Síndromes e Cenários

Hipotireoidismo Subclínico

Criado em: 18 de Novembro de 2024 Autor: Raphael Coelho Revisor: João Mendes Vasconcelos

O hipotireoidismo subclínico está presente em cerca de 10% dos adultos e está relacionado com aumento do risco cardiovascular [1]. O manejo adequado depende da idade do paciente e valores de TSH, além de outras características. Este tópico aborda o diagnóstico e o manejo dessa condição.

Definição e diagnóstico diferencial

Hipotireoidismo subclínico é um diagnóstico laboratorial caracterizado por TSH elevado e T4 livre normal. O hipotireoidismo franco/manifesto é definido por TSH elevado e T4 livre reduzido, com ou sem a presença de sintomas [1-3]. Uma outra tradução possível de hipotireodismo franco é “hipotireoidismo clínico”, porém esse termo pode causar confusão já que as definições de hipotireoidismo subclínico e hipotireoidismo franco são laboratoriais.

O hipotireoidismo pode ocorrer por doença da tireoide (hipotireoidismo primário) ou por falta de estímulo dos hormônios centrais (hipotireoidismo central). A tabela 1 mostra o perfil laboratorial dos tipos de hipotireoidismo.

Tabela 1
Valores de referência e diagnóstico do hipotireoidismo
Valores de referência e diagnóstico do hipotireoidismo

Os valores de TSH devem ser confirmados com uma nova dosagem em três meses ou em um intervalo menor se TSH > 15 mU/L.

Uma disfunção leve da tireoide pode resultar em TSH elevado com T4 livre normal, porém outras situações também podem causar esses achados laboratoriais, como:

  • Variação fisiológica transitória do TSH
  • Envelhecimento
  • Obesidade grave
  • Falso positivo laboratorial

A disfunção leve está presente em fases iniciais da tireoidite de Hashimoto, após lobectomia ou radioterapia, em doenças infiltrativas ou granulomatosas e por uso de drogas que interferem na função da tireoide.

Elevações transitórias do TSH podem ocorrer após a recuperação de doenças graves ou episódios de tireoidite que se resolveram. Para saber mais sobre a análise da função da tireoide em pacientes hospitalizados, veja "Eutireoideo Doente e Função Tireoidiana no Paciente Hospitalizado". 

Os níveis de TSH aumentam com o envelhecimento. Para idosos com idade maior que 60 anos, uma diretriz francesa sugere ajuste do limite superior de referência dividindo a idade por 10. Por exemplo, pacientes com 80 anos teriam o limite superior de 8 mU/L [4].

Progressão e possíveis impactos

O hipotireoidismo subclínico está associado ao aumento do risco cardiovascular. Metanálises encontraram que TSH acima de 7 mU/L foi associado a aumento do risco de AVC e mortalidade por doença coronariana e TSH > 10 mU/L, a maior risco de insuficiência cardíaca e infarto agudo do miocárdio [1,5,6].

A prevalência de hipotireoidismo subclínico é de 5 a 10% na população geral. Um quarto desses pacientes tem TSH acima de 10 mU/L [7,8]. A progressão estimada para hipotireoidismo franco é de 2 a 6% ao ano. Fatores que aumentam a chance de progressão são:

  • TSH > 10 mU/L
  • Positividade do anticorpo anti-tireoperoxidase (anti-TPO)
  • Sexo feminino
  • T4L próximo ao limite inferior de referência [1,7,9,10]

Um TSH elevado pode normalizar espontaneamente com o tempo, especialmente se em níveis mais baixos. Um estudo retrospectivo avaliou mais de 300.000 pacientes com TSH elevado sem história de doença tireoidiana prévia e encontrou que o TSH se normalizou dentro de 5 anos em 62% dos pacientes com TSH entre 5,5 e 10 mU/L e em 27% dos pacientes com TSH > 10 mU/L [11].

Há dúvidas se o hipotireoidismo subclínico causa sintomas. Em idosos, não há associação com alterações cognitivas, depressão, pior qualidade de vida ou alterações metabólicas. Contraintuitivamente, o risco cardiovascular parece reduzir em pacientes idosos com hipotireoidismo subclínico, principalmente a partir dos 85 anos [4,12-14].

Recomendações para o tratamento

Há poucas evidências sobre o tratamento a longo prazo do hipotireoidismo subclínico. Em metanálise de 21 ensaios clínicos randomizados, o tratamento não melhorou desfechos em sintomas ou qualidade de vida para valores de TSH de até 12 mU/L [15].

O maior estudo sobre o hipotireoidismo subclínico foi o TRUST Trial, um ensaio clínico randomizado, controlado e cegado, em indivíduos com mais de 65 anos. A amostra incluiu mais de 700 pessoas com média de idade de 74 anos, randomizadas em dois grupos - reposição com levotiroxina ou uso de placebo. Após mais de um ano de acompanhamento, não houve diferença significativa em desfechos relacionados à qualidade de vida, funcionalidade, sintomas, cognição, fragilidade, depressão e sarcopenia. Os resultados não podem ser estendidos para pacientes com TSH > 10 mU/L, porque houve pouca representação dessa população. O estudo não teve poder para chegar a conclusões sobre desfechos cardiovasculares e mortalidade e não avaliou desfechos de longo prazo [16-18].

O tratamento de hipotireoidismo subclínico está indicado para pacientes jovens com TSH > 10 mU/L ou com sintomas atribuídos ao hipotireoidismo. Idosos com TSH < 10 mU/L não têm indicação de tratamento. Para idosos com TSH entre 10 e 20 mU/L é necessário considerar a presença de sintomas e os riscos da reposição de levotiroxina (fluxograma 1) [2,4,19,20].

Fluxograma 1
Manejo do hipotireoidismo subclínico
Manejo do hipotireoidismo subclínico

Os riscos do tratamento incluem fibrilação atrial, osteoporose, fraturas e uso de doses excessivas de levotiroxina. Um estudo de coorte identificou que 40% dos idosos que utilizavam levotiroxina estavam com o TSH em valores menores do que o da referência, ou seja, foram submetidos a tratamento excessivo [21].

A diretriz britânica de 2018 publicada no British Medical Journal (BMJ) foi fortemente contra o tratamento do hipotireoidismo subclínico. Essa recomendação não se aplica a pacientes com TSH > 20 mU/L ou mulheres que estão tentando engravidar. Em pacientes com sintomas significativos atribuídos ao hipotireoidismo ou com idade ≤ 30 anos, a decisão de repor hormônios deve ser individualizada [3].

A Society for Endocrinology e a British Thyroid Association publicaram críticas à essa diretriz. Essas organizações argumentam que a recomendação vem de extrapolação de estudos em idosos com poucos sintomas e que TSH de 20 mU/L como gatilho para tratamento está acima do que foi avaliado nos trabalhos. Como resposta, os autores do BMJ destacam que são necessárias evidências de benefício para a indicação de um tratamento, e não o contrário. 

Quando há indicação de tratamento, o objetivo é normalizar o TSH. A levotiroxina (T4) é o medicamento de escolha. Doses de 25 a 75 mcg/dia costumam ser suficientes. A liotironina (T3) não é recomendada. O monitoramento do TSH nos pacientes não tratados deve acontecer anualmente quando houver suspeita de doença tireoidiana ou anti-TPO positivo e a cada dois a três anos nos demais casos [1,4,7,22].

Para mulheres que vão fazer reprodução assistida, há recomendação forte com moderada qualidade de evidência para tratamento com levotiroxina para meta de TSH < 2,5 mU/L [23].

Nas gestantes, são utilizadas tabelas de referências com TSH ajustado e, se não disponíveis, TSH > 4 mU/L pode ser considerado elevado. Segundo a American Thyroid Association, há recomendação forte para tratar gestantes com TSH > 10 mU/L ou valores acima da referência em combinação com anti-TPO positivo. Há recomendação fraca de tratamento para todas as gestantes com valores acima do limite superior da referência ou com TSH > 2,5 mU/L e anti-TPO positivo [23].

Em Tempo

Atualização sobre a Nova Diretriz de Fibrilação Atrial da ESC 2024

Criado em: 18 de Novembro de 2024 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno Revisor: João Mendes Vasconcelos

O Congresso Europeu de Cardiologia, realizado em setembro de 2024, apresentou uma nova diretriz de fibrilação atrial, atualizando as recomendações previamente publicadas em 2020 [1]. Este tópico comenta as principais novidades do documento.

Este tópico é uma atualização sobre o manejo da fibrilação atrial. Para mais informações sobre o assunto, confira a revisão "Fibrilação Atrial" e os tópicos "Fibrilação Atrial Durante Hospitalização" e "Controle Farmacológico de Frequência Cardíaca na Fibrilação Atrial".

Comorbidades

A nova diretriz de fibrilação atrial (FA) da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC, de European Society of Cardiology) reforça a necessidade do controle das doenças concomitantes à arritmia (recomendação forte). Entre essas condições, estão a obesidade, síndrome da apneia do sono, hipertensão, insuficiência cardíaca, diabetes mellitus e transtorno do uso do álcool. 

Para isso, a diretriz criou o mnemônico CARE, para orientar o acompanhamento e tratamento da FA:

  • C - Comorbidades: tratamento de comorbidades e fatores de risco impactam nos desfechos da FA.
  • A - Anticoagulação: decidir se o paciente é alto risco para eventos tromboembólicos e o medicamento mais apropriado.
  • R - Reduzir sintomas: introdução de medicamentos para evitar sintomas relacionados à FA como palpitação. Avaliar a necessidade de procedimentos invasivos, como ablação.
  • E de Evaluation - "Avaliação" Periódica: reavaliar frequentemente se o paciente está controlando a FA, se há novos fatores de riscos ou comorbidades a serem abordadas e utilizar estratégias para reduzir riscos modificáveis de sangramento.

Novidades sobre anticoagulação

Uma novidade é a atualização do escore para classificar os pacientes com FA como de alto risco para eventos tromboembólicos. O CHA₂DS₂-VASc foi substituído pelo CHA₂DS₂-VA (ver tabela 1). A pontuação conferida pelo sexo feminino foi retirada. Essa mudança ocorreu por dois motivos: falta de impacto clínico dessa variável, pois essa pontuação era ignorada no momento de definir a anticoagulação, e não inclusão de pessoas não-binárias, transgêneras ou recebendo terapia hormonal.

Tabela 1
Escore CHA₂DS₂-VA
Escore CHA₂DS₂-VA

O escore atual CHA₂DS₂-VA não inclui gênero e a diretriz define que é recomendado a anticoagulação em pacientes que pontuam pelo menos 2 pontos. A anticoagulação em pacientes que pontuam 1 ponto pode ser considerada e a decisão deve ser compartilhada e avaliada caso a caso. 

Outra mudança da diretriz foi o corte de tempo para cardioversão de FA aguda sem sinais de instabilidade. A diretriz recomenda que a cardioversão pode ser feita na FA aguda estável se o paciente apresentar um episódio novo de FA em menos de 24 horas. Na diretriz de 2020, o corte era de menos de 48 horas. Caso o paciente tenha a FA aguda por mais de 24 horas, é necessário excluir trombo no átrio esquerdo com um ecocardiograma transesofágico ou decidir pela anticoagulação por 3 semanas antes da cardioversão. 

Tabela 2
Uso de anticoagulantes e possíveis interações medicamentosas
Uso de anticoagulantes e possíveis interações medicamentosas

A diretriz também traz foco para as possíveis interações medicamentosas que possam diminuir a eficácia dos anticoagulantes em uso. A tabela 2 resume essas informações.

Em Tempo

Atualização sobre Profilaxia Pré-exposição (PrEP) Semestral para HIV

Criado em: 18 de Novembro de 2024 Autor: Frederico Amorim Marcelino Revisor: João Mendes Vasconcelos

O lenacapavir é um antirretroviral subcutâneo semestral e foi testado como profilaxia pré-exposição para mulheres cis no estudo PURPOSE, publicado em julho de 2024 no New England Journal of Medicine. Esse tópico aborda as indicações para uso e os pontos principais do estudo [1].

Este tópico é uma atualização sobre os medicamentos disponíveis para profilaxia pré-exposição para infecção pelo vírus HIV. Para mais detalhes sobre o assunto, consulte o tópico "PrEP e PEP - Profilaxia Medicamentosa para Infecções Sexualmente Transmissíveis".

Antirretrovirais parenterais e PrEP para mulheres

A profilaxia pré-exposição (PrEP) para HIV é uma estratégia de prevenção bem estabelecida para homens que fazem sexo com homens e mulheres trans [2]. O esquema de tratamento mais utilizado atualmente é a combinação de entricitabina e tenofovir por via oral e está disponível no SUS e em farmácias [3].

Estudos de PrEP oral em mulheres cis não demonstraram os mesmos níveis de proteção das outras populações. Uma possível causa dessa diferença é a dificuldade na adesão, identificada em estudos que faziam dosagem sérica das drogas [4].

Nos últimos anos, surgiram antirretrovirais parenterais de longa duração que facilitam a adesão. Um deles é o cabotegravir, da classe dos inibidores de protease, como o dolutegravir, que foi estudado tanto para tratamento de HIV quanto para PrEP [5]. É aplicado de forma intramuscular a cada dois meses e já foi aprovado pela ANVISA, mas ainda não está disponível pelo SUS. O lenacapavir é outro antirretroviral parenteral, subcutâneo e de aplicação a cada seis meses. Faz parte de uma nova classe de antirretrovirais chamada de inibidor de capsídeo, já testada para tratamento de pessoas infectadas por HIV, com resultados importantes na redução da carga viral em casos multidroga resistentes [6]. O lenacapavir ainda não foi avaliado pela ANVISA.

Considerando a baixa adesão da PrEP oral em mulheres cis como fator para o desempenho inferior nessa população, o lenacapavir foi testado com esse intuito nessa população.

O estudo PURPOSE

O estudo foi duplo cego, randomizado, controlado e incluiu 5338 mulheres jovens e adolescentes da África do Sul e Uganda. As pacientes foram randomizadas em três grupos: lenacapavir; entricitabina com tenofovir desoproxila (TDF); e entricitabina com tenofovir alafenamida (TAF). O desfecho primário foi incidência de HIV. Os pacientes foram acompanhados por dois anos.

No grupo lenacapavir, composto de 2134 participantes, nenhuma infecção por HIV foi detectada. No grupo entricitabina com tenofovir desoproxila (TDF), 16 pacientes dentre 1068 se infectaram, com incidência de 2,02 a cada 100 pessoas-ano. Já no grupo entricitabina com tenofovir alafenamida (TAF), 39 dentre 2136 se infectaram, com incidência de 1,69 a cada 100 pessoas-ano. Esses valores são semelhantes à incidência de HIV na população estudada, estimada em 2,41 pessoas-ano. 

Os efeitos adversos foram similares entre os dois grupos, mas no grupo lenacapavir houve maior taxa de reações locais associados à injeção comparada ao placebo (68,8% vs 34,9%).

Dois pontos destacam-se no estudo. Primeiro, a eficácia de um medicamento de longa duração subcutânea para PrEP, uma vantagem em relação à PrEP oral diária com relação à adesão. Em relação ao cabotegravir, também parenteral, o lenacapavir tem um benefício de tempo (seis meses contra dois meses) e de via (subcutânea contra intramuscular). Um segundo ponto é a capacidade de prevenir infecções em um grupo cuja eficácia da PrEP oral é inconsistente.

Crise Álgica na Anemia Falciforme

Criado em: 18 de Novembro de 2024 Autor: Amyr Chacar Revisor: João Mendes Vasconcelos

A crise álgica é a principal causa de hospitalização em pacientes com anemia falciforme [1]. A hidratação é um componente do tratamento e um estudo publicado o Journal of American Medical Association em setembro de 2024 avaliou o melhor fluido nesse contexto [2]. Esse tópico aborda o manejo da crise álgica e as implicações deste novo estudo.

Crise álgica na anemia falciforme

A crise álgica é uma manifestação aguda da anemia falciforme caracterizada por episódios de dor intensa. A obstrução dos vasos sanguíneos por hemácias falciformes é o evento final que causa esses episódios, sendo por isso também chamados de crises vaso-oclusivas. O mecanismo das crises é complexo e envolve interações de adesão entre as hemácias falcizadas e o endotélio vascular, causando inflamação e isquemia tecidual [3]. A figura 1 ilustra o processo.

Figura 1
Fisiopatologia da crise vaso-oclusiva
Fisiopatologia da crise vaso-oclusiva

As crises álgicas se manifestam como episódios de dor intensa e aguda em diferentes topografias do corpo. Elas podem variar em intensidade e duração, persistindo por até sete dias. Afetam preferencialmente a região lombar, quadris, joelhos, tórax e abdome [4, 5]. Em crianças, a dactilite (dor e/ou inchaço dos dedos das mãos e pés) costuma ser a primeira manifestação da doença [6].

Alguns desencadeantes comuns de crises álgicas são:

  • Frio
  • Dor
  • Febre
  • Desidratação
  • Hipoxemia
  • Infecções
  • Trauma

Os episódios recorrentes de dor causam prejuízo funcional, múltiplas procuras aos serviços de emergência e necessidade de altas doses de analgésicos, incluindo opioides. Isso gera estigmas inclusive entre profissionais da saúde, atrasando a terapia adequada e intensificando a dor [7-9]. Cerca de 10 a 20% dos pacientes hospitalizados com anemia falciforme desenvolvem síndrome torácicas agudas, habitualmente um a três dias após a admissão por uma crise álgica. O atraso no manejo adequado das crises pode resultar em eventos de insuficiência respiratória e morte [10,11].

O padrão ouro para avaliação da dor é o próprio relato do paciente ou familiar. Nenhum exame complementar é capaz de descartar uma crise álgica. Pacientes podem apresentar crises mesmo sem alterações nos valores de hemoglobina. Exames laboratoriais podem ser úteis no diagnóstico diferencial de outras complicações da anemia falciforme e de desencadeadores da crise álgica, como infecções [12].

Tratamento padrão

O tratamento das crises álgicas é a analgesia rápida e adequada. Os pacientes com anemia falciforme devem possuir um plano de ação para os episódios de dor e na refratariedade devem ser orientados a buscar o pronto-socorro. Neste cenário, o atendimento é prioritário, com a meta da primeira dose de analgésicos em até 30 a 60 minutos da chegada ao serviço de saúde [13,14]. 

Os opioides são os fármacos de escolha e a via preferencial é a intravenosa. A dose inicial recomendada de morfina é de 0,1 a 0,15 mg/kg. Na indisponibilidade de acesso venoso, pode ser utilizada a via subcutânea ou intranasal. Reavaliações precoces e seriadas associadas a doses de resgate devem ser feitas até o controle álgico apropriado. Dispositivos de autoaplicação de analgésicos podem ser oferecidos para maior conforto caso haja disponibilidade [13,15].

Analgésicos simples como dipirona são recomendados em associação com os opioides. Anti-inflamatórios podem ser considerados com cautela, afastadas contraindicações como doença renal, hipovolemia, doença ulcerosa péptica e doenças cardiovasculares. Alguns trabalhos encontraram que a adição de AINE ao tratamento com opioides não reduziu a dose de opioides ou duração da crise álgica, questionando o uso rotineiro [16,17].

Alguns serviços utilizam anti-histamínicos nas crises, contudo não há evidência de benefício em desfechos clínicos para essa conduta. Algumas referências trazem essa opção baseando-se em argumentos fisiopatológicos, tendo em vista altas taxas de liberação de histamina durante as crises [18]. A difenidramina é útil para controlar o prurido induzido por opioides, porém provoca sonolência e pode simular sinais de intoxicação por opioides. Caso seja necessário utilizar antihistamínicos, deve-se preferir os não sedativos de segunda geração, como a loratadina e a cetirizina [19,20].

A quetamina pode ser utilizada em dores refratárias [21,22]. A droga deve ser realizada em ambiente monitorizado. A tabela 1 traz as doses recomendadas dos medicamentos analgésicos no manejo da crise álgica.

Tabela 1
Doses dos principais medicamentos utilizados no tratamento da crise álgica
Doses dos principais medicamentos utilizados no tratamento da crise álgica

Caso ocorra hipoxemia durante uma crise álgica, deve-se suplementar oxigênio e avaliar a presença de síndrome torácica aguda, tromboembolismo pulmonar e infecções pulmonares. O alvo de saturação diverge na literatura. Algumas sociedades utilizam o corte de saturação de 95% enquanto alguns especialistas somente indicam oxigenoterapia na queda de 4% da saturação basal do paciente [14].

Espirometria de incentivo a fim de prevenir síndrome torácica aguda e profilaxia para tromboembolismo pulmonar também devem ser instituídos. Laxativos são frequentemente necessários pela constipação induzida por opioides [22,23]. O uso rotineiro de transfusões ou corticoides não é recomendado a menos que existam outras indicações específicas.

Fluxograma 1
Manejo da crise vaso-oclusiva
Manejo da crise vaso-oclusiva

O fluxograma 1 sistematiza o manejo da crise álgica por anemia falciforme.

O que o estudo acrescentou

Os pacientes em crise álgica frequentemente estão hipovolêmicos por perdas insensíveis, redução da ingesta e hipostenúria. Embora no passado o uso liberal de fluidos intravenosos fosse incentivado, estudos mais recentes indicam que essa prática está associada a complicações como congestão pulmonar e aumento do tempo de hospitalização. Atualmente, parece existir benefício na administração de fluidos por via parenteral somente em cenários de hipovolemia [24-27]. 

Existem dúvidas quanto à solução de escolha no manejo das crises vaso-oclusivas. O cloreto de sódio 0,9% (soro fisiológico) em estudos in-vitro é associado ao aumento da falcização das hemácias por aparente desidratação celular e diminuição do pH sanguíneo pela sobrecarga de cloro [28]. Baseado nisso, um estudo retrospectivo observacional publicado no JAMA Internal Medicine analisou cerca de 55.000 pacientes hospitalizados por crises álgicas, comparando o uso de soluções balanceadas (ringer lactato) contra cloreto de sódio 0,9% no primeiro dia de internação [2]. 

O estudo foi multicêntrico e observacional, utilizando uma estratégia de simulação de ensaios clínicos randomizados para otimização de custos. O desfecho primário analisado foi o número de dias livres de hospitalizações até 30 dias após a admissão do paciente nos prontos socorros

Os resultados evidenciaram uma diferença estatística favorecendo o grupo que utilizou ringer lactato (diferença média de dias livres de hospitalização 0,4; intervalo de confiança 0,1 a 0,6 dias). O grupo com ringer lactato também obteve menor tempo de estadia hospitalar, menor uso de opioides e menor taxa de readmissão.

O trabalho evidencia um pequeno benefício do uso de soluções balanceadas no manejo de crises álgicas. No entanto, o significado clínico é questionável, uma vez que a diferença foi sutil em todos os resultados avaliados. Isso é reforçado pelo fato de não haver diferença em mortalidade ou outros desfechos clínicos relevantes. Esses achados podem ter sido fruto da metodologia empregada pelos pesquisadores, e futuros estudos prospectivos podem trazer luz quanto à decisão do fluido ideal para esse cenário [29].