Caso Clínico #2

Criado em: 03 de Novembro de 2022 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.

Homem de 44 anos, hígido, marceneiro, veio ao hospital por redução de débito urinário e mal-estar.

Há 30 dias apresentou quadro de cervicalgia no trabalho, utilizando diclofenaco 500mg 8/8h por 5 dias. Apresentou melhora, porém há 15 dias iniciou hiporexia, náuseas, dois episódios de vômitos e fadiga.

Tratado inicialmente com sintomáticos. O quadro progrediu e há 5 dias notou redução de débito urinário e edema de membros inferiores, o que motivou a ida ao hospital. Nega outros sintomas, exposições e uso de substâncias.

Ao exame físico, o paciente estava em bom estado geral, sem alterações de mucosas. Sinais vitais, exame cardiopulmonar e abdominal normais. Sem presença de bexigoma. As extremidades estavam bem perfundidas, com edema em membros inferiores até terço inferior da coxa com sinal do cacifo presente e sem empastamento de panturrilhas.

Nos exames laboratoriais iniciais feitos no pronto-socorro, destaca-se uma creatinina de 8,9 mg/dL. O paciente havia realizado exames há 6 meses e apresentava creatinina de 1,2 mg/dL.


Para diferenciar uma lesão renal aguda (LRA) de doença renal crônica (DRC), utiliza-se o marco temporal de 3 meses. Uma disfunção renal que se mantém por mais de 3 meses é caracterizada como crônica.

Apesar de apenas um valor de creatinina estar disponível nos últimos 3 meses, o aumento em 6 meses para um valor elevado de 8,9 mg/dl não condiz com uma evolução de DRC, ainda mais em um paciente previamente hígido. Provavelmente o paciente apresenta uma LRA, o que justifica a redução do débito urinário e o edema de membros inferiores.

A identificação da causa da LRA pode ser rápida por reconhecimento de padrão, como em um paciente com choque séptico. Em outros casos a causa é mais obscura, necessitando de revisões da anamnese e múltiplos exames. Uma abordagem tradicional de LRA é organizar as causas anatomicamente em pré-renal, intra-renal e pós-renal (ver tabela 1).

{Tabela1}

O paciente teve alguns episódios de vômitos, mas em uma quantidade que não causaria esse grau de disfunção. Os sinais vitais normais e a boa perfusão afastam a possibilidade de choque como causa.

A relação ureia/creatinina elevada - em geral maior que 40 - é por vezes utilizada para favorecer o diagnóstico de LRA pré-renal [1]. Essa ferramenta foi mais estudada no contexto de hemorragia digestiva alta e pode ser falseada por ingestão excessiva de proteínas, baixa massa muscular e uso de corticóides.

A redução de débito urinário pode ser vista na LRA pós-renal, porém o paciente não tem fatores de risco - idade avançada, condições que levem a bexiga neurogênica, medicações que causem retenção - para esse grupo de causas. A palpação de globo vesical é importante na busca da causa de LRA, porém a acurácia dessa manobra é menor que 70% [2]. Para certificar que não há causa pós-renal, complementa-se a investigação com ultrassonografia em busca de sinais de dilatação pielocalicinal.

As causas intra-renais podem ser subdivididas em glomerulares, tubulares, intersticiais e vasculares. A anamnese deve procurar ativamente a exposição a agentes nefrotóxicos, especialmente medicamentos. O uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINE) é importante. Essas drogas podem causar alterações em todas as subdivisões do rim: necrose tubular aguda, doenças glomerulares, nefrite intersticial e necrose de papila.

A análise de urina pode auxiliar nessa diferenciação, já que a presença de proteinúria nefrótica (maior que 3,5g em 24 horas), dismorfismo eritrocitário ou cilindros hemáticos apontam para uma causa glomerular. Contudo, muitas vezes a diferenciação de qual segmento está causando a LRA é feita através da biópsia renal.

O laboratório evidenciou um potássio sérico de 7,1 mEq/L que foi refratário a medidas para hipercalemia na sala de emergência. Foi iniciado hemodiálise no mesmo dia.

{Tabela2}

O hemograma e outros eletrólitos estavam normais, assim como exames marcadores de disfunção orgânica. Outros exames podem ser visualizados na tabela 2. O exame de urina apresentou na microscopia mais de um milhão de hemácias/ml (normal menor que 10 mil/ml) com dismorfismo eritrocitário de 2+/4+ e 160 mil leucócitos/mL (normal menor que 10 mil/mL). A fita reagente na urina evidenciou proteínas 3+/4+, sangue 3+/4+ e bilirrubina, corpos cetônicos, glicose e nitrito negativo.

A ultrassonografia de rins e vias urinárias evidenciou rins tópicos com forma, contornos e dimensões normais. Parênquima renal com espessura preservada e ecogenicidade difusamente aumentada. Rim direito medindo 12,6 cm e esquerdo medindo 12,3 cm. Não há sinais de dilatação do sistema coletor.


A ultrassonografia sem dilatação pielocalicinal somada à ausência de fatores de risco afasta fortemente a possibilidade de etiologia pós-renal.]

{Tabela3}

O dismorfismo eritrocitário, os sinais de proteinúria pela fita reagente e inflamação na urina vista através de leucócitos e hemácias fortalecem a possibilidade de uma síndrome glomerular. Dentre as síndromes glomerulares (ver tabela 3), a que se encaixa com a presença de dismorfismo eritrocitário e disfunção renal sem evidência de proteinúria nefrótica é a síndrome nefrítica.

{Figura1}

Uma síndrome nefrítica que leva a LRA expressiva como a do paciente é chamada de glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP). A GNRP é caracterizada pelo achado histológico de crescentes na biópsia renal. Os crescentes são uma massa celular extracapilar no espaço de Bowman (ver figura 1).

{Figura2}

A imunofluorescência direta (IFD) é um exame feito no material da biópsia renal. A IFD identifica a presença e o tipo de imunoglobulinas no material. O achado da IFD permite diferenciar a GNRP em três padrões (ver figura 2):

  • IFD negativa, sem coloração: padrão chamado de pauci-imune. Ocorre em vasculites associadas ao anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (ANCA). Exemplos: granulomatose com poliangeíte (GPA), granulomatose com poliangeíte eosinofílica e poliangeíte microscópica (PAM).
  • IFD positiva com depósitos granulares: pode ocorrer em muitas glomerulonefrites. O tipo de imunocomplexo depositado (IgG, IgM, IgA, C1q ou C3) sugere doenças diferentes. Exemplos: lúpus, nefropatia por IgA, crioglobulinemia, endocardite infecciosa.
  • IFD positiva com depósito linear: típica da glomerulonefrite por anticorpo anti-membrana basal glomerular. Pode ocorrer em conjunto com hemorragia alveolar, caracterizando a síndrome de Goodpasture.

O tratamento é baseado na etiologia, mas nem sempre é possível determinar a causa rapidamente. Assim, recomenda-se o tratamento empírico com pulsoterapia de corticóides devido a alta prevalência de causas auto-imunes nesse contexto. A evidência dos tratamentos para GNRP é baixa e muitas vezes extrapolada de outros cenários [3].

{Tabela4}

Além da biópsia renal para análise histológica e identificação do padrão da IFD, os exames que são recomendados diantes de uma GNRP são [4]:

  • Dosagem de complemento (C3 e C4): uma das principais ferramentas na diferenciação de causas de síndrome nefrítica é feita pela dosagem de complemento (ver tabela 4)
  • Exames de investigação de lúpus: anticorpo antinuclear (FAN), Anti-DNA, Anti-SM
  • Pesquisa de crioglobulinas
  • Sorologias para HIV, vírus da hepatite B e vírus da hepatite C
  • Hemoculturas
  • Anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (ANCA)
  • Anticorpo antimembrana basal glomerular (Anti-MBG).

Devido a possibilidade de GNRP, iniciado metilprednisolona em pulsoterapia, na dose de 1000 mg/d. Sorologias para HIV, hepatite B e hepatite C não reagentes. Perfil de autoimunidade evidenciou FAN reagente 1:320, padrão nuclear pontilhado fino, porém com Anti-DNA, Anti-SM, Anti-Ro, Anti-La e Anti-RNP negativos. Fator reumatóide negativo. C3 e C4 dentro da normalidade. Hemoculturas negativas. A pesquisa de ANCA veio positiva na titulação de 1/80 com padrão perinuclear (pANCA).


O padrão de FAN nuclear pontilhado fino pode corresponder a presença de Anti-RO e Anti-LA. A similaridade desse padrão com o padrão nuclear pontilhado fino denso - visto em pacientes hígidos - torna seu significado impreciso [5].

Como o paciente já possui Anti-Ro e Anti-La negativos, além da ausência de critérios clínicos para lúpus, essa pista ajuda pouco na identificação da causa.

{Tabela7}

A presença de ANCA no sangue ocorre nas vasculites ANCA-relacionadas (ver tabela 5). O ANCA não é específico para essas doenças, podendo estar positivo também nas seguintes situações: tuberculose, endocardite infecciosa, infecção por pseudomonas, retocolite ulcerativa, lúpus e artrite reumatóide. Faltam fatores de risco e indícios clínicos no paciente do caso para esses diagnósticos diferenciais.

Na maioria das vezes, o ANCA é pesquisado por imunofluorescência. A imunofluorescência pode indicar dois padrões: perinuclear (pANCA) e citoplasmático (cANCA). O padrão pANCA está mais relacionado ao antígeno MPO, já o cANCA se relaciona com o antígeno PR3. Apesar de útil, o padrão de imunofluorescência não é tão específico. Uma vez detectado o ANCA, recomenda-se realizar um teste de ELISA para identificar para qual antígeno - MPO ou PR3 - o anticorpo está direcionado. A associação mais forte desses anticorpos é do PR3-ANCA com GPA e do MPO-ANCA com PAM.

A glomerulonefrite por anticorpo anti-MBG ainda é uma possibilidade, já que pode coexistir com as vasculites ANCA relacionadas. O complemento normal pode ocorrer tanto nas vasculites ANCA relacionadas e quanto na glomerulonefrite por anticorpo anti-MBG. A pesquisa de anti-MBG, a biópsia renal com realização de IFD e a dosagem de PR3 e MPO-ANCA vão ajudar no esclarecimento diagnóstico.

Veja o desfecho do caso

No quarto dia de internação, foi realizada a biópsia renal. A análise histológica mostrou numerosos crescentes. A IFD evidenciou depósitos lineares em alças capilares glomerulares e focalmente em paredes tubulares com a presença de IgM (+ / ++), C3c (+ / ++) e cadeias leves Kappa (+ / ++) e Lambda (+ / ++). O padrão é sugestivo de glomerulonefrite mediada por anticorpos anti-MBG. Anti-MBG e anti-MPO vieram acima do valor de referência e o anti-PR3 negativo.


A glomerulonefrite por anticorpo anti-MBG pode acometer apenas o rim, mas também pode se manifestar no pulmão como hemorragia alveolar. A presença de anti-MPO corrobora a associação de vasculite ANCA ao quadro. As duas doenças podem coexistir, no que é denominado doença duplo-positivo (ANCA e anti-MBG).

Pacientes com essa combinação das duas doenças podem ter manifestações de ambas as condições. Um quadro sistêmico inespecífico - mais visto nas vasculites - e uma LRA fulminante - típica da glomerulonefrite por anticorpo anti-MBG.

O tratamento da doença duplo-positivo é o mesmo da doença por anticorpo anti-MBG, envolvendo corticoide, ciclofosfamida e plasmaferese. Como a taxa de recuperação renal é baixa, em pacientes já em diálise, a indicação de plasmaferese é restrita àqueles com hemorragia pulmonar [6].

O paciente recebeu alta 20 dias após a internação. Permaneceu em diálise intermitente e em uso de ciclofosfamida, prednisona e profilaxia para pneumocistose.

Não saia sem saber!

Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:

  • As causas de lesão renal aguda podem ser divididas em pré-renais, intra-renais e pós-renais. As pré-renais são as que ocasionam hipofluxo sanguíneo. As pós-renais são as que atrapalham o fluxo de urina. As intra-renais são doenças do próprio parênquima renal, subdivididas em: glomerulares, tubulares, intersticiais e vasculares.
  • A síndrome nefrítica é uma síndrome glomerular causada por inflamação do glomérulo. Isso leva a hematúria, níveis variados de proteinúria (podendo chegar a níveis nefróticos) e leucocitúria. Os pacientes podem ter também hipertensão e disfunção renal. Quando a disfunção é grave, ocorrendo em dias a semanas, está caracterizada uma glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP).
  • O achado histológico típico de GNRP são os crescentes glomerulares. No material da biópsia renal, deve ser realizada imunofluorescência direta (IFD) para distinguir a causa da GNRP. Os padrões de IFD são: pauci-imune (IFD negativa, típica das vasculites), depósitos granulares (lesão por imunocomplexos, várias causas) e depósito linear (típica de doença do anticorpo anti-membrana basal glomerular).
  • O tratamento de GNRP depende da etiologia. Nem sempre é possível saber a causa rápido, sendo recomendado o tratamento empírico com pulsoterapia de corticóides. Outras terapias (ciclofosfamida, plasmaférese) podem ser acrescentadas após esclarecimento da causa.
  • A doença do anticorpo anti-membrana basal glomerular/síndrome de Goodpasture pode causar GNRP e hemorragia alveolar. É possível ocorrer a presença de vasculite ANCA associada ao mesmo tempo.
Caso Clínico #2