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Atualização de Asma: GINA 2024

Criado em: 09 de Dezembro de 2024 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno Revisor: João Mendes Vasconcelos

Anualmente é publicada a diretriz do Global Initiative for Asthma (GINA), um programa internacional sobre prevenção, diagnóstico e tratamento do paciente com asma. O GINA 2023 foi coberto no Guia em uma revisão que pode ser conferida em "Asma - GINA 2023". Este tópico traz as atualizações do GINA 2024 [1].

Diagnóstico de asma

O diagnóstico de asma é feito com um quadro clínico compatível associado à evidência de obstrução variável de fluxo aéreo. Os sintomas principais são dispneia, opressão torácica, tosse e sibilância. Tanto os sintomas quanto a obstrução ao fluxo de ar podem variar com o tempo. Essas variações podem ser desencadeadas por exercícios, alérgenos, mudanças na temperatura e infecções respiratórias.

Os sintomas de asma não são específicos. Para maior certeza diagnóstica, a diretriz recomenda que todos os pacientes realizem um teste para detecção de obstrução variável do fluxo de ar. O exame deve ser realizado preferencialmente antes do início do corticoide inalatório, pois a medicação pode normalizar a prova broncodilatadora.

A evidência de obstrução variável ao fluxo de ar é feita com a espirometria, analisando se houve ou não resposta ao broncodilatador. É considerado resposta ao broncodilatador um aumento do VEF1 ou da CVF de 12% e 200 ml em relação ao valor inicial [2]. A American Thoracic Society (ATS) e a European Respiratory Society (ERS) já haviam acrescentado o CVF no critério diagnóstico, porém consideram como significativa uma variação de 10% comparando com os valores preditos e não em relação aos valores pré-broncodilatador [3]. O GINA afirma que irá fazer essa mudança de corte quando mais dados sobre mudança de desfechos forem publicados.

O GINA 2024 reconhece que muitos locais não têm acesso à espirometria em tempo hábil. Uma alternativa para esse cenário é a avaliação do pico de fluxo expiratório (PFE, também conhecido como peak flow). A resposta ao broncodilatador é detectada através de um incremento no PFE de 20% do basal. A medida deve ser feita 10 a 15 minutos depois da aplicação de 200 a 400 mcg de salbutamol.

Outra maneira de detectar que existe uma variabilidade na obstrução ao fluxo de ar é por medidas seriadas do PFE. O paciente é orientado a medir duas vezes por dia durante duas semanas. O resultado é positivo se ocorrer uma variação média maior que 10% durante o dia. 

Tabela 1
Como realizar o diagnóstico de asma
Como realizar o diagnóstico de asma

Outras maneiras de realizar o diagnóstico de asma estão na tabela 1

Asma variante tosse

Tosse pode ser o único sintoma da asma. Esse fenótipo é denominado de asma variante tosse. A espirometria geralmente é normal, demonstrando variabilidade de obstrução ao fluxo de ar apenas em testes provocatórios.

Diagnosticar asma variante tosse é difícil, pois existem muitos diagnósticos diferenciais e poucos dados clínicos para compor o diagnóstico. Outras situações podem se apresentar isoladamente como tosse subaguda (> 3 semanas) ou crônica (> 8 semanas) com radiografia sem achados relevantes: 

  • Síndrome da tosse de via aérea superior por gotejamento posterior
  • Tosse induzida por medicamentos
  • Doença do refluxo gastroesofágico
  • Sinusite crônica
  • Tosse pós-infecciosa
  • Obstrução laríngea induzível
  • Bronquite eosinofílica (também chamada de bronquite eosinofílica não-asmática)

A asma variante tosse e a síndrome da tosse de via aérea superior são as causas de tosse crônica mais comuns, ficando na frente de doença do refluxo e tosse pós-infecciosa ([4]. 

Dois outros exames podem auxiliar no diagnóstico de asma variante tosse: a contagem de eosinófilos na análise de escarro e o aumento da fração expirada de óxido nítrico (FeNO)

A bronquite eosinofílica (também chamada de bronquite eosinofílica não-asmática) é uma doença que se apresenta como tosse crônica, espirometria normal, aumento de eosinófilos no escarro e aumento de FeNO [5]. Ela é um dos principais diagnósticos diferenciais na asma variante tosse, diferenciando-se pela ausência de hiperresponsividade da via aérea. A maneira de diferenciar asma de bronquite eosinofílica é através dos testes de variabilidade ao fluxo de ar e de hiperresponsividade da via aérea, principalmente o teste de broncoprovocação [6,7]. Ambas as condições respondem à corticoide, porém não há recomendação de broncodilatadores na bronquite eosinofílica.

Se o paciente não utilizar corticoide inalatório, 30 a 40% dos pacientes com asma variante tosse migram para o fenótipo de asma comum, com sibilância e alteração na espirometria [8]. O tratamento é similar à asma.

Mudança no tratamento inicial

O tratamento da asma pode seguir por duas vias. A via preferencial envolve o uso de formoterol, enquanto a via alternativa não utiliza formoterol. Os dois caminhos são divididos em níveis que representam escalonamento da terapia, também conhecidos como steps (do inglês, degraus) (fluxograma 1).

Fluxograma 1
Como iniciar o tratamento de asma
Como iniciar o tratamento de asma

Uma mudança do GINA 2024 foi na via do formoterol, em relação aos critérios para se iniciar o tratamento já no Step 3. Nesse cenário, inicia-se a terapia com a estratégia MART (maintenance-and-reliever therapy). Na MART, o tratamento de manutenção e o de alívio são realizados com corticoide inalatório e formoterol em dose baixa.

O GINA sugere iniciar o tratamento da asma pelo Step 3 em pacientes com as seguintes características:

  • Sintomas na maioria dos dias
  • Tabagismo atual
  • Baixa capacidade pulmonar (como VEF1 < 60% do predito)
  • Exacerbação grave recente ou histórico de exacerbações ameaçadora à vida
  • Percepção prejudicada de broncoconstrição (por exemplo, baixa função pulmonar inicial, mas poucos sintomas)
  • Hiperresponsividade grave das vias aéreas [9
  • Exposição atual a um gatilho alérgico

Na via alternativa, houve uma mudança para se iniciar no Step 1 (apenas terapia de resgate) ou no Step 2 (uso de corticoide inalatório contínuo em baixa dose com resgate). Antes se iniciava a terapia no Step 2 em pacientes que apresentavam sintomas de asma mais de duas vezes por mês. A diretriz modificou a recomendação para mais de duas vezes na semana. Essa mudança ocorre porque o paciente anterior tinha poucos sintomas ao mês, e por isso teria dificuldade de adesão a um medicamento diário.

Consenso de Emergências Hiperglicêmicas

Criado em: 09 de Dezembro de 2024 Autor: Letícia Dal Moro Angoleri Revisor: João Mendes Vasconcelos

Um novo consenso internacional de emergências hiperglicêmicas foi publicado em agosto do 2024 pela American Diabetes Association (ADA), European Association for the Study of Diabetes (EASD), American Association of Clinical Endocrinology (AACE) e outras sociedades [1]. Publicado originalmente em 2001 e atualizado pela última vez em 2009, o documento agora incorpora os avanços mais recentes para o manejo dessas condições. Este tópico revisa aspectos práticos no diagnóstico e manejo da cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar.

A fisiopatologia das crises hiperglicêmicas, fatores desencadeantes e critérios de sobreposição entre cetoacidose e estado hiperosmolar pode ser conferida no tópico "Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar e Outras Complicações Agudas do Diabetes".

Diagnóstico de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar

Cetoacidose diabética (CAD) e estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH) possuem critérios diagnósticos bem definidos segundo o último consenso da ADA [1] (tabela 1). Para estabelecer o diagnóstico dessas condições, todos os critérios elencados devem estar presentes.

Tabela 1
Critérios diagnósticos de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar
Critérios diagnósticos de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar

A presença de corpos cetônicos pode ser identificada no sangue ou na urina. A mensuração pode ser feita por análises semiquantitativas do ácido acetoacético ou pela avaliação direta da presença de beta-hidroxibutirato, sendo este último o principal cetoácido produzido durante a CAD. A aferição de beta-hidroxibutirato no sangue é mais sensível e específica do que a de ácido acetoacético, elevando-se mais precocemente e mensurando de maneira mais fidedigna o grau de cetonemia [2]. Uma opção muito utilizada na prática é a avaliação do ácido acetoacético na urina por meio de tiras reagentes que graduam a cetonúria em cruzes. No entanto, essa medida pode estar alterada mesmo em pessoas sadias, pelas limitações do método que pode sofrer influência de medicações ou da análise laboratorial [3]. 

A elevação do ânion gap não é considerada um critério diagnóstico segundo o consenso. Cerca de um terço dos pacientes com CAD apresentam distúrbios ácido-básicos mistos, o que pode confundir a avaliação da gasometria desses pacientes. O motivo mais comum é a associação de uma alcalose metabólica devido à depleção de volume secundária às náuseas e vômitos e uma alcalose respiratória compensatória [4]. Para mais detalhes sobre a abordagem de distúrbios ácido-básicos mistos, confira o "Caso Clínico #21".

Outra novidade é a inclusão da história de diabetes mellitus (DM) como critério diagnóstico. Caso o paciente tenha histórico de DM, não é necessário glicemia elevada para o diagnóstico. Essa mudança visa incluir os casos de cetoacidose euglicêmica, que aumentaram em proporção nos últimos anos [5,6].

Manejo de cetoacidose diabética e estado hiperglicêmico hiperosmolar

O manejo das emergências hiperglicêmicas inclui a reposição de volume e eletrólitos, correção da hiperglicemia e identificação de causas da descompensação [5]. O fluxograma 1 traz os principais eixos do manejo de CAD e EHH.

Fluxograma 1
Manejo inicial das emergências hiperglicêmicas
Manejo inicial das emergências hiperglicêmicas

A reposição de fluidos intravenosos (IV) pode ser feita com soro fisiológico ou soluções balanceadas, priorizando a solução mais disponível para não atrasar a hidratação do paciente. O consenso recomenda soluções balanceadas, principalmente se grandes volumes forem utilizados, pelo risco de acidose hiperclorêmica e aumento do tempo de resolução da CAD [7,8].

A recomendação do documento é de 500 a 1000 mL de fluido nas primeiras 2 a 4 horas. Esse volume deve ser utilizado com cautela em pacientes com disfunção renal ou cardíaca, gestantes ou idosos [1]. Após essa expansão inicial, a escolha da solução e do volume subsequentes vai depender da perfusão do paciente, variação do sódio e osmolaridade.

No EHH, a hiperglicemia tende a demorar mais a resolver, de 8 a 10 horas. A glicemia deve reduzir em velocidade menor que 90 a 120 mg/dL/h, para reduzir o risco de edema cerebral. Pelo mesmo motivo, a redução da natremia não deve exceder 10 mmol/l em 24 horas e a taxa de queda da osmolaridade não deve ser maior que 3,0 a 8,0 mOsm/kg/h. Soluções hipotônicas devem ser utilizadas apenas se a osmolaridade não reduzir com o tratamento inicial [9].

A maioria dos pacientes com CAD inicialmente apresenta potássio sérico normal ou elevado, apesar do déficit corporal total. Ao longo do tratamento, a maioria evolui com queda desse eletrólito [10]. Uma coorte de 2019 [11] mostrou que pacientes com hipocalemia grave (< 2,5 mEq/L) tiveram maior mortalidade mesmo após ajuste para confundidores. O potássio sérico deve ser medido antes do início da insulina e, a partir disso, três condutas são possíveis

  • Se potássio < 3,5 mEq/L, a insulina não deve ser iniciada e o eletrólito deve ser reposto a níveis acima de 3,5 mEq/L;
  • Se potássio entre 3,5 e 5,0 mEq/L, a infusão de volume deve ser acompanhada de infusão de KCl 19,1% a 10-30 mEq/h, enquanto o K estiver abaixo de 5,0 mEq/L; 
  • Se potássio sérico > 5,0 mEq/L, não infundir potássio e a insulina deve seguir sendo administrada.

Durante o tratamento da CAD, o potássio deve ser medido em gasometria a cada 1 a 4 horas, a depender dos níveis séricos. 

Na CAD com potássio > 3,5 mEq/L, o início de insulina intravenosa deve ser imediato [1]. A taxa de infusão deve ser de 0,1 U/kg/h ou conforme protocolo institucional. A diretriz brasileira traz como alvo a queda da glicemia de 50 a 70 mg/dL/h, já o consenso de 2024 não traz isso como um dos objetivos do tratamento. A infusão de bolus inicial de insulina não é superior ao início de infusão contínua, sendo o bolus recomendado apenas se não houver disponibilidade de iniciar a infusão imediatamente.

O consenso ressalta a possibilidade de administração de insulina basal (0,15-0,3 U/kg via SC) simultaneamente à infusão contínua de insulina regular. O uso dessa estratégia reduz tempo de resolução da CAD, de infusão de insulina e de internação hospitalar, além de prevenir hiperglicemias de rebote, sem aumento do risco de hipoglicemias [12,13].

Em pacientes com CAD, a hiperglicemia chega geralmente a valores menores que 250 mg/dL em 4 a 8 horas, habitualmente antes da resolução da acidose. Por isso, a recomendação é adicionar solução glicosada a 5% junto à solução cristaloide quando a glicemia reduzir a este patamar [14]. O objetivo é manter a glicemia em torno de 200 mg/dL durante a infusão até a resolução da acidose. Nesse momento, a infusão deve reduzir para 0,5 U/kg/h via IV.

Na CAD leve a moderada (tabela 2), a escolha de insulina pode ser tanto regular IV em infusão contínua, como análogos de ação rápida via subcutânea (SC), sem superioridade entre os dois esquemas para esse perfil de paciente [15]. A administração SC a cada 1 a 2 horas de análogos de ação rápida pode ser uma alternativa eficaz para cenários de escassez de recursos, poupando a necessidade de internação em leito de UTI [16].

Tabela 2
Classificação da cetoacidose diabética (CAD)
Classificação da cetoacidose diabética (CAD)

Nos casos de EHH, a insulina basal que o paciente usa deve ser mantida e a insulina regular IV deve ser iniciada a 0,05 U/kg/h. A expansão volêmica por si já reduz a glicemia e
alguns autores sugerem iniciar a insulina apenas após a parada da queda da glicemia com essa medida. O argumento é evitar variações acima do esperado da osmolaridade sérica [1,17].

O bicarbonato não deve ser reposto de rotina. Uma exceção é quando o pH estiver < 7,0 pelo risco de arritmias e de hipocontratilidade cardíaca secundários à acidemia grave. Se indicado, deve ser reposto com 100 mmol de HCO₃⁻ diluídos em 400 mL de solução isotônica, a cada 2 horas até atingir um pH > 7,0 [1]. Acima deste pH, a administração de bicarbonato pode atrasar a resolução da CAD, piorar ou deflagrar hipocalemia e gerar acidose paradoxal no sistema nervoso central com injúria cerebral [3].  

A hipofosfatemia também pode ocorrer na CAD devido a perda de fósforo urinário. Contudo, a reposição de rotina não é recomendada. A reposição rápida de fósforo pode precipitar hipocalcemia, sem melhora em desfechos para CAD. O uso deve ser reservado para casos com fósforo sérico < 1,0 mmol/L com evidência de insuficiência respiratória ou cardíaca [3,18].

Tabela 3
Fatores desencadeantes de cetoacidose diabética (CAD)
Fatores desencadeantes de cetoacidose diabética (CAD)

Os principais fatores desencadeantes de CAD se encontram na tabela 3.

Critérios de resolução

A CAD é considerada resolvida quando [5]:

  • cetonemia < 0,6 mmol/L E
  • pH > 7,3 ou HCO₃⁻ > 18 mmol/L

O ânion gap não deve ser utilizado como critério de resolução da CAD, segundo o consenso. Grandes volumes de cloreto de sódio 0,9% são administrados para corrigir a desidratação. Esse fluido contém altas concentrações de cloreto, o que pode reduzir o ânion gap, dificultando a interpretação desse parâmetro.

Na CAD, após a resolução da acidose, a insulina subcutânea deve ser iniciada em esquema basal-bolus similar a dose prévia do paciente ou 0,4 a 0,8 U/kg. A administração deve ocorrer de 1 a 2 horas antes da suspensão da insulina IV, para garantir que haja insulina disponível quando a infusão for descontinuada. Não é recomendado o uso das insulinas ultra longas como degludeca ou glargina U300 nesse momento, por não terem sido estudadas nesse cenário. A tabela 4 mostra os cuidados na transição da insulina IV para SC. 

Tabela 4
Cuidados na transição para insulina subcutânea
Cuidados na transição para insulina subcutânea

Para EHH, o consenso considera resolução quando a osmolaridade estiver < 300 mOsm/kg, hiperglicemia corrigida, débito urinário > 0,5 mL/kg/h e melhora do nível de consciência [1]. 

Situações especiais

Dois cenários especiais devem ser ressaltados: pacientes em uso de inibidores de SGLT2 (iSGLT2) e pacientes com doença renal crônica (DRC) estágio V ou em terapia de substituição renal.

Pacientes em uso de iSGLT2 podem se apresentar com CAD e glicemias normais ou abaixo de 200 mg/dL. Nesses casos, a solução glicosada a 5 ou 10% já entra no início do tratamento [19]. Além disso, o iSGLT2 deve ser suspenso e o consenso não recomenda seu retorno após a resolução do quadro. Apesar dessa recomendação, uma metanálise de 2021 encontrou que os benefícios cardiovasculares e renais superariam os riscos de CAD [20]. 

Pacientes com DRC estágio V ou dialíticos geralmente apresentam níveis mais acentuados de hiperglicemia, hiponatremia, osmolaridade e hipercalemia, porém menores concentrações de cetonas. Esses pacientes normalmente estão em sobrecarga de fluidos, e a hidratação deve ser muito cautelosa, se indicada. O monitoramento do potássio e glicemia devem ser mais frequentes.

Hemocromatose Hereditária: Diagnóstico e Investigação

Criado em: 09 de Dezembro de 2024 Autor: Gabriel Paes Revisor: João Mendes Vasconcelos

Hemocromatose hereditária é a doença genética mais comum entre indivíduos com descendência do norte europeu, ocorrendo 1 caso a cada 200-400 pessoas [1, 2]. Em 2022 foi publicado um artigo de revisão sobre o tema no New England Journal of Medicine (NEJM) [3]. Este tópico revisa a definição, sintomas mais comuns, diagnóstico e tratamento da doença.

O que é hemocromatose?

Hemocromatose hereditária (HH) é uma doença genética autossômica recessiva que pode causar sobrecarga de ferro no corpo, com acúmulo principalmente no fígado, coração e hipófise.

A forma mais comum da doença está associada às mutações C282Y e H63D, que afetam a função da proteína HFE, responsável pela regulação do ferro corporal. A perda da função da HFE reduz a expressão de hepcidina, resultando em maior absorção intestinal de ferro.

A HH é classificada em quatro tipos, conforme o gene afetado. O tipo 1, representado pela mutação dos genes C282Y/H63D, é responsável por mais de 95% dos casos. A penetrância das mutações é variável, com até 25% dos pacientes permanecendo assintomáticos ao longo da vida [4].

A sobrecarga de ferro pode ocorrer por mecanismos diferentes de HH. O termo hemocromatose secundária deve ser evitado nessas situações, pois pode gerar confusão diagnóstica a falsa associação com a doença genética. Exemplos são talassemia e mielodisplasia, onde existe eritropoiese ineficaz, bem como pacientes com histórico de múltiplas transfusões [5]. Pacientes que recebem a partir de 15 a 20 concentrados de hemácia possuem risco mais elevado de desenvolver sobrecarga de ferro. [6]. Esses pacientes também podem ter sintomas relacionados à sobrecarga, como cirrose e cardiomiopatia [7].

Quando suspeitar?

O desenvolvimento de sobrecarga de ferro e início dos sintomas demoram décadas para se manifestar. A idade média do diagnóstico de HH é dos 40 aos 50 anos [2] Mulheres costumam ser diagnosticadas um pouco mais tarde devido a perdas menstruais. Em pacientes jovens com ferritina elevada, a HH é improvável e não deve ser a primeira hipótese.

A apresentação clínica mais comum da HH é a hepatopatia, que pode ocorrer em várias intensidades diferentes [3]. O paciente pode apresentar desde elevação de transaminases sem sintomas até quadros avançados como cirrose hepática. Hepatomegalia e carcinoma hepatocelular também podem ocorrer. Hepatite aguda não é uma manifestação associada a HH isolada, mas o paciente pode ter outros motivos simultâneos para uma hepatite, como uso de álcool ou infecções virais.

Os sintomas mais comuns incluem fadiga/letargia, hiperpigmentação cutânea, artralgia e disfunção erétil [8]. A infiltração pancreática do ferro pode resultar em diabetes. A tríade diabetes mellitus, cirrose e hiperpigmentação é descrita em pacientes em fase avançada, mas está presente em menos de 10% dos casos atualmente [2] (tabela 1).

Tabela 1
Manifestações clínicas da hemocromatose hereditária
Manifestações clínicas da hemocromatose hereditária

O acometimento cardíaco pode resultar em cardiomiopatia e insuficiência cardíaca ou em manifestações eletrofisiológicas, como distúrbios de condução e arritmias. Os pacientes com HH são mais suscetíveis a certas infecções, como por Vibrio vulnificus e Yersinia enterocolitica [9, 10].

Na artropatia por HH, a 2º e 3º articulações metacarpofalangeanas são as mais acometidas, seguidas de quadril, tornozelo e joelho. A presença de artropatia nesses pacientes está associada com hepatopatia crônica, já que 34% dos pacientes com artrite tem fibrose hepática avançada [11].

Por ser uma doença genética, pode-se também suspeitar de hemocromatose em casos de história familiar de doença hepática. 

O diagnóstico diferencial inclui doenças que podem elevar a ferritina e transaminases, como doença hepática esteatótica associada a disfunção metabólica (MASLD), hepatopatia alcoólica e outras causas de hepatopatia crônica.

Diagnóstico

Após suspeita clínica em pacientes sintomáticos e/ou com aumento de transaminases em investigação, deve-se pesquisar sobrecarga de ferro com ferritina e índice de saturação de transferrina (IST).

Ferritina > 200 ng/ml em mulheres ou > 300 ng/ml em homens e uma IST > 45% indicam sobrecarga de ferro [1, 3]. Pacientes com esses valores devem prosseguir para avaliação genética. Deve ser realizada a pesquisa de mutação C282Y. O diagnóstico de HH se dá por sobrecarga de ferro associada à mutação genética. O achado mais comum em pacientes com HH é a mutação C282Y em homozigose. Sexo masculino e ferritina > 1000 ng/dL elevam o risco de evolução para hepatopatia avançada [3].

Ressonância magnética (RM) e biópsia hepática podem quantificar a sobrecarga de ferro. Essas ferramentas auxiliam no diagnóstico em pacientes que não conseguem realizar o teste genético. Além disso, esses exames avaliam diagnósticos alternativos em casos duvidosos e estimam o grau de fibrose hepática com objetivo prognóstico. 

A RM consegue estimar a sobrecarga de ferro no fígado e no coração, através de programas específicos para análise de ferro. O exame também auxilia no diagnóstico diferencial, já que o depósito de ferro no baço é visto apenas nas sobrecargas de ferro por causas diferentes de HH [1].

Para estimar a fibrose hepática, a diretriz do colégio americano de gastroenterologia recomenda a realização da biópsia ao invés da RM. Nesse cenário, a biópsia hepática deve ser realizada apenas em pacientes com ferritina acima de 1000 ng/ml e com alteração do C282Y em homozigose. Sem esses critérios, menos de 2% dos pacientes apresentam fibrose hepática [1]

A American Family Physician recomenda um fluxograma diagnóstico que considera as diversas apresentações laboratoriais (fluxograma 1). 

Fluxograma 1
Esquema diagnóstico na suspeita de hemocromatose hereditária
Esquema diagnóstico na suspeita de hemocromatose hereditária

Existe também a recomendação de teste genético em pacientes acima de 18 anos assintomáticos e com familiar de primeiro grau com diagnóstico confirmado [1, 3].

Tratamento

Prevenir e tratar outros insultos hepáticos como etilismo, obesidade e síndrome metabólica faz parte do tratamento. Até 25% dos pacientes com HH evoluem para hepatopatia avançada e possuem maior risco de diabetes mellitus. A prática de exercícios físicos regulares é recomendada.

Hemocromatose também eleva o risco de neoplasia hepática (principalmente carcinoma hepatocelular), bem como de neoplasia colorretal e de mama [2, 3]. Atualmente não há recomendações de rastreio de doenças oncológicas em pacientes com HH. No entanto, em casos de cirrose, deve-se seguir as recomendações de rastreio de carcinoma hepatocelular, detalhadas no tópico "Carcinoma Hepatocelular".

Medidas dietéticas como redução do consumo de alimentos ricos em ferro (como carne vermelha) e vitamina C (adjuvante na absorção intestinal de ferro) podem ser consideradas, apesar de menor grau de evidência [1, 2]. Existe recomendação de evitar frutos-do-mar pelo risco aumentado de infecção por Vibrio vulnificus.

A flebotomia está indicada em pacientes com sobrecarga laboratorial de ferro. A recomendação é realizar flebotomia semanal de 500 ml até o alvo de ferritina sérica de 50-150 ng/ml. Após atingi-lo, a flebotomia pode ser realizada 3 a 4 vezes por ano, com dosagem semestral de ferritina para mantê-la em torno de 50 ng/ml [1, 2]. A flebotomia não reverte lesões de órgão alvo já estabelecidas, como diabetes, hipogonadismo e cirrose hepática, porém pode reduzir sintomas da doença e evitar a progressão de hepatopatia e cardiomiopatia [1, 2, 3].

Outros tratamentos como quelantes de ferro e aférese de hemácias possuem efeitos colaterais e custo mais elevado, portanto não são recomendados como tratamento de primeira linha [2, 3].