavado broncoalveolar seria bastante útil. Testes que poderiam ser solicitados estão na tabela 1 e tabela 2, adaptada do consenso de pneumonia em pacientes imunossuprimidos [5].

Tabela 2
Exames microbiológicos que podem ser feitos no lavado broncoalveolar ou biópsia pulmonar transbrônquica
Exames microbiológicos que podem ser feitos no lavado broncoalveolar ou biópsia pulmonar transbrônquica

No 16º dia de internação, a paciente começa a ficar hipoxêmica e é transferida para UTI. A hipoxemia se agrava, sendo necessário intubação orotraqueal. Realizado broncoscopia com lavado broncoalveolar (LBA) com a seguinte celularidade: 160 células, 68% histiócitos, 22% linfócitos, 10% neutrófilos. Coloração de Gram, coloração para fungos e pesquisa de bacilo álcool-ácido resistentes negativos. Galactomanana e pesquisa de células neoplásicas no LBA também são negativos.

A radiografia mostra progressão das opacidades, agora com envolvimento bilateral, e piora da hipoxemia, com necessidade de fração inspirada de oxigênio (FiO2) cada vez maior. Nesse momento, a relação paO2/FiO2 é de 170. Suspenso voriconazol e iniciado anfotericina B.


A paciente evoluiu com síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA). Os critérios de Berlim de 2012 para SARA são [6]:

  • Início dos sintomas em uma semana de um insulto clínico.
  • Opacidades bilaterais na imagem, não totalmente explicadas por derrame pleural, atelectasia ou nódulos.
  • Insuficiência cardíaca ou sobrecarga volêmica não explicam completamente o quadro.
  • Comprometimento da oxigenação, avaliada através da relação pO2/FiO2, que deve ser menor que 300.

As principais medidas são ventilação mecânica protetora e tratamento da causa de base, que no caso é a provável infecção pulmonar da paciente.

A troca de voriconazol para anfotericina é apropriada no contexto de piora e alto risco de infecção fúngica, apesar de pesquisas negativas.

Apesar da broncoscopia ter sido realizada, não há relato de análises moleculares na amostra. Reação em cadeia de polimerase (PCR) pode auxiliar na pesquisa de pneumocistose, pneumonia atípica (por Legionella, Chlamydophila ou Mycoplasma), aspergilose, tuberculose, vírus respiratórios e citomegalovírus. Caso ainda haja material do LBA, esses testes devem ser solicitados na amostra.

Veja o desfecho do caso

No 17o dia, foi realizado teste com PCR no LBA, revelando legionella. Iniciado levofloxacina e a paciente apresentou melhora progressiva ao longo de 2 semanas, sendo desmamada da ventilação mecânica.


O resultado não é uma surpresa completa. Legionella é um agente associado a pneumonia em imunossuprimidos. O antígeno urinário negativo pode acontecer, uma vez que esse exame só detecta o sorotipo 1 dessa bactéria. Apesar de toda a cobertura antimicrobiana até o momento, as medicações ativas contra Legionella são macrolídeos e quinolonas, que não foram usadas pela paciente. Uma possível fonte de exposição é o trabalho com lavanderia, que pode ter levado ao contato com alguma fonte de água contaminada.

Antibióticos de escolha são levofloxacino e azitromicina. Em pacientes imunossuprimidos, o tratamento de legionella pode ser estendido por 14 dias, ajustando para resposta clínica. Mesmo um caso isolado de infecção por Legionella deve levantar a suspeita de surto, sendo necessário uma investigação da possível fonte contaminada.


Este caso foi adaptado do New England Journal of Medicine. Veja o caso completo no site do NEJM.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • Leucemia mielóide aguda é a leucemia aguda mais comum do adulto. As manifestações mais comuns são consequências de citopenias. O diagnóstico é feito com > 20% de blastos na medula ou sangue periférico e confirmação que os blastos tem origem mielóide.
  • No contexto de quimioterapia, febre e contagem de neutrófilos < 500/mm³ é chamado de neutropenia febril. Essa situação é uma emergência médica, com indicação de betalactâmico com ação anti-pseudomonas em até 60 minutos.
  • Em um paciente com neutropenia febril, a IDSA recomenda cobertura para gram positivos (ex.: vancomicina) nas seguintes situações: instabilidade hemodinâmica, pneumonia, infecção de pele/partes moles, suspeita de infecção de cateter ou resultado parcial de cultura com gram positivo.
  • Broncoscopia com lavado broncoalveolar é uma ferramenta diagnóstica útil em pacientes imunossuprimidos com pneumonia. Quanto mais precoce durante a evolução e mais imunossuprimido for o paciente, maior tende a ser o ganho. Se a causa puder ser inferida de maneira não invasiva, o risco de deterioração respiratória com a broncoscopia pode ser evitado.
  • Legionella é uma causa de pneumonia em imunossuprimidos. Resultado negativo de antígeno urinário não exclui o diagnóstico, já que o exame só detecta o sorotipo 1. O tratamento é feito com quinolonas ou macrolídeos.
Caso Clínico #1