Novo Paradigma de Infarto: Oclusão Coronariana Aguda

Criado em: 17 de Fevereiro de 2025 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno Revisor: João Mendes Vasconcelos

Uma nova classificação propõe distinguir o infarto agudo do miocárdio conforme a presença ou ausência de oclusão coronariana, em contraste com a abordagem tradicional baseada no supradesnivelamento do segmento ST. Duas publicações recentes reforçam essa proposta [1, 2]. Este tópico explora essa nova perspectiva.

Infarto com e sem supradesnivelamento do segmento ST

O diagnóstico de infarto agudo do miocárdio (IAM) é feito por variação dos níveis de troponina associado a evidências clínicas, eletrocardiográficas ou radiológicas de isquemia miocárdica aguda, conforme a tabela 1. Pacientes com IAM são atualmente classificados conforme a presença ou ausência de supradesnivelamento do segmento ST no eletrocardiograma (ECG). A ideia dessa classificação é acelerar o tratamento dos pacientes com supradesnivelamento do segmento ST, sendo esse um grupo de maior risco e que se beneficia de reperfusão coronariana imediata.

Tabela 1
Critério diagnóstico de infarto agudo do miocárdio
Critério diagnóstico de infarto agudo do miocárdio

Para definir um IAM com supradesnivelamento de segmento ST (IAMCSST), é necessário a presença de um dos seguintes [3, 4]:

  • Nova elevação do segmento ST em pelo menos duas derivações contíguas, na ausência de hipertrofia ventricular esquerda ou bloqueio de ramo esquerdo. Para ser considerado patológico, o supradesnivelamento do segmento ST, medido a partir do ponto J, deve ser ≥ 1 mm em todas as derivações, exceto V2 e V3. Em V2 e V3, os cortes são os seguintes:
    • ≥ 2 mm para homens ≥ 40 anos
    • ≥ 2,5 mm para homens < 40 anos
    • ≥ 1,5 mm em mulheres.
  • Novo bloqueio de ramo. 

Na avaliação inicial, a presença de um desses achados eletrocardiográficos em conjunto com sintomas clínicos é suficiente para o diagnóstico operacional de IAMCSST. O tratamento deve ser imediato, sem aguardar o resultado da troponina. Esses pacientes possuem isquemia grave e devem receber uma terapia de reperfusão coronariana com urgência, com duas opções:

  • Angioplastia transluminal percutânea coronariana (ATC): primeira escolha. Deve ser realizada em até 90 minutos da chegada (tempo porta-balão).
  • Trombólise: indicada se o tempo porta-balão exceder 90 minutos ou quando a expectativa de transferência para um serviço com ATC ultrapassar 120 minutos. Deve ser realizada em até 30 minutos (tempo porta-agulha).

O diagnóstico de infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento de segmento ST (IAMSSST) é feito quando existem critérios de IAM (tabela 1) e ausência dos critérios de IAMCSST.

Alterações eletrocardiográficas diferentes de supra de ST podem ser encontradas em pacientes com IAMSSST, porém o ECG desses pacientes pode ser normal. Exemplos de padrões eletrocardiográficos associados a IAMSSST incluem:

  • Inversão de onda T
  • Infradesnivelamento de ST (> 0,5 mm em V2 e V3 ou > 1 mm nas demais derivações)
Tabela 2
Seleção da estratégia e tempo para tratamento invasivo de pacientes com infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento de segmento ST (IAMSSST)
Seleção da estratégia e tempo para tratamento invasivo de pacientes com infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento de segmento ST (IAMSSST)

Pacientes com IAMSSST não devem receber trombolíticos. A intervenção recomendada é a angiografia coronariana por cateterismo e o momento do procedimento depende da estratificação de risco do paciente. Pacientes de muito alto risco devem realizar o procedimento em 2 horas e pacientes de alto risco devem realizar o procedimento em até 24 horas [3]. A tabela 2 exibe os critérios de risco. Apesar da recomendação, apenas 6% dos pacientes com IAMSSST de muito alto risco fazem o procedimento em até 2 horas e 30% em até 24 horas. [5].

Problemas com a abordagem atual

A classificação baseada no supradesnivelamento do segmento ST busca identificar pacientes que provavelmente possuem uma oclusão coronariana aguda e que se beneficiam de reperfusão imediata. Essa abordagem possui limitações, entre elas:

Falsos positivos: outras condições causam supradesnivelamento de ST (tabela 3). Um trabalho encontrou que 36% dos pacientes com supradesnivelamento de ST não apresentavam oclusão coronariana na angiografia [6]. Os principais diagnósticos alternativos para supradesnivelamento de ST são doença cardíaca estrutural e insuficiência cardíaca. 

Tabela 3
Causas de supradesnivalmento de ST
Causas de supradesnivalmento de ST

Falsos negativos: é possível ter oclusão coronariana aguda sem supradesnivelamento de ST. Em um trabalho de 2001, as oclusões de artéria circunflexa não apresentam ECG compatível com IAMCSST em 39% dos casos [7]. Esses pacientes com oclusão coronariana, porém sem supradesnivelamento de ST, podem apresentar padrões eletrocardiográficos específicos que não são enfatizados na abordagem atual. 
 
O ECG de 12 derivações pode não detectar uma oclusão coronariana: é possível ter supradesnivelamento de ST em derivações não captadas em um ECG padrão de 12 derivações. Supradesnivelamento de ST em V3R, V4R, V7 ou V8 pode gerar imagem-espelho no ECG de 12 derivações. Um exemplo é o supradesnivelamento de V7 e V8, que pode gerar um infradesnivelamento de V1 a V3.

Variabilidade entre médicos: a interpretação do ECG pelos médicos é subjetiva e existe variação na determinação do supradesnivelamento no ECG. [8]. Um estudo com inteligência artificial conseguiu reduzir esse erro, identificando melhor os pacientes com supradesnivelamento de ST, com redução significativa do tempo porta-balão [9].

Um novo paradigma na abordagem de infarto foi elaborado para tentar superar essas limitações. Segundo essa nova proposta, os infartos seriam divididos em dois tipos: oclusão coronariana aguda (OCA) ou não-oclusão coronariana aguda (NOCA). A classificação foca na alteração estrutural e não na alteração eletrocardiográfica. Um dos objetivos desse paradigma é aumentar a atenção sobre outros padrões de ECG que podem representar uma oclusão coronariana total e elevado risco de óbito. 

No estudo DIFOCCULT, cerca de 28% dos pacientes com IAMSSST foram classificados como IAM com OCA com base nos padrões eletrocardiográficos adicionais [10]. Esse grupo teve maior frequência de oclusão coronariana no cateterismo e maior mortalidade do que aqueles com IAMSSST que não foram reclassificados como IAM com OCA.

Padrões eletrocardiográficos de oclusão coronariana aguda

O supradesnivelamento de ST está associado com oclusão coronariana, porém o termo OCA inclui outros achados também relacionados. 

Um supradesnivelamento de ST por IAM da parede anterior pode ser confundido com alterações da repolarização ventricular, principalmente quando o supradesnivelamento ocorre de V2 a V3. A calculadora “4-Variable” ajuda a fazer a diferenciação entre essas duas condições.

Alguns padrões de OCA são discutidos a seguir. Outros padrões eletrocardiográficos estão na figura 1.

Figura 1
Padrões eletrocardiográficos compatíveis com oclusão coronariana aguda
Padrões eletrocardiográficos compatíveis com oclusão coronariana aguda

Onda T hiperaguda 

Achado presente na fase inicial da oclusão coronariana (figura 2). Ela é definida como uma onda T de base larga e formato simétrico. Essa alteração está presente nos 30 minutos iniciais da oclusão coronariana, momento em que a troponina pode ainda não ter elevado [11].

Figura 2
Evolução do supra de segmento ST
Evolução do supra de segmento ST

O padrão de “de Winter”

Está presente em até 3% dos casos de infarto de parede anterior [12]. Esse padrão pode vir antes ou após um supradesnivelamento de ST. Os critérios diagnósticos do padrão de “de Winter” incluem:

  • Ondas T elevadas e simétricas nas derivações precordiais (V1 a V6)
  • Depressão do segmento ST com inclinação ascendente maior que 1 mm nas derivações precordiais
  • Ausência de elevação do ST nessas mesmas derivações
  • Elevação simultânea do segmento ST entre 0,5 mm e 1 mm em aVR. 

Padrão de Aslanger

Alguns pacientes apresentam supradesnivelamento de ST, mas em derivações não contíguas, não preenchendo o critério do paradigma atual. A nova proposta reconhece esses casos em alguns padrões. O primeiro é o padrão de Aslanger, que pode ocorrer em infartos de parede inferior. Esse padrão necessita de todos os critérios abaixo:

  • Supradesnivelamento de segmento ST na derivação D3 
  • Infradesnivelamento de segmento ST em qualquer derivação de V4 a V6
  • Ausência de supradesnivelamento de segmento ST em V2
  • ponto j do segmento ST em V1 mais elevado do que V2. 

O padrão da “bandeira da África do Sul” 

Caracterizado por supradesnivelamento em D1, aVL e V2 com infradesnivelamento em derivações inferiores, especialmente D3. O supradesnivelamento pode estar presente somente em aVL e V2. Também representa uma situação de supradesnivelamento de ST em derivações não contíguas. Esse padrão pode ocorrer quando há oclusão do ramo diagonal, afetando a parede anteromedial do coração. Essa parede corresponde às derivações D1, aVL e V2. No entanto, a ocorrência de supradesnivelamento de ST em aVL (derivação lateral) e V2 (derivação anterosseptal) pode não ser identificado como padrão de paredes contíguas, portanto levando à interpretação inadequada. Esse padrão tipicamente apresenta infra de D3 como imagem-espelho

Conduta segundo o paradigma de oclusão coronariana

As diretrizes atuais utilizam o paradigma baseado no supradesnivelamento do segmento ST. Alguns autores defendem a mudança do paradigma para OCA/NOCA [1]. 

O Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia elaborou um documento defendendo essa mudança [2]. A proposta é de uma abordagem em cinco passos na avaliação do paciente com dor torácica e fatores de risco para eventos ateroscleróticos (fluxograma 1): 

  1. Checagem imediata do eletrocardiograma. 
  2. Pesquisar se há ou não supradesnivelamento de ST.
  3. Procurar outros sinais de OCA.
  4. ECG seriado para encontrar mudanças dinâmicas que modifiquem a conduta.
  5. Avaliar se o paciente respondeu ao tratamento inicial. Considerar cateterismo caso mantenha dor torácica refratária.
Fluxograma 1
Algoritmo de decisão proposto para o manejo de dor torácica no departamento de emergência
Algoritmo de decisão proposto para o manejo de dor torácica no departamento de emergência

Pacientes com supradesnivelamento de ST no passo 2 possuem indicação de trombólise caso não seja possível um tempo porta-balão adequado. Não há respaldo sobre o uso de trombolíticos em pacientes caracterizados como IAM com OCA sem supradesnivelamento de ST. 

Uma vantagem do novo paradigma é enfatizar que alguns pacientes sem supradesnivelamento de ST se beneficiam de angioplastia imediata. Essa mudança necessitará de tempo para implementação em demais serviços e mais estudos são necessários visando testes diagnósticos e tratamento nessa população. 

Síndromes e Cenários

Doença de Graves: Mudanças no Diagnóstico e Tratamento

Criado em: 17 de Fevereiro de 2025 Autor: Gabriel Paes Revisor: João Mendes Vasconcelos

A doença de Graves é a causa de até 70% dos casos de hipertireoidismo [1], com incidência anual de 30 a 50 casos por 100.000 habitantes [2]. Um artigo da Endocrine Society publicado em 2024 observou mudanças no diagnóstico e tratamento da doença na última década [3]. Este tópico revisa o diagnóstico, sintomas mais comuns e modalidades de tratamento utilizadas atualmente.

Diagnóstico e apresentação clínica

A doença de Graves é uma condição autoimune em que estão presentes anticorpos antirreceptor de TSH (hormônio tireoestimulante ou tireotropina). Esses anticorpos são conhecidos como TRAb (do inglês, thуrоtrорiո receptor antibodies) e na doença de Graves atuam estimulando a função da tireoide. Em outras palavras, esses anticorpos têm ação análoga ao TSH, levando a hipertireoidismo e tireotoxicose. A doença de Graves é cinco a dez vezes mais comum em mulheres e entre os fatores de risco estão história familiar de doença tireoidiana e outras doenças autoimunes [2, 4, 5].

O quadro clínico pode ser dividido em sintomas de tireotoxicose e sintomas específicos da doença de Graves. Dentro da tireotoxicose, os sintomas mais comuns são palpitações, tremores, distúrbios de ansiedade, intolerância ao calor, perda ponderal, fraqueza proximal e insônia. Cerca de 10% dos pacientes podem desenvolver fibrilação atrial [5, 6, 7] (figura 1). A tireotoxicose grave foi revisada no tópico "Tempestade Tireotóxica".

Figura 1
Mixedema
Mixedema

Os achados específicos de Graves são o mixedema pré-tibial (ou dermopatia de Graves), oftalmopatia de Graves e a acropaquia tireoidiana [5] (tabela 1). No exame físico, costuma-se encontrar taquicardia e bócio difuso, sem nodulações isoladas.

Tabela 1
Manifestações da tireotoxicose e doença de Graves
Manifestações da tireotoxicose e doença de Graves

Após a suspeita de hipertireoidismo e doença de Graves, a dosagem de TSH é o exame inicial e costuma estar suprimido (< 0,01 mUI/L) [5]. Para confirmação diagnóstica, deve-se solicitar T4 livre e T3 total, ambos geralmente aumentados. Alguns casos de doença de Graves diagnosticados precocemente não apresentam aumento de T4 livre, somente T3 (conhecido como T3-tireotoxicose) [6].

A pesquisa de TRAb pode ser útil para confirmação da etiologia do hipertireoidismo, especialmente em casos duvidosos. A American Thyroid Association (ATA) e a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) indicam que esse exame não seria necessário em quadros clássicos de Graves, como em pacientes com dermopatia, oftalmopatia e bócio [5, 6]. A presença de TRAb tem sensibilidade de 96% e especificidade de 99% para o diagnóstico de DG [1].

Tabela 2
Padrões de captação de radioiodo na cintilografia
Padrões de captação de radioiodo na cintilografia

Ultrassonografia com Doppler de tireoide e cintilografia de tireoide com captação de radioiodo são exames utilizados para diagnóstico diferencial no hipertireoidismo. A ultrassonografia avalia anatomia e vascularização, é menos invasiva, sem radiação associada e pode detectar nódulos não perceptíveis ao exame físico. Na doença de Graves, espera-se um fluxo de sangue aumentado ao Doppler. A cintilografia com captação avalia o padrão de captação de iodo marcado e diferencia entre Graves, bócio multinodular, nódulo tóxico (doença de Plummer) e tireoidites (tabela 2) [5]. A cintilografia com captação é contraindicada na gestação e em lactantes.

Modalidades de tratamento e acompanhamento

Os betabloqueadores, preferencialmente os não seletivos (ex: propranolol), estão indicados para todos os pacientes com sintomas de tireotoxicose [5]. Além de reduzir os sintomas adrenérgicos, essas drogas reduzem a conversão periférica de T4 em T3.

Existem três modalidades terapêuticas para controle hormonal na doença de Graves (tabela 3):

  • Drogas antitireoidianas.
  • Ablação com radioiodo.
  • Tireoidectomia total.
Tabela 3
Opções de tratamento na doença de Graves
Opções de tratamento na doença de Graves

A escolha sobre a terapia depende das características específicas de cada método, conforme descrito a seguir. 

Drogas antitireoidianas

As drogas antitireoidianas utilizadas são da classe das tionamidas. Os medicamentos mais usuais são o tiamazol/metimazol (Tapazol ®) e o propiltiouracil (PTU). O tratamento é preconizado por 12 a 18 meses, com necessidade de monitorização da função tireoidiana após a suspensão pelo risco de recorrência. A remissão da doença ocorre em 30 a 50% dos casos após 24 meses de tratamento [5, 6, 8-10].  O uso mais prolongado das tionamidas parece elevar as taxas de remissão [11, 12, 13].

A diretriz da ATA sugere a seguinte regra para estimar a dose de metimazol, em tomada única diária [5]:

  • 5–10 mg se o T4 livre for 1–1,5 vezes o limite superior do normal;
  • 10–20 mg para T4 livre 1,5–2 vezes o limite superior do normal;
  • 30–40 mg para T4 livre 2–3 vezes o limite superior do normal.

Essas doses devem ser adaptadas para cada caso, considerando sintomas e tamanho da glândula. Novas dosagens de T4 livre e T3 total podem ser feitas em 4 a 6 semanas, com ajuste progressivo da dose até alcançar o eutireoidismo. A dose de manutenção habitual é entre 5 e 10 mg.

Pacientes que mantêm TRAb positivo durante ou após o tratamento têm taxas de remissão inferiores a 20% [14]. A diretriz da European Thyroid Association sugere que as tionamidas podem ser mantidas além do período de 18 meses em pacientes com TRAb persistentemente positivo [15], mas essa não é uma recomendação homogênea entre outras sociedades.  

Dois efeitos colaterais dessas drogas merecem destaque: agranulocitose (0,1% dos pacientes) e hepatotoxicidade (0,2% dos pacientes) [3, 16]. Alguns estudos encontraram maior efeito hepatotóxico associado ao PTU [17]. No primeiro trimestre de gestação deve-se evitar tionamidas, especialmente metimazol, pelo risco teratogênico [17].

Ablação com radioiodo

Procedimento onde a tireoide é impregnada com iodo radioativo, gerando lesão tecidual e reduzindo a produção hormonal. Resulta em hipotireoidismo em 2 a 6 meses após sua realização [17, 18]. Deve-se suspender amiodarona e evitar contraste iodado nos 3 meses anteriores ao procedimento [17]. É contraindicado na gestação.

A ablação pode piorar quadros de oftalmopatia. O uso de corticoides é recomendado em pacientes com oftalmopatia moderada a grave para reduzir a chance de piora [1].

Tireoidectomia

Tratamento cirúrgico definitivo. Tem como riscos a lesão do nervo laríngeo recorrente e de paratireoide, com consequente hipoparatireoidismo. Em gestantes pode ser uma opção, considerando os riscos das outras alternativas terapêuticas.

Oftalmopatia de Graves

A oftalmopatia ocorre em até 25% dos pacientes com Graves e a maioria tem um quadro leve. Essa manifestação é diferente da exoftalmia que ocorre em qualquer tipo de tireotoxicose e ocorre por estimulação de fibroblastos e adipócitos pelos autoanticorpos antirreceptor de TSH. Fatores de risco para o acometimento ocular incluem tabagismo, tratamento com ablação por radioiodo e dislipidemia [1, 18].

Os sintomas incluem irritação ocular, sensação de “areia nos olhos”, escotomas, dor ocular, turvação visual e diplopia. Perda visual é um sintoma pouco comum, mas pode ocorrer em pacientes mais graves com neuropatia óptica. O exame físico mostra proptose e edema periorbital.

A gravidade é definida por alterações no exame físico e exames complementares. Proptose acima de 3 mm (medida com exoftalmômetro), diplopia, lesão de córnea e compressão do nervo óptico configuram oftalmopatia moderada a grave, com indicação de tratamento específico [18].

Nos casos leves, estão indicados sintomáticos, lubrificantes oculares, suspensão do tabagismo e o tratamento do Graves habitual. Nos casos moderados a graves, está indicado o teprotumumabe (anticorpo monoclonal anti-IGF-1) ou pulsoterapia com metilprednisolona, a depender do contexto do serviço de saúde e custos envolvidos [18]. Não foram encontrados estudos comparando diretamente os dois tratamentos, mas comparações indiretas sugerem que teprotumumabe está mais associado à melhora de proptose e à diminuição da diplopia [20]. A metilprednisolona é habitualmente administrada na dose de 0,5 g uma vez por semana por 6 semanas, seguido de 250 mg por mais 6 semanas, totalizando 4,5 g ao final da semana 12 [21]. Doses cumulativas maiores que 8 g devem ser evitadas.   

Pacientes com neuropatia ótica e risco de perda de visão devem ser internados. Recomenda-se metilprednisolona na dose de 0,5 a 1,0 g em três dias consecutivos. Pacientes que não respondem são candidatos a cirurgia de descompressão orbitária [22].

Mudanças no tratamento da última década

A Endocrine Society conduziu uma pesquisa epidemiológica com 1252 médicos, distribuídos em 85 países de todos os continentes, para avaliar o processo diagnóstico e as modalidades terapêuticas mais empregadas na doença de Graves atualmente [3]. O diagnóstico tem sido cada vez mais fundamentado em dados clínicos e laboratoriais. Além do TSH e dos hormônios tireoidianos, 77% dos especialistas relataram solicitar TRAb para confirmação diagnóstica.

Observou-se uma queda no uso de cintilografia com captação na última década: de 47%, em 2012, para 15%, em 2023. Em contrapartida, a ultrassonografia com doppler tornou-se a primeira escolha para avaliação de imagem inicial, passando de 25% para 61% no mesmo período.

Em relação ao tratamento, as tionamidas foram usadas por 91% dos especialistas. Mesmo em situações de recaída após um ciclo inicial de drogas antitireoidianas, 59% dos médicos optam por um segundo ciclo terapêutico. Houve também prolongamento do tempo de uso das tionamidas, sobretudo em pacientes sem remissão após 18 meses ou com TRAb persistentemente positivo. 

O uso de ablação com radioiodo diminuiu de 69% para 7% na última década, reforçando a tendência pelo tratamento medicamentoso com tionamidas. 

A escolha pela tireoidectomia é baixa em pacientes com doença de Graves. Em pacientes que desejam engravidar, a probabilidade de optar pela cirurgia aumenta em 10 vezes (1,5% para 15,6% dos casos). Em indivíduos com oftalmopatia moderada a grave, a terapia cirúrgica também é oferecida em maior frequência (22,9% dos casos).

Doença Venosa Crônica: Avaliação e Manejo Clínico

Criado em: 17 de Fevereiro de 2025 Autor: Lucca Cirillo Revisor: João Mendes Vasconcelos

A doença venosa crônica tem manifestações que vão de alterações assintomáticas superficiais até úlceras venosas. Essa condição reduz a funcionalidade e a qualidade de vida dos pacientes. Este tópico repercute os principais pontos de uma revisão de dezembro de 2024 do New England Journal of Medicine [1], com enfoque no manejo não-cirúrgico desta condição. 

Fatores de risco, sintomas e diagnóstico diferencial

O termo doença venosa crônica é abrangente e inclui todas as alterações patológicas do sistema venoso dos membros inferiores. Insuficiência venosa crônica representa manifestações clínicas mais avançadas como edema, hiperpigmentação, alterações cutâneas e úlceras [2]. 

A insuficiência venosa crônica pode acometer até 40% da população feminina e 17% da masculina. A prevalência de veias varicosas é ainda maior [3]. Os principais fatores de risco são idade avançada, sexo feminino, obesidade, síndrome da apneia obstrutiva do sono, gravidez, longos períodos em pé e trombose venosa profunda prévia. 

Alterações estruturais e funcionais podem ocasionar doença venosa crônica, com destaque para:

  • Falha no fechamento das valvas venosas com refluxo valvar: alteração estrutural mais comum. 
  • Trombose venosa profunda (TVP): pode causar distorções permanentes na parede das veias, mesmo após resolução da trombose e recanalização, resultando em hipertensão venosa persistente. Quando associado a sintomas, configura a  síndrome pós-TVP, acometendo até 50% dos pacientes após um episódio de trombose [4].
  • Compressão extrínseca acima da região inguinal: tumores pélvicos, linfonodomegalias ou síndrome de May-Thurner. Podem passar despercebidos se a avaliação ficar restrita ao membro. A ultrassonografia pode sugerir (veja mais em “Ultrassonografia com doppler venoso e exames de imagem”).
  • Fatores funcionais: incluem causas de aumento da pressão venosa central (obesidade, apneia do sono e hipertensão pulmonar), disfunção linfática e fraqueza na musculatura dos membros inferiores [1].

O paciente pode ser assintomático ou queixar-se de dor, prurido, sensação de peso nas pernas e inchaço. Os sintomas tendem a piorar ao final do dia, após longos períodos em pé, em climas quentes e durante o período perimenstrual. O exame físico demonstra telangiectasias, veias varicosas, edema, alterações cutâneas e úlceras venosas. 

As úlceras venosas são as feridas crônicas mais comuns, sendo responsáveis por 70% das feridas de extremidades [5]. A dermatite de estase é uma apresentação possível, cursando com eritema e dor, com difícil diferenciação de celulite. Veja mais sobre essa manifestação em "Dermatite de Estase". 

A Classificação de Aspectos Clínico, Etiológico, Anatômico e Fisiopatológico (CEAP)  para avaliação da doença venosa crônica é recomendada por diversas diretrizes, incluindo da Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular  [6-9]. O exame físico deve ser realizado em pé, a fim de observar os efeitos da gravidade e peso do paciente.

Tabela 1
Classificação de aspectos clínico, etiológico, anatômico e fisiopatológico (CEAP) da doença venosa crônica DVC)
Classificação de aspectos clínico, etiológico, anatômico e fisiopatológico (CEAP) da doença venosa crônica DVC)

O Venous Clinical Severity Score (VCSS) é recomendado para avaliação da gravidade do quadro e acompanhamento do tratamento [10]. As ferramentas estão resumidas nas tabela 1 e tabela 2

Tabela 2
Sistema de Classificação Venous Clinical Severity Score (VCSS)
Sistema de Classificação Venous Clinical Severity Score (VCSS)

Alguns medicamentos podem induzir edema e mimetizar ou contribuir com a doença venosa. Uma cascata de prescrição comum é o uso de diuréticos para tratamento de edema induzido por medicamentos [11,12]. Nesse cenário, a melhor conduta é avaliar a possibilidade de troca do medicamento culpado antes de perseguir o diagnóstico e tratamento da doença venosa. A tabela 3 resume os principais medicamentos relacionados a edema em membros inferiores.

Tabela 3
Medicamentos associados a edema de membro inferior
Medicamentos associados a edema de membro inferior

Ultrassonografia com Doppler venoso e exames de imagem

A ultrassonografia com Doppler venoso (USG Doppler) é a ferramenta inicial para a avaliação de alterações estruturais, investigação da doença venosa e planejamento terapêutico, principalmente cirúrgico [6-8]. O exame pode ser realizado com as veias superficiais e profundas dos membros inferiores e sistema iliocaval.

O USG Doppler avalia a presença e o tempo de refluxo venoso, obstruções, anatomia e o padrão do fluxo. O fluxo venoso normal deve ser espontâneo, unidirecional, com fasicidade respiratória e sem refluxo em manobras provocativas, como a manobra de Valsalva. 

Refluxo venoso pode ocorrer em segmentos isolados ou em todo o trajeto venoso (refluxo axial). É considerado refluxo hemodinamicamente significativo quando seu tempo excede 0,5 segundo nas veias superficiais e 1,0 segundo nas veias profundas. O tempo do refluxo não se correlaciona com a gravidade dos sintomas [13].

O USG Doppler pode sugerir obstrução venosa proximal. Onda de fluxo contínua e achatada com perda da variação respiratória na veia femoral comum ou na veia ilíaca externa sugere um comprometimento proximal decorrente de trombose, fibrose ou compressão extrínseca [14-16]. De maneira geral, a falta de modulação fisiológica do fluxo (perda de fasicidade, padrão monofásico e ausência de resposta a manobras como Valsalva) sugere obstrução proximal.

A diretriz da Sociedade Americana de Cirurgia Vascular não recomenda a realização rotineira de USG com Doppler venoso para avaliação de pacientes assintomáticos com CEAP C1 (teleangiectasias ou veias reticulares). Esta condição está mais relacionada a alterações estéticas e não há evidências de benefício em tratamento cirúrgico para prevenir progressão da doença. Nos pacientes sintomáticos CEAP C1, pode ser considerado o USG para identificar insuficiência venosa, porém raramente alguma intervenção cirúrgica será necessária [17].

Nos demais casos (CEAP C2 ou superior), a avaliação complementar do sistema venoso superficial e profundo é indicada. Na suspeita de obstrução/estenose suprainguinal, o USG doppler transabdominal (avaliação do sistema ileocava) é recomendado [8]. 

Outros exames de imagem (angiotomografia, angiorressonância, ultrassom intravascular  e/ou venografia) são reservados para avaliação de vasos suprainguinais, principalmente quando o USG com Doppler venoso apresentar limitações técnicas na avaliação [8]. 

Tratamento: abordagem focada para o clínico

A avaliação do cirurgião vascular é recomendada em todos os casos com objetivos estéticos ou em úlceras ativas ou cicatrizadas (CEAP C5 e C6) [14]. O ensaio clínico EVRA encontrou que a ablação endovenosa precoce pode diminuir o tempo para a cicatrização de úlceras [18]. Pacientes com pele em risco de formação de úlcera (CEAP C4b) ou com sintomas refratários ao tratamento conservador também podem se beneficiar de intervenções. Procedimentos invasivos tendem a ser mais efetivos quando há alterações estruturais relevantes ou presença de lesões ulceradas.

O manejo clínico é uma parte relevante do tratamento da doença venosa crônica, pois frequentemente há um componente funcional que precisa ser abordado independente dos procedimentos cirúrgicos [8].

O foco do tratamento é o alívio sintomático. As quatro principais medidas são:

  • Redução da hipertensão venosa central; 
  • Exercícios envolvendo panturrilha e extensão/flexão do pé;
  • Elevação do membro;  
  • Terapia compressiva. 

Em relação à hipertensão venosa central, a obesidade e outros fatores que agravam esse componente devem ser abordados. Uma avaliação funcional da musculatura da panturrilha e do pé auxilia a identificar restrições de mobilidade, flexibilidade ou deformidades anatômicas. Exercícios para fortalecimento dessa musculatura são recomendados [8].

Medicamentos

Não é recomendado o uso de rotina de diuréticos para controle de edema de membros inferiores. A diureticoterapia pode levar a hipovolemia e não tem efeito no controle de edema de maneira geral. O uso deve ser reservado para quando há evidência de hipervolemia sistêmica. Os diuréticos tiazídicos ou antagonistas mineralocorticoides são preferidos em relação aos diuréticos de alça, que podem aumentar a complacência e a vasodilatação, sem efeito em reduzir a pressão venosa central [19]. 

Drogas venoativas são conhecidas no tratamento medicamentoso para doença venosa, porém carecem de evidência robusta e o benefício é incerto. Uma revisão da Cochrane encontrou alguma evidência para redução de edema, sem benefício em qualidade de vida ou cicatrização de úlceras [20]. Não há clareza nas recomendações entre qual droga escolher e dose efetiva [6-8]. A diretriz americana traz a recomendação fraca do uso (classe 2B) para controle de edema.

O tratamento deve ser guiado e compartilhado com as preferências do paciente e controle de sintomas. Dentre os agentes, os flavonoides na fração micronizada (diosmina-hesperidina) são os fármacos mais consensuais [20]. A pentoxifilina é citada como alternativa para tratamento de úlcera venosa [14] e o dobesilato de cálcio também é citado para redução de edema [8]. Um resumo dos principais medicamentos e posologias sugeridas está na tabela 4 [21].

Tabela 4
Drogas venoativas para tratamento de doença venosa crônica
Drogas venoativas para tratamento de doença venosa crônica

Terapia compressiva (meias, talas e bombas de compressão)

A terapia compressiva auxilia no controle sintomático, como edema, dor e na cicatrização de úlceras venosas [8,22]. Existem diversas modalidades de compressão (meias, talas e bombas de compressão). A escolha da altura da compressão dependerá da clínica do paciente (se as alterações são mais distais ou proximais). A escolha da pressão de compressão depende da presença de úlceras. Em pacientes com úlceras ativas ou em cicatrização, recomendam-se pressões mais elevadas de compressão (acima de 30 mmHg) [23]. Em outros cenários, níveis de pressões mais baixos (entre 20–30 mmHg) são adequados. O principal desafio é a aderência terapêutica, pois a compressão pode causar desconforto. 

Após procedimentos venosos, a terapia compressiva é recomendada de maneira contínua (dia e noite) durante 1 a 2 semanas [24]. Nos demais cenários, a terapia compressiva pode ser mantida por tempo indefinido para alívio sintomático. O tempo de uso deve ser ajustado conforme a clínica e as preferências do paciente, visando melhorar a aderência ao tratamento [25]. É importante avaliar a coexistência de doença arterial periférica; em pacientes com índice tornozelo braquial < 0,5, a terapia compressiva é contraindicada, e com valores < 0,8 deve-se prosseguir com cautela [14].