Caso Clínico #3
O caso clínico abaixo é apresentado em partes. O negrito é a descrição do caso, as partes que não estão em negrito são os comentários. Ao final, você encontrará a resolução e os pontos de aprendizagem resumidos.
Homem de 71 anos vem ao pronto-socorro com tosse secretiva há 03 meses. Apresentou episódios de febre, astenia, dispneia progressiva e perda de 20kg no período.
Passou em vários serviços de saúde sendo diagnosticado com pneumonia e tratado com antibióticos. Lembra de ter usado levofloxacino e tinha melhora parcial quando iniciava os medicamentos, mas os sintomas retornavam após alguns dias. Ele traz consigo uma radiografia recente (veja figura 1).
O histórico médico inclui tabagismo de 30 anos-maço e doença renal crônica sem etiologia definida com creatinina basal de 1,5 mg/dL. Sempre morou em São Paulo e é aposentado após ter trabalhado vários anos no comércio.
Ao exame físico, estava em regular estado geral, emagrecido e taquipneico. Na ausculta pulmonar tinha murmúrios vesiculares globalmente diminuídos e saturação de oxigênio de 77%, sem outras alterações.
O paciente apresenta uma “pneumonia que não melhora". Essa situação é caracterizada por um diagnóstico presumido de pneumonia que não apresenta evolução satisfatória com terapia adequada.
Em uma pneumonia, a mediana de tempo para melhora parcial dos sintomas é de 3 a 5 dias e para melhora total de 10 a 14 dias [1-3]. Alguns sintomas podem se manter por mais tempo, como tosse e fadiga.
A resolução radiológica pode demorar mais ainda. Cerca de 30 a 50% dos pacientes mantém alterações em radiografia de tórax após 28 dias [4, 5].
Frente a uma “pneumonia que não melhora", é possível agrupar o diagnóstico diferencial em três grupos: erro diagnóstico, presença de complicação e falha de tratamento.
Erro diagnóstico
O diagnóstico de pneumonia é quase sempre presuntivo, levando em conta sintomas respiratórios (tosse, dispneia, ausculta alterada), sinais inflamatórios (febre, calafrios, leucocitose) e alteração radiográfica sugestiva. Várias doenças podem gerar um quadro clínico semelhante, especialmente no início.
Considerando a incidência de tuberculose no Brasil, esse é o primeiro diagnóstico diferencial. Perda de peso, febre e tosse crônica são os principais sintomas de tuberculose e esse diagnóstico deve ser ativamente excluído.
Outras infecções pulmonares podem se assemelhar à tuberculose, como as infecções fúngicas, com destaque para paracoccidioidomicose, criptococose e histoplasmose.
Aspergilose na forma crônica cavitária é outra possibilidade, caso o paciente já possuísse uma cavitação previamente e não soubesse. Outra apresentação de aspergilose que pode explicar o quadro é forma invasiva. Essa forma é classicamente associada a neutropenia e infecção pelo HIV, mas está sendo cada vez mais descrita em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica, especialmente em usuários de corticoides [6, 7]. Para saber mais sobre infecções fúngicas, veja "Biomarcadores de infecções fúngicas".
Nocardia e actinomyces são duas bactérias que se manifestam de maneira similar a fungos e podem explicar o quadro. Ambas fazem infiltrados alveolares homogêneos com tendência à cavitação.
As causas não infecciosas que simulam pneumonia também devem ser lembradas. No caso do paciente, destaca-se a possibilidade de neoplasia de pulmão, considerando o histórico de tabagismo. Outras doenças não infecciosas que simulam pneumonia são: granulomatose com poliangeíte (antiga granulomatose de Wegener), pneumonia em organização criptogênica (COP), pneumonia intersticial aguda e pneumopatia induzida por droga. A tabela 1 contém uma lista de causas.
Diagnóstico correto, mas erro de tratamento
Outra possibilidade é o diagnóstico de pneumonia bacteriana estar correto, mas a cobertura antimicrobiana não estar adequada.
Os principais agentes que podem escapar do tratamento habitual de pneumonia são os atípicos (Legionella, Chlamydophyla e Mycoplasma), Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa e as enterobactérias resistentes. Exemplos de enterobactérias resistentes são aquelas produtoras de enzimas que inativam antibióticos comumente utilizados, como as enzimas extended spectrum beta-lactamases (ESBLs).
Essa situação é mais comum no início do tratamento e o paciente já tem três meses de sintomas. Além disso, já recebeu levofloxacino que apresenta ampla cobertura, enfraquecendo mais essa hipótese.
Diagnóstico correto, tratamento correto, mas presença de complicação
Complicações de pneumonia bacteriana - derrame pleural, empiema e abscesso pulmonar - podem perpetuar a infecção se não forem abordados. A presença de derrame pleural na radiografia de tórax favorece essa explicação. Além disso, o curso clínico de melhora parcial com tratamento e piora em seguida é compatível com essa hipótese.
A radiografia de tórax mostra sinais sugestivos de derrame pleural à direita. Essa imagem levanta as hipóteses de tuberculose pleural, empiema bacteriano e neoplasia pulmonar com derrame pleural associado.
O paciente foi avaliado na sala de emergência e colocado em cateter de oxigênio a 4 L/min, evoluindo com melhora da saturação para 90% e alívio da taquipneia. Coletadas culturas de escarro e hemoculturas, exames laboratoriais e solicitada tomografia de tórax. Considerando a melhora importante após oxigênio suplementar, optado por não iniciar antibioticoterapia naquele momento.
Os exames laboratoriais mostraram hemoglobina 8,1 g/dL, plaquetas 598.000/mm³, creatinina de 2,0 mg/dL, proteína C reativa de 168 mg/L, sorologia para HIV não reagente.
A tomografia de tórax (veja figura 2) mostrava vários achados: enfisema difuso bilateral com formação de bolhas, cavitações em lobo superior direito, micronódulos difusos com aspecto de árvore em brotamento e coleção pleural com pleura espessada sugestiva de empiema. Nota-se comunicação entre a cavidade e a coleção pleural. Optado por realizar drenagem do espaço pleural com saída de secreção purulenta (figura 3).
Cavitação pulmonar é um espaço preenchido por gás dentro de um nódulo, massa ou consolidação, com paredes espessadas (maiores que 4 mm) [8]. Em caso de consolidação que evolui com cavitação, após o tratamento a consolidação pode se resolver, deixando apenas uma cavidade de paredes finas.
Outras lesões podem ser confundidas com cavitação, como bolhas (também presentes em nosso paciente), cistos e bronquiectasias císticas (ver figura 4). O primeiro passo é confirmar se a lesão é realmente uma cavitação.
O diagnóstico diferencial de cavitação pulmonar é extenso (ver tabela 2) e tem vários pontos em comum com os diagnósticos diferenciais de pneumonia que não melhora. Das causas infecciosas, a tuberculose comumente se apresenta com cavitação, assim como as infecções fúngicas pulmonares. Entre as bactérias típicas, a complicação de uma pneumonia comum com abscesso pulmonar é uma possibilidade.
Doenças não-infecciosas também podem cavitar como granulomatose com poliangeíte (GPA), neoplasias e embolia com infarto pulmonar.
Além da cavitação, o paciente possui um empiema, já que houve saída de pus do espaço pleural. Essa informação estreita as possibilidades diagnósticas. Não é esperado empiema associado a neoplasia e GPA. Infecções fúngicas muito raramente formam empiema [9].
Tuberculose pleural é diferente de empiema por tuberculose. A tuberculose pleural é uma manifestação comum da infecção por M. tuberculosis em que o líquido pleural é um exsudato pelos critérios de Light, mas não tem características de empiema (pus no espaço pleural). A formação de empiema por infecção primária da pleura por M. tuberculosis é rara, mas pode acontecer após uma fístula entre uma cavitação e o espaço pleural [10]. Na tuberculose pleural é difícil identificar a bactéria no líquido e a dosagem de adenosina deaminase (ADA) elevada auxilia no diagnóstico. No empiema por tuberculose é mais provável encontrar a bactéria no líquido.
Um abscesso pulmonar bacteriano pode se apresentar como empiema se a cavidade fistulizar para a pleura, um mecanismo similar ao descrito para o empiema por tuberculose.
Os resultados da análise do líquido pleural estão na tabela 3.
A pesquisa direta para fungos e bacilos álcool ácido resistentes (BAAR) e o teste rápido molecular para tuberculose (TRM-Tb) foram negativos. A dosagem de adenosina deaminase (ADA) baixa, associada aos outros achados, enfraquece a hipótese de tuberculose.
A coloração de Gram mostrou cocos gram positivos em cadeia e a cultura do líquido pleural resultou no crescimento de Streptococcus constelattus.
Posteriormente as culturas de micobactéria e fungos também tiveram resultado negativo, assim como a hemocultura, a cultura, BAAR e TRM-Tb no escarro, antigenemia para cryptococcus e sorologia para paracoccidioides.
Streptococcus constelattus, intermedius e anginosus formam um grupo de bactérias comensais da cavidade oral que quando causam infecção estão associadas a formação de abscessos. São infecções raras, mas infecção pulmonar por esses germes já foi descrita [11].
O diagnóstico final foi de provável abscesso pulmonar com fístula broncopleural levando a empiema pleural.
Caso o paciente não apresentasse empiema ou o diagnóstico não tivesse sido obtido pela punção do líquido pleural, o próximo passo seria a realização de uma broncoscopia.
Abscesso pulmonar é uma infecção do parênquima pulmonar com formação de cavitação com pus e/ou necrose. Pode surgir a partir de infecção pulmonar direta (como em pneumonia aspirativa ou pneumonia necrosante), secundário a disseminação hematogênica (endocardite de valvas direitas e tromboflebite séptica), obstrução de via aérea (por neoplasias por exemplo) ou extensão de infecções intratorácicas.
A infecção geralmente é polimicrobiana, com presença de anaeróbios e streptococcus comensais da cavidade oral [12, 13]. Staphylococcus aureus e Klebsiella pneumoniae podem causar infecção monomicrobiana. Outras causas estão listadas na tabela 4.
O tratamento inicial empírico é com antibióticos com ação contra anaeróbios e gram-positivos. Alguns exemplos são penicilinas de amplo espectro com inibidores de betalactamase (ampicilina/sulbactam, amoxicilina/clavulanato e piperacilina/tazobactam), clindamicina, moxifloxacino ou combinações como cefalosporinas e metronidazol. Em pacientes que não apresentam melhora clínica a drenagem cirúrgica do abscesso deve ser tentada. Alguns autores sugerem que cavitações com diâmetro maior que 6cm tem maior chance de falha com antibioticoterapia e a drenagem já deve ser considerada [14].
O paciente apresentou melhora clínica após drenagem de tórax e início de piperacilina/tazobactam.
Alguns pontos de aprendizagem sobre o caso que você não pode esquecer:
- As causas de pneumonia que não melhora podem ser divididas em erro diagnóstico, complicações e erro de tratamento. Erro diagnóstico é composto por outras infecções ou doenças não infecciosas que simulam pneumonia. Em complicações, a pneumonia bacteriana pode evoluir com abscesso ou empiema dificultando sua resolução. Por último, o tratamento realizado pode não ter sido adequado para o microorganismo causador.
- Existe um impulso inicial de ampliar espectro de cobertura nesses casos, mas outros diagnósticos e complicações sempre devem ser investigados.
- No Brasil, a tuberculose deve sempre ser investigada em infecções pulmonares crônicas. As micoses endêmicas, apesar de mais raras, podem simular tuberculose e devem ser cogitadas.
- As cavitações pulmonares podem se confundir com cistos, bolhas e bronquiectasias. As principais causas infecciosas são os abscessos pulmonares, a tuberculose e as micoses sistêmicas. Já as causas não infecciosas prinicipais são a artrite reumatoide, granulomatose com poliangeíte e as neoplasias.
- Tuberculose pleural e empiema por tuberculose são entidades distintas. A tuberculose pleural consiste em derrame pleural exsudativo, sem aspecto purulento, normalmente com pesquisa de BAAR negativa, cultura comumente negativa, sendo feito o diagnóstico com auxílio da dosagem de ADA ou biópsia da pleura. Já o empiema por tuberculose apresenta aspecto purulento, pesquisa de BAAR positiva e positividade de cultura, podendo estar associado a fístula broncopleural.
- Abscesso pulmonar é um infecção bacteriana que pode durar semanas a meses se não for adequadamente tratada. O tratamento consiste em antibioticoterapia com penicilinas associadas a inibidores de beta-lactamase, clindamicina, moxifloxacino ou a associação de cefalosporina com metronidazol. Caso o paciente não apresente melhora, deve ser considerado tratamento cirúrgico. Alguns autores recomendam tratamento cirúrgico com cavidades maiores que 6 cm de diâmetro.
Aproveite e leia:
Biomarcadores de infecções fúngicas
Em julho de 2022 foi publicada uma revisão sobre biomarcadores não-invasivos de infecções fúngicas no Open Forum of Infectious Disease (OFID). Biomarcadores são exames não dependentes de cultura e não-invasivos que não utilizam biópsia ou lavado broncoalveolar como forma de obter a amostra. A revisão engloba várias infecções, mas separamos aqui em dois grupos. As infecções fúngicas mais “comuns”: candidíase invasiva, aspergilose em sua forma invasiva e criptococose; e micoses endêmicas no Brasil: histoplasmose, paracoccidioidomicose e esporotricose.