Nova Diretriz de Perioperatório da AHA: Risco Cardiovascular

Criado em: 06 de Janeiro de 2025 Autor: Joanne Alves Moreira Revisor: João Mendes Vasconcelos

O American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee publicou uma diretriz de manejo cardiovascular no perioperatório de cirurgias não cardíacas em setembro de 2024 [1]. Essa publicação atualizou a diretriz de 2014 [2]. Este tópico aborda os principais pontos da nova diretriz. 

O Guia já abordou betabloqueadores, iECA/BRA e iSGLT2 no perioperatório em "Manejo Medicamentoso no Perioperatório", AAS no perioperatório em "Ácido Acetilsalicílico (AAS) no Perioperatório", anticoagulação no perioperatório em "Anticoagulação no Perioperatório" e manejo de diabetes no perioperatório em "Diabetes Mellitus e Drogas Antidiabéticas no Perioperatório".

Impacto e objetivo da avaliação

As complicações cardiovasculares perioperatórias são uma importante causa de morbimortalidade em procedimentos não cardíacos. Um estudo retrospectivo dos Estados Unidos com cirurgias não cardíacas encontrou que MACE perioperatório ocorreu em 3,1% dos pacientes internados, com queda para 2,6% entre 2004 e 2013 [3]. No Brasil, duas coortes em pacientes admitidos na UTI após cirurgias não cardíacas de alto risco mostraram redução de mortalidade, complicações cardiovasculares e infecções entre 2008 e 2018 [4].

A avaliação de risco cardiovascular visa estabelecer estratégias de redução de MACE no período perioperatório. Ela depende do momento e risco da cirurgia proposta, conforme descrito na tabela 1.

Tabela 1
Definição de cirurgia segundo o tempo e risco cirúrgico
Definição de cirurgia segundo o tempo e risco cirúrgico

Para dar suporte à tomada de decisão, existem diversas calculadoras de avaliação de risco cardiovascular perioperatório. Alguns exemplos são o Revised Cardiac Risk Index (RCRI), a calculadora do National Surgical Quality Improvement Program (NSQIP) do American College of Surgeons e o AUB-HAS2 (tabela 2). Não há evidência clara de superioridade entre essas ferramentas. A escolha pode variar conforme a experiência local e familiaridade do profissional com cada instrumento.

  • O RCRI, também conhecido como escore de Lee, é composto por apenas seis variáveis, sendo validado e utilizado em diferentes países.
  • A calculadora NSQIP é mais abrangente, contemplando comorbidades como obesidade, DPOC e presença de ascite nos 30 dias que antecedem o procedimento.
  • O AUB-HAS2, de elaboração mais recente, foi validado na população norte-americana e recomendado pela diretriz brasileira.
Tabela 2
Calculadoras de avaliação de risco cardiovascular no perioperatório
Calculadoras de avaliação de risco cardiovascular no perioperatório

Avaliação da capacidade funcional

A diretriz orienta que é razoável uma avaliação estruturada da capacidade funcional para estratificar o risco de eventos cardiovasculares em cirurgias não cardíacas de alto risco (recomendação 2a).

A capacidade funcional é um preditor do risco de eventos cardiovasculares após cirurgias não cardíacas. Uma capacidade funcional inferior a 4 equivalentes metabólicos (METs) foi associada a maiores taxas de MACE e mortalidade cardiovascular em 30 dias e 1 ano [5-8].

A avaliação da capacidade funcional pode ser feita de maneira subjetiva, habitualmente perguntando se o paciente consegue subir dois lances de escada sem interrupção — o que equivale a uma atividade de aproximadamente 4 METs. Outra maneira para avaliar a capacidade funcional em METs é o Duke Activity Status Index (DASI) [9]. O DASI é um questionário autoaplicado que estima a capacidade funcional a partir de diversas atividades (veja tabela 3).

Tabela 3
Duke Activity Status Index (DASI) adaptado para o português
Duke Activity Status Index (DASI) adaptado para o português

Quando comparado com a avaliação subjetiva, alguns estudos encontraram que o DASI melhora a predição de injúria miocárdica, infarto ou morte em 30 dias, com maior risco dessas complicações nos pacientes com escore DASI ≤ 34 pontos [10,11]. O DASI já foi traduzido e adaptado para o português, mas ainda necessita de ampla validação [12]. 

Fluxograma 1
Abordagem passo a passo da avaliação cardíaca perioperatória
Abordagem passo a passo da avaliação cardíaca perioperatória

Pela diretriz, pacientes assintomáticos com boa capacidade funcional (> 4 METs ou DASI > 34) podem prosseguir com cirurgias não cardíacas sem necessidade de avaliação adicional (fluxograma 1).

Avaliação adicional: papel dos biomarcadores

Em pacientes com elevado risco perioperatório e baixa capacidade funcional, os autores sugerem ponderar se avaliações adicionais vão efetivamente mudar a condução do caso. Se a resposta for positiva, o documento orienta dosar o peptídeo natriurético tipo B (BNP) ou o peptídeo natriurético N-terminal pró-tipo B (NT-proBNP) (recomendação 2a) e a troponina (recomendação 2b) antes da cirurgia para complementar a avaliação do risco perioperatório. Se os marcadores estiverem normais, o paciente pode seguir com a cirurgia sem avaliação adicional (fluxograma 1).

Conforme a diretriz, antes de cirurgias não cardíacas de alto risco, é recomendado avaliar o risco perioperatório por meio da dosagem de biomarcadores cardíacos. Em pacientes com doença cardiovascular conhecida, naqueles com 65 anos ou mais, ou com 45 anos ou mais que apresentem sintomas sugestivos de doença cardiovascular, é considerado apropriado medir o peptídeo natriurético tipo B (BNP) ou o peptídeo natriurético N-terminal pró-tipo B (NT-proBNP) (recomendação 2a) e a troponina (recomendação 2b). Essa avaliação precoce auxilia na identificação e manejo de possíveis complicações. 

A dosagem de BNP ou NT-proBNP auxilia na estimativa de complicações perioperatórias. Concentrações pré e pós-operatórias aumentadas de NT-proBNP foram associadas a riscos aumentados de mortalidade pós-operatória ou IAM não fatal em 30 dias, além de predizerem aumento da mortalidade em 1 ano [11-14]. 

Pontos de corte pré-operatórios:

  • Uma revisão sistemática observou que valores de BNP < 92 ng/L e NT-proBNP < 300 ng/L associaram-se a menor incidência de morte ou infarto não fatal em 30 e 180 dias após a cirurgia. Já níveis elevados de BNP ou NT-proBNP pré-operatórios foram fortes preditores de morte ou infarto não fatal em 180 dias [12]. 

Pontos de corte pós-operatórios:

  • Níveis de BNP entre 250 e 400 ng/L e > 400 ng/L apresentaram taxas de complicações cardiovasculares de 15,7% e 29,5%, respectivamente. Para NT-proBNP, valores entre 300 e 900 ng/L tiveram 8,7% de complicações, enquanto níveis > 900 ng/L alcançaram 27% [14].

Em relação a troponina, uma revisão sistemática de 2019 indicou que valores pré-operatórios desse marcador predizem MACE em menos de 30 dias, embora as evidências ainda sejam limitadas e incluam populações heterogêneas [15]. A dosagem pré-operatória de troponina também facilita a interpretação de resultados pós-operatórios, especialmente na distinção entre injúria miocárdica aguda e elevações crônicas de troponina.

Caso esses marcadores se apresentem alterados, a diretriz sugere discussão multidisciplinar para avaliar a possibilidade de um novo exame complementar, como ecocardiograma, teste de estresse não invasivo (recomendação 2b) ou angiografia coronariana por tomografia (recomendação 2b).

Avaliação adicional: papel das provas funcionais

Os testes de estresse (provas funcionais) podem ser considerados em pacientes que serão submetidos a cirurgia não cardíaca de alto risco, apresentem capacidade funcional ruim ou desconhecida (definida como < 4 METs ou DASI ≤ 34) e tenham risco elevado de eventos cardiovasculares perioperatórios, segundo um escore de risco validado (recomendação 2b). Por outro lado, em indivíduos classificados como baixo risco de complicações, com capacidade funcional adequada e sintomas estáveis, ou que se submeterão a procedimentos de baixo risco, não se recomenda a realização de teste de estresse rotineiramente (recomendação 3, “sem benefício”).

A diretriz sugere que o teste de estresse só seja indicado quando houver suspeita prévia de isquemia miocárdica de alto risco ou quando o exame já estaria indicado independentemente do procedimento cirúrgico em questão [16]. No entanto, os autores não especificam quais são os critérios para suspeição clínica de isquemia de alto risco em pacientes assintomáticos.

A diretriz europeia afirma que o teste ergométrico só deve ser considerado uma alternativa para o diagnóstico de doença coronariana obstrutiva na indisponibilidade dos outros testes não invasivos, além de não ter valor diagnóstico em paciente com anomalias do segmento ST pré-existentes [17]. A diretriz brasileira reforça a ausência de evidências robustas para essa conduta [18]. 

Em relação às provas funcionais de imagem, defeitos reversíveis moderados a graves na perfusão miocárdica auxiliaram na previsão de morte e infarto no pós-operatório [19]. Por outro lado, a ausência de defeitos reversíveis apresentou alto valor preditivo negativo para infarto e morte pós-operatória [20]. Na tabela 4 estão resumidas as contraindicações aos testes de esforço.

Tabela 4
Considerações e contraindicações a testes de estresse
Considerações e contraindicações a testes de estresse

Um estudo randomizado com pacientes submetidos a cirurgia vascular arterial não encontrou diferença de mortalidade entre os pacientes submetidos a revascularização e os não submetidos [21]. Similarmente, em pacientes que passaram por artroplastia total de quadril ou joelho com pelo menos um fator de risco no RCRI não foi encontrado diferença de desfechos entre os grupos que realizaram ou não a revascularização pré-operatória [22]. 

Estudos recentes, como ISCHEMIA e COURAGE, corroboram que, em pacientes com doença coronária estável, não houve benefício de uma estratégia invasiva (angioplastia ou revascularização) em comparação à estratégia não invasiva na redução de morte, infarto e outras complicações cardiovasculares [23,24]. 

Cuidados pós-operatórios

A diretriz orienta que é razoável dosar troponina 24 e 48 horas após uma cirurgia não cardíaca de alto risco em pacientes com doença cardiovascular conhecida, sintomas de doença cardiovascular, ou ≥ 65 anos com fatores de risco cardiovasculares (recomendação 2b). O objetivo é identificar lesão miocárdica no pós-operatório.

Estudos que avaliaram a vigilância de troponina após cirurgias não cardíacas detectaram que a elevação de troponina no pós-operatório associa-se a maior mortalidade em 30 dias [25-27]. Em contrapartida, a monitorização de troponina em cirurgias não cardíacas de baixo risco não é recomendada de forma rotineira, considerando a baixa probabilidade de eventos cardiovasculares perioperatórios nesse contexto [28].

A diretriz brasileira recomenda pós-operatório em UTI por 48 horas em pacientes de risco alto (recomendação 1) ou intermediário (recomendação 2b) de complicações conforme a classificação das calculadoras de risco, quando submetidos a cirurgias não cardíacas de risco intermediário ou alto [18].

Fator Antinuclear (FAN): O Que o Clínico Precisa Saber

Criado em: 06 de Janeiro de 2025 Autor: Renan Nascimento Revisor: João Mendes Vasconcelos

O fator antinuclear (FAN), também conhecido como anticorpos antinucleares (ANA), é um importante marcador laboratorial para a triagem e diagnóstico de doenças reumatológicas imunomediadas [1]. Apesar de ampla utilização, a solicitação e a interpretação do exame muitas vezes ocorrem de maneira inadequada. Este tópico revisa o exame, discutindo as principais indicações e a forma correta de interpretá-lo.

O que é o FAN?

A dosagem do fator antinuclear (FAN) é um método para identificar a presença de autoanticorpos em uma amostra. Apesar do nome “antinuclear”, o exame também pode detectar autoanticorpos cujo alvo sejam estruturas do citoplasma ou ligadas ao processo de replicação celular.

O método recomendado é a imunofluorescência indireta (IFI), dividida em três etapas (figura 1):

  • 1ª etapa: o soro do paciente é colocado em contato com células Hep-2 (linhagem celular padronizada para o exame). Caso existam autoanticorpos no soro, eles se ligarão aos antígenos presentes nas células.
  • 2ª etapa: é adicionado um anticorpo anti-IgG humana marcado com uma substância fluorescente. Se houver autoanticorpos aderidos às células Hep-2, essa anti-IgG que foi acrescentada se ligará ao complexo antígeno-anticorpo e eles serão visualizados por meio da marcação com substância fluorescente.
  • 3ª etapa: quantificação do título (por diluição) e leitura de padrões de fluorescência ao microscópio.
Figura 1
Etapas do exame de imunofluorescência usando células HEp-2
Etapas do exame de imunofluorescência usando células HEp-2

O FAN, portanto, não é um autoanticorpo isolado, mas um exame que identifica diversos autoanticorpos. Um resultado de FAN positivo indica apenas que há autoanticorpos na amostra.

O resultado do FAN é expresso de duas formas: quantificação e padrão de imunofluorescência

Quantificação ou titulação

A amostra positiva é diluída progressivamente (1:80, 1:160, 1:320) até que o exame seja negativo. O valor final (por exemplo, 1:80) significa que, mesmo na diluição de 1 parte de soro para 79 partes de diluente, o resultado ainda foi positivo.

O VI consenso brasileiro sobre autoanticorpos recomenda considerar como positivo o FAN em diluições de 1:80 ou maiores [2]. Em geral, quanto maior o título (por exemplo, 1:1280, 1:2560), maior a probabilidade de associação com doenças reumáticas imunomediadas [3].

Padrão de imunofluorescência

Figura 2
Representação esquemática sobre padrões imunofluorescência
Representação esquemática sobre padrões imunofluorescência

Os padrões de FAN descrevem a localização dos antígenos reconhecidos pelos autoanticorpos (figura 2 e figura 3) e auxiliam na suspeita de qual autoanticorpo está envolvido. Atualmente, reconhecem-se 29 padrões oficiais que podem ser divididos em três grandes grupos: nuclear, citoplasmático e mitótico.

Figura 3
Padrões de fator antinúcleo (FAN)
Padrões de fator antinúcleo (FAN)

Esses grupos são subclassificados conforme a localização e o aspecto da imunofluorescência, originando descrições como “homogêneo” e “pontilhado fino denso”, entre outras. Por exemplo, o DNA está distribuído de forma homogênea no núcleo; logo, a presença de anti-DNA resultará em um padrão nuclear homogêneo. A leitura dos padrões depende de quem está realizando o exame.

Cada padrão possui uma nomenclatura correspondente com as letras AC (exemplo: nuclear homogêneo é AC-1). A tabela 1 apresenta a correlação de cada padrão com possíveis doenças, bem como exemplos de autoanticorpos correspondentes [4]. O site ANA Patterns também pode ser uma fonte de consulta.

Tabela 1
Principais padrões de FAN com respectivos autoanticorpos e condições clínicas
Principais padrões de FAN com respectivos autoanticorpos e condições clínicas

Quando solicitar o FAN?

O FAN é utilizado principalmente para a investigação de doenças imunomediadas. As principais situações para a solicitação do exame são: 

  • Suspeita de doença reumática imunomediada
  • Suspeita de hepatite autoimune e colangite biliar primária
  • Em pacientes com fenômeno de Raynaud

Dentre as doenças reumatológicas imunomediadas, destacam-se o lúpus eritematoso sistêmico, esclerose sistêmica, síndrome de Sjögren, doença mista do tecido conjuntivo e miopatias inflamatórias idiopáticas, como polimiosite e dermatomiosite [5]. O tópico do Guia "Doença Mista do Tecido Conjuntivo" aborda essa condição em maiores detalhes.

Em pacientes com fenômeno de Raynaud, o FAN pode ajudar a diferenciar como primário (idiopático) ou secundário [6]. O Guia comentou mais a respeito no tópico "Fenômeno de Raynaud - Tratamento e Inibidores da Fosfodiesterase 5".

Não há uma diretriz formal que defina exatamente quando o exame não deve ser solicitado. A apresentação clínica heterogênea das doenças reumáticas imunomediadas contribui para a dificuldade em criar protocolos rígidos. No entanto, solicitações indiscriminadas podem levar a interpretações equivocadas, gerando ansiedade em médicos e pacientes. A campanha Choosing Wisely, em parceria com o American College of Rheumatology e a Canadian Rheumatology Association, recomenda solicitar o FAN apenas quando houver alta probabilidade pré-teste de doença reumática imunomediada, promovendo melhor acurácia e uso racional do exame [5].

Além de sua aplicação para diagnóstico, o FAN também pode auxiliar na determinação de fenótipos específicos. Em pacientes com artrite idiopática juvenil, um FAN positivo está associado a maior risco de uveíte anterior, frequentemente assintomática, mas com alto risco de progressão para amaurose [7].

Como interpretar o FAN?

O FAN negativo reduz a probabilidade de doença reumatológica imunomediada, mas não exclui completamente a possibilidade de doenças autoimunes. Alguns autoanticorpos não se ligam aos antígenos presentes nas células Hep-2, o que limita a sensibilidade do teste para determinadas condições.

Em pacientes com FAN positivo, o passo seguinte é identificar o(s) autoanticorpo(s) envolvido(s). Cada padrão de FAN está associado a autoanticorpos específicos (tabela 1). Como exemplo, o padrão nuclear homogêneo está correlacionado com anti-DNA, anti-histona e anti-nucleossomo. 

O teste positivo não representa necessariamente um processo patológico. O padrão nuclear pontilhado fino denso é característico de indivíduos saudáveis, mesmo em altos títulos, e não está relacionado a doenças reumatológicas [3]. Esse padrão pode estar presente em até 4 a 20% da população saudável [8-10]. 

FAN positivo em condições não reumatológicas

Além de doenças imunomediadas, um FAN positivo pode ocorrer em pacientes com outras condições. Infecção crônica pelo vírus da hepatite C e tuberculose estão associadas a autoanticorpos [11-13], assim como malária, parvovírus B19, rubéola e caxumba. Doenças linfoproliferativas, como leucemia linfocítica crônica e linfomas não Hodgkin, também estão associadas a FAN positivo [14]. Por último, isoniazida, anticonvulsivantes e clorpromazina foram associados a FAN positivo, mesmo em pacientes sem lúpus induzido por drogas.

Os principais padrões, correlação com autoanticorpos e suas condições clínicas associadas estão exibidos na tabela 1.

FAN no lúpus eritematoso sistêmico

O lúpus eritematoso sistêmico é uma das doenças autoimunes com maior diversidade de autoanticorpos descritos. O FAN positivo, 1:80 ou maior, é critério de entrada obrigatório para a classificação da doença desde 2019, segundo o novo Critério Classificatório do European League Against Rheumatism/American College of Rheumatology (EULAR/ACR). Uma revisão sistemática da literatura, com metanálise de dados envolvendo 13.080 participantes, encontrou que um título de FAN ≥ 1:80 apresenta sensibilidade de 98% para a doença [15].

Apesar desses dados robustos, algumas críticas surgiram quanto à adoção desse critério. O EULAR não especifica o padrão do FAN nesse contexto, o que pode ser uma fragilidade. O padrão nuclear pontilhado fino denso, frequentemente encontrado em indivíduos saudáveis, pode levar a interpretações equivocadas [16].

A monitorização do FAN ao longo do tempo não é recomendada, pois o teste não é sensível para avaliar a atividade da doença. Contudo, nos estágios iniciais e em períodos de maior atividade da doença, observa-se maior positividade do FAN [17]. Variações de padrão e titulação do FAN podem ocorrer ao longo do curso da doença, seja pela própria progressão da condição ou por variabilidade entre laboratórios [18].

Outra crítica relevante aos critérios do EULAR é a existência de casos de LES com FAN negativo. Esses casos podem ser observados, por exemplo, em pacientes com LES crônico ou em terapia dialítica, especialmente quando certos autoanticorpos, como o anti-Ro52, estão presentes. Esses anticorpos não formam imunocomplexos detectáveis em células Hep-2, explicando esses achados atípicos [18].

Será que Tem Evidência?

Azul de Metileno no Choque

Criado em: 06 de Janeiro de 2025 Autor: Kaue Malpighi Revisor: João Mendes Vasconcelos

O uso do azul de metileno no choque distributivo tem se tornado mais frequente e vem sendo cada vez mais estudado. Este tópico revisa o mecanismo de ação, os cuidados com a administração e as evidências sobre o uso no choque distributivo.

Mecanismo de ação

O principal mecanismo de ação do azul de metileno no choque está relacionado à via óxido nítrico–GMP cíclico (NO-GMPc). O óxido nítrico atua no tônus vascular, promovendo vasodilatação ao aumentar a conversão de GMP cíclico [1].

Em estados de choque, citocinas inflamatórias podem aumentar a produção de óxido nítrico e a formação de GMPc, resultando em vasodilatação excessiva. O azul de metileno age inibindo a produção de óxido nítrico e diminuindo a conversão de GMPc, induzindo vasoconstrição.

O azul de metileno tem outras aplicações na medicina, sendo as principais:

  • Metemoglobinemia: atua como agente redutor revertendo a metemoglobina em hemoglobina funcional.
  • Mapeamento de linfonodos sentinelas: utilizado em cirurgias de câncer de mama para identificação de linfonodos que drenam a área tumoral.
  • Neurotoxicidade pela ifosfamida: auxilia na prevenção e tratamento.
  • Avaliação da deglutição (com e sem traqueostomia): serve como corante para verificar possíveis episódios de broncoaspiração.

Evidências no choque séptico

Doses elevadas de noradrenalina, comumente utilizadas no choque séptico, estão associadas a efeitos adversos como taquiarritmias, isquemia periférica e isquemia mesentérica. Nesse contexto, o azul de metileno pode ser útil como poupador de catecolaminas.

Os primeiros relatos sobre os possíveis benefícios hemodinâmicos do azul de metileno no choque séptico surgiram em torno dos anos 2000, baseados em estudos retrospectivos e pequenos ensaios randomizados [2-5]. Os achados principais incluíram melhora da pressão arterial média, aumento da resistência vascular sistêmica e redução da necessidade de vasopressores. Contudo, não houve benefício de mortalidade.

A maioria das investigações avaliou o azul de metileno em fases mais tardias do choque, principalmente em casos refratários (veja mais sobre choque séptico refratário em "Vasopressores e Corticoide no Choque Séptico".  Alguns estudos sugerem que o benefício pode ser mais significativo quando o medicamento é administrado precocemente, especialmente nas primeiras 8 horas após o início do quadro — período marcado pelo aumento da produção de óxido nítrico [6].

Um estudo relevante a respeito do tema foi um ensaio clínico randomizado e duplo-cego realizado no México, em 2023 [7]. Foram incluídos 91 pacientes com choque séptico, randomizados para receber azul de metileno ou placebo em até 24 horas.

  • Definiu-se como ponto de corte de noradrenalina 0,25 mcg/kg/min para a introdução de um segundo vasopressor (vasopressina), além de hidrocortisona 200 mg/dia.
  • No grupo intervenção, administrou-se 100 mg de azul de metileno, infundidos por via endovenosa durante 6 horas, uma vez ao dia, por três dias.
  • A média para início do azul de metileno foi de cerca de 8 horas, e 80% dos pacientes já estavam recebendo um segundo vasopressor.

O grupo que recebeu azul de metileno obteve um menor tempo para descontinuação dos vasopressores e menor tempo de internação em UTI. Não houve diferença de mortalidade. Outras características do estudo podem ser encontradas na tabela 1.

Tabela 1
Características selecionadas do estudo
Características selecionadas do estudo

As diretrizes de sepse atuais ainda não mencionam o azul de metileno em seus posicionamentos. Frente às evidências disponíveis, é possível considerar o uso precoce do azul de metileno nas primeiras horas do choque séptico em pacientes que demandam titulação rápida de vasopressores, como noradrenalina e vasopressina. Entretanto, estudos mais robustos são necessários para confirmar estes achados, dadas as limitações dos estudos existentes, como tamanho de amostra reduzido, heterogeneidade no momento de introdução e variações na dose administrada (veja as posologias na tabela 2).

Tabela 2
Doses de azul de metileno
Doses de azul de metileno

Evidências em outros choques distributivos

Choque distributivo após cirurgias cardiovasculares

Também chamada de síndrome vasoplégica após cirurgia cardíaca. Ocorre em pacientes que passam por circulação extracorpórea (CEC) e é caracterizada por hipotensão persistente (pressão arterial média abaixo de 65 mmHg) que inicia em até 24 horas após a cirurgia, com baixa resistência vascular sistêmica e volume intravascular adequado. O débito cardíaco é frequentemente elevado, a depender da função cardíaca.

Esta síndrome envolve resposta inflamatória sistêmica desencadeada pela CEC, com aumento da produção de óxido nítrico e ativação da via do GMP cíclico [8]. Alguns fatores de risco descritos incluem insuficiência cardíaca pré-existente, uso de inibidores da ECA antes da cirurgia e tempo de CEC prolongado [9].

A maioria dos pacientes com este quadro responde à noradrenalina ou vasopressina. Em casos de resposta inadequada, o azul de metileno é indicado de forma precoce. Algumas recomendações orientam a administrar em até 15 minutos do diagnóstico de vasoplegia refratária [10-12].

Embora o azul de metileno possa reduzir a mortalidade em casos refratários, o uso rotineiro não é recomendado devido à qualidade limitada da evidência disponível e o risco de eventos adversos.

Choque anafilático

O uso do azul de metileno no choque anafilático é descrito em casos refratários, sobretudo em quadros de anafilaxia perioperatória [13,14]. A administração deve ser restrita a situações que ameaçam a vida, nas quais outras medidas como adrenalina e reposição volêmica falharam ou não foram suficientes. O risco de efeitos adversos relacionados ao azul de metileno é relativamente baixo, mas ainda deve ser pesado diante da falta de evidências robustas.

Cuidados e efeitos adversos

O azul de metileno deve ser administrado preferencialmente por um acesso venoso central. No caso de uso em cateter periférico, é recomendável escolher cateteres calibrosos e de localização mais proximal, com vigilância frequente para prevenir extravasamento, que pode resultar em lesão tecidual ou necrose local.

Há risco de síndrome serotoninérgica com o azul de metileno [15,16]. É prudente avaliar cuidadosamente o uso do medicamento se outras drogas que podem desencadear a síndrome estiverem presentes. Os principais medicamentos que podem influenciar nesse evento no ambiente intra-hospitalar são: opioides (principalmente fentanil), linezolida, inibidores da recaptação de serotonina e inibidores da monoaminoxidase.

O uso em pacientes com deficiência de G6PD e hipertensão pulmonar deve ser feito com cautela. Em casos de deficiência de G6PD, o azul de metileno pode desencadear hemólise e metemoglobinemia paradoxal. Por apresentar potencial de vasoconstrição pulmonar, em teoria, pode descompensar pacientes com hipertensão pulmonar [17]. O azul de metileno tem potencial de interação com diversas drogas, sendo prudente checar interações durante o uso. Essa orientação se aplica especialmente em pacientes críticos, que costumam receber múltiplos medicamentos.