Caso Clínico - AIT e Doença Sistêmica
O guia também tem espaço para casos clínicos! O caso da vez foi publicado no NEJM em 21 de abril e descreve uma mulher de 41 anos com ataque isquêmico transitório e uma doença sistêmica. Vamos ver o caso e revisar os principais pontos de aprendizagem!
Resumo do caso
A paciente é uma mulher de 41 anos com antecedente de hipermenorréia em investigação e anemia secundária a esse quadro, sem história de medicações de uso contínuo. Ela vem ao hospital após início de um quadro de disartria e paralisia facial central há 1 hora. A glicemia capilar é normal e a tomografia de crânio não apresentou sinais de isquemia aguda ou sangramento, mas com pequenos infartos crônicos, localizados em região talâmica direita e hemisfério cerebelar direito.
Dentro de 45 minutos o quadro havia se resolvido e a paciente estava assintomática. Foi realizada ressonância magnética no dia seguinte, sem sinais de infartos agudos. A paciente foi diagnosticada com ataque isquêmico transitório (AIT).
Na investigação etiológica, foi realizado eletrocardiograma e angiotomografia de vasos cervicais, ambos normais. O ecocardiograma transtorácico mostrou espessamento dos folhetos e regurgitação da valva mitral. Devido a esse achado, foi programado ecocardiograma transesofágico que evidenciou imagens hiperecogênicas na valva mitral compatíveis com vegetações. Todas as hemoculturas vieram negativas.
As sorologias para HIV, HCV e HBV são negativas. O VDRL veio positivo porém com anti-treponêmico negativo. Também chamava atenção um TTPA alargado! E agora?
O que precisamos saber sobre AIT?
AIT é definido pela American Heart Association (AHA) como evento neurológico isquêmico focal de resolução rápida, com imagem que não evidencia sinais de infartos permanentes [1]. A definição temporal (sintomas que duram menos que 24 horas) não se aplica mais por esse critério. Avanços na radiologia mostraram que muitos sintomas, apesar de transitórios, ocorriam por conta de infartos detectáveis na neuroimagem. Assim, um paciente com sintoma transitório e neuroimagem com lesão isquêmica teve um AVC minor e não um AIT, por mais que o quadro tenha se resolvido completamente.
O mais importante no AIT é a busca da etiologia, no intuito de prevenir um novo evento isquêmico. Essa investigação deve ser realizada em até 48 horas do início do quadro, e contempla os seguintes exames (todos classe 1 - recomendação forte pela AHA):
- Eletrocardiograma (para buscar fibrilação atrial)
- Exames não invasivos dos vasos cervicais e cranianos, incluindo ultrassonografia, angiotomografia ou angioressonância magnética (avaliar se o paciente tem indicação de revascularização da carótida externa)
- Hemograma, coagulograma, glicose e HbA1C, creatinina e lipidograma (avaliar presença e gravidade de fatores de riscos)
Se até aqui a etiologia do AIT não estiver clara, podemos também lançar mão: (classe 2a - recomendação moderada)
- Ecocardiograma sem contraste (pesquisar trombos intracavitários) e com contraste (pesquisar Forame Oval Patente)
- Monitorização mais longa do ritmo cardíaco/Holter (pesquisa de arritmias paroxísticas)
- E aqui já podemos começar a pesquisar causas incomuns como infecções no sistema nervoso central, vasculites e estados de hipercoagulabilidade.
Como deve ser feita a abordagem da paciente?
Os múltiplos infartos cerebrais antigos apontam para uma causa cardioembólica confirmada no ecocardiograma. O foco da investigação agora deve ser achar a causa da vegetação.
Podemos dividir as causas de endocardite com culturas negativas em dois grupos: infecciosas (que não cresceram na cultura) e não infecciosas. Os microorganismos que precisam ser buscados na suspeita de endocardite infecciosa com culturas negativas estão na tabela 1.
A paciente não apresentava sinais de um processo infeccioso e possuía outros achados, como um rash fotossensível. Aumenta assim a possibilidade de endocardite não-infecciosa/endocardite trombótica não bacteriana. As principais causas dessa entidade são lúpus eritematoso sistêmico (LES), síndrome de anticorpos antifosfolípideos (SAAF) e neoplasias.
Causas de VDRL positivo com anti-treponêmico negativo
O VDRL é um marcador não específíco para sífilis, que deve ser confirmado com um teste anti-treponêmico. Quando ocorre a divergência vista na paciente, é necessário pensar em:
Causas precoces (menos de 6 meses positivo)
- Endocardite e outras causas infecciosas - veja nosso post complementar.
- Gestação
- Imunização
Causas tardias (permanece positivo)
- Lúpus Eritematoso Sistêmico e Síndrome de Anticorpos Antifosfolípideos
- Doença hepática crônica
- HIV
- Usuário de droga injetável
Desfecho do caso
Somando todos os fatores, a principal hipótese foi de SAF e/ou LES, sendo confirmada após exames específicos. A endocardite trombótica não bacteriana que ocorre nesse contexto é conhecida como endocardite de Libman-Sacks.
E porque "e/ou" no parágrafo anterior? A coexistência de SAAF e LES é um fato conhecido e, quando ocorre, a apresentação é mais grave do que comparado com essas doenças separadamente. São relatadas mais tromboses e atividade mais grave. Porém, nem toda SAAF é LES! Quando o paciente abre o diagnóstico com SAAF primária, apenas 25% desenvolve o diagnóstico de LES com o tempo.
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