Novos Critérios Diagnósticos e Classificação da Obesidade

Criado em: 03 de Março de 2025 Autor: Ênio Simas Macedo Revisor: João Mendes Vasconcelos

Uma nova proposta de critérios para o diagnóstico e classificação da obesidade foi publicada no Lancet em janeiro de 2025 [1]. Este tópico aborda essa nova publicação.

Definição anterior e seus problemas

Anteriormente, a obesidade era definida pela presença de índice de massa corporal (IMC) > 30 kg/m² (ou > 27,5 kg/m² em populações asiáticas). Apesar de ser adotada, essa definição é alvo de críticas, como:

  • Subestimação da adiposidade em indivíduos com pouca massa muscular: pessoas com pouca massa magra, por exemplo, alguns idosos, podem ter percentual de gordura elevado, mas um IMC que não reflete adequadamente esse excesso de tecido adiposo. Essa condição é descrita em alguns estudos como obesidade de peso normal ​[2].
  • Superestimação da adiposidade em indivíduos musculosos: atletas ou pessoas com maior massa muscular podem apresentar IMC elevado, mesmo sem acúmulo excessivo de gordura corporal.
  • O IMC isoladamente não reflete a presença de lesões de órgãos-alvo: a mensuração do IMC de forma isolada não avalia a presença de danos em órgãos ou sistemas, como fígado e coração, causados pela adiposidade.
  • Indefinição sobre obesidade como fator de risco ou doença em si: esse critério gera questionamentos sobre a visão da obesidade como um fator de risco para doenças ou se ela deve ser reconhecida como uma doença independente.

Para abordar esses problemas, uma comissão internacional foi formada para revisar os critérios diagnósticos e a classificação da obesidade. A América Latina foi representada por pesquisadores do Brasil e do México. O resultado desse trabalho foi a publicação abordada nesse tópico, endossada por 76 sociedades médicas nacionais e internacionais — incluindo, no Brasil, a Sociedade Brasileira de Diabetes, a Sociedade Brasileira de Cardiologia, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO) e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica.

Fluxograma 1
Novos critérios diagnósticos e classificação da obesidade
Novos critérios diagnósticos e classificação da obesidade

A nova classificação define obesidade como excesso de adiposidade e estratifica em obesidade clínica e pré-clínica (fluxograma 1). Veja detalhes dos critérios nas seções a seguir. 

Definição de obesidade como excesso de adiposidade

Segundo a comissão, a obesidade é definida pela presença de excesso de tecido adiposo, independentemente da presença ou não de anormalidades na função ou na distribuição desse tecido. 

O excesso de tecido adiposo é confirmado a partir de qualquer um dos itens do quadro “Confirmar o excesso de adiposidade” no fluxograma 1.

A comissão recomenda que o IMC seja utilizado principalmente como ferramenta de rastreamento, medida epidemiológica ou auxiliar na avaliação clínica. Isso reforça que, isoladamente, o IMC pode não refletir de forma acurada a adiposidade corporal real em alguns indivíduos. 

Após caracterizar obesidade segundo os critérios expostos, deve-se avaliar se o paciente tem critérios de obesidade clínica, discutidos na seção abaixo.

Obesidade clínica e pré-clínica

A Organização Mundial da Saúde reconhecea obesidade como uma doença. Apesar disso, existe um debate relevante sobre o impacto do estigma gerado ao considerar uma pessoa com obesidade como portadora de uma doença. Nesse contexto, existem duas interpretações de obesidade enquanto condição de saúde:

Essa diferenciação é importante tanto do ponto de vista clínico quanto de políticas de saúde, ao permitir direcionar os recursos àqueles que podem se beneficiar de modo mais efetivo. O novo modelo de obesidade clínica e pré-clínica foi desenvolvido para resolver essas questões.

Obesidade clínica

O novo modelo propõe que a obesidade clínica seja considerada uma doença crônica e sistêmica, representando um grupo que se beneficia mais de tratamentos farmacológicos ou cirúrgicos. Ela é definida pela presença de pelo menos um dos itens abaixo:

  • Evidência de alteração da função orgânica ou tecidual secundária à obesidade. (ver quadro no fluxograma);
  • Limitação de atividades básicas da vida diária ou de mobilidade substanciais causadas pelos efeitos da obesidade.

Obesidade pré-clínica

A obesidade pré-clínica é definida pela presença de obesidade (conforme critérios de excesso de adiposidade) na ausência de critérios para obesidade clínica (sem disfunção orgânica ou limitações funcionais). 

Essa condição deve ser interpretada como um fator de risco para o desenvolvimento de doenças relacionadas à obesidade (como diabetes mellitus do tipo 2, doenças cardiovasculares, câncer e doenças psiquiátricas). Estes indivíduos se beneficiam especialmente de mudanças de estilo de vida, com menor benefício de intervenções farmacológicas ou cirúrgicas. Esses pacientes devem ser acompanhados para a detecção precoce caso haja progressão para obesidade clínica.

Bulário

Dobutamina: Uso Clínico

Criado em: 03 de Março de 2025 Autor: Matheus Ribeiro Revisor: Frederico Amorim Marcelino

A dobutamina é um medicamento que atua principalmente nos receptores β-1 adrenérgicos, com ação menor em β-2 e 𝝰. O medicamento aumenta a contratilidade do coração (ação inotrópica positiva) e a frequência cardíaca (ação cronotrópica positiva). A dobutamina pode ser utilizada principalmente em três situações: choque com baixo débito cardíaco, bradiarritmias e em exames com estresse farmacológico. Este tópico revisa as indicações, evidências, prescrição e desmame da dobutamina.

Indicações no paciente com baixo débito cardíaco

A Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca de 2018 [1] recomenda o uso da dobutamina em pacientes com hipotensão e sinais de baixo débito cardíaco (indicação IIa, nível de evidência C). As diretrizes da European Society of Cardiology (ESC) de 2021 e a da American Heart Association (AHA) de 2022 também recomendam o uso nesse cenário (tabela 1) [2, 3]. As principais causas de baixo débito cardíaco são o choque cardiogênico e a disfunção miocárdica no contexto de sepse.

Tabela 1
Recomendações das diretrizes para uso de dobutamina
Recomendações das diretrizes para uso de dobutamina

Choque cardiogênico

Choque cardiogênico ocorre quando uma doença cardíaca primária reduz o débito cardíaco e causa hipoperfusão tecidual, seja por uma insuficiência cardíaca crônica descompensada ou por uma insuficiência cardíaca aguda nova. Até 5% dos casos de choque cardiogênico podem ocorrer sem hipotensão. Aguardar a redução da pressão arterial para considerar esse diagnóstico pode atrasar o tratamento. A identificação do choque cardiogênico deve se concentrar nos sinais clínicos e laboratoriais de hipoperfusão tecidual e disfunção orgânica (tabela 2) [4].

Tabela 2
Sinais de baixo débito cardíaco
Sinais de baixo débito cardíaco

O reconhecimento de pacientes com baixo débito cardíaco somente pelo exame físico tem limitações.  O cateter de artéria pulmonar (cateter de Swan-Ganz) e o ecocardiograma podem auxiliar nessa avaliação. Veja mais em "Choque Cardiogênico e Dispositivos de Assistência Circulatória". Na ausência desses métodos, o tratamento deve ser guiado pela impressão clínica, principalmente em pacientes com histórico de insuficiência cardíaca ou infarto. Contudo, a ausência de ecocardiografia dificulta a confirmação diagnóstica e a avaliação direta da função cardíaca. 

As sociedades médicas recomendam a dobutamina no contexto de choque cardiogênico, mas reconhecem a falta de estudos randomizados que indiquem redução da mortalidade ou apoiem melhor a recomendação [2, 5]. Há associação com piores desfechos pelos efeitos colaterais (como arritmias) com o uso de doses elevadas e infusões prolongadas. No entanto, os inotrópicos continuam sendo utilizados no manejo do choque cardiogênico e estados de baixo débito cardíaco, por melhorarem parâmetros hemodinâmicos. A condução de estudos comparados com placebo nesse cenário agudo é difícil, mas existem tentativas em curso, como o estudo CAPITAL DOREMI2 [6-10].

Além do uso no contexto agudo do choque cardiogênico, em pacientes com disfunção sistólica grave e refratária, a dobutamina em uso prolongado pode ser utilizada para cuidados paliativos ou como terapia de ponte até um tratamento definitivo (como transplante cardíaco ou dispositivo de assistência miocárdica). O posicionamento das diretrizes está na tabela 1.

Disfunção miocárdica e sepse

Para pacientes com choque séptico e disfunção cardíaca que estão com volemia e pressão arterial adequadas, mas que persistem com sinais de hipoperfusão, a Surviving Sepsis Campaign sugere adicionar dobutamina à noradrenalina [11]. Outra opção sugerida pelos autores é utilizar adrenalina isoladamente.

Nesse cenário, as evidências para associação de inotrópicos também são conflitantes. Estudos observacionais incluindo outros inotrópicos, como levosimendan, demonstram aumento ou diminuição de mortalidade a depender da análise [12-16]. A adrenalina é uma alternativa à associação de noradrenalina e dobutamina na sepse, pelo seu efeito inotrópico em doses menores.

Bradiarritmias e exames diagnósticos

Bradiarritmias

Em bradiarritmias com sinais de instabilidade hemodinâmica, a recomendação do Advanced Cardiac Life Support (ACLS) é de utilizar dopamina ou adrenalina para estabilização clínica até a passagem de marcapasso transvenoso. As principais bradiarritmias consideradas são bloqueios atrioventriculares de 2º e 3º grau. A diretriz da AHA de bradiarritmias de 2018 sugere que a dobutamina é uma opção nesse cenário, além de dopamina e adrenalina [17, 18]. Esse documento também sugere a dobutamina como alternativa para bradicardia sintomática associada à disfunção do nó sinusal. Em alguns serviços, a dobutamina pode ser preferível devido à disponibilidade e experiência com o uso do medicamento. 

Exames diagnósticos

A dobutamina é usada em testes diagnósticos como no ecocardiograma e na cintilografia de perfusão com estresse farmacológico [18].

Ao aumentar a demanda energética do coração com o uso da dobutamina, é possível evidenciar áreas com hipocaptação do radiofármaco no esforço, no caso da cintilografia, ou alterações segmentares da contratilidade, no caso do ecocardiograma. Essa manobra farmacológica permite o diagnóstico de coronariopatia e a avaliação de viabilidade miocárdica (recomendação I, nível de evidência B, para pacientes com probabilidade pré-teste moderada a alta de doença arterial coronariana).

Como prescrever

A dobutamina está disponível em ampolas com concentração de 250 mg/20 ml e pode ser diluída em solução glicosada a 5% ou solução fisiológica a 0,9%, sem necessidade de proteção à luz. Pode ser iniciada em acesso venoso periférico, mas soluções mais concentradas apresentam maior risco de flebite.

Como os pacientes que necessitam de dobutamina geralmente apresentam restrição hídrica devido ao quadro de insuficiência cardíaca, uma estratégia para reduzir o volume infundido é preparar uma solução mais concentrada. 

Exemplo de solução concentrada: 

  • Diluir 4 ampolas de dobutamina (1.000 mg/80 ml) em 170 ml de soro.  
  • Solução final: 1.000 mg em 250 ml → concentração de 4 mg/ml (4.000 mcg/ml).  

A dose varia de 2,5 a 20 mcg/kg/min, sendo ajustada a cada 10 minutos conforme a resposta clínica.

A dobutamina é contraindicada em pacientes sem sinais de baixo débito cardíaco (recomendação classe III pela diretriz brasileira de insuficiência cardíaca). Na cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva, pode agravar a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, resultando em aumento do gradiente pressórico. Além disso, em casos de feocromocitoma, pode desencadear crises adrenérgicas.

Os principais efeitos colaterais durante o uso são taquiarritmias, com possibilidade de agravo da isquemia miocárdica em pacientes com doença coronariana. Outros efeitos menos comuns estão na tabela 3.

Tabela 3
Eventos adversos relacionados ao uso de dobutamina
Eventos adversos relacionados ao uso de dobutamina

Recomendações específicas

  • Pacientes hipotensos: para pacientes com pressão arterial sistólica abaixo de 85-90 mmHg, recomenda-se iniciar um vasopressor (preferencialmente noradrenalina) antes da infusão de dobutamina para assegurar a perfusão sistêmica e coronariana. À medida que a dose de dobutamina é ajustada e ocorre aumento do volume sistólico, pode-se considerar o desmame progressivo da noradrenalina.
  • Uso de beta-bloqueadores: devido ao efeito inotrópico negativo dos beta-bloqueadores, recomenda-se suspender temporariamente esses fármacos durante o uso de dobutamina. Pode ser necessário utilizar doses mais elevadas de dobutamina para atingir o efeito desejado nesses pacientes.

Como fazer o desmame

O desmame da dobutamina deve ser realizado de forma gradual após a resolução da causa da descompensação e da congestão sistêmica. 

Em pacientes com insuficiência cardíaca crônica, utilizam-se vasodilatadores para redução da pós-carga, reduzindo o trabalho cardíaco para manter o débito. Apesar de empregada na prática, não são encontradas na literatura descrições detalhadas de como realizar esse desmame. Deve-se considerar particularidades de cada paciente. A seguir, descrevemos uma sugestão de desmame comum.

Os principais vasodilatadores empregados são:

  • Inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) – O captopril é frequentemente utilizado devido à sua curta meia-vida, permitindo ajustes rápidos.
  • Hidralazina e nitratos – Indicados em pacientes com disfunção renal, como alternativa ao iECA [19].

Para pacientes com pressão arterial limítrofe, os nitratos intravenosos (como o nitroprussiato de sódio) são preferidos, por possuírem titulação mais precisa e rápida resolução do efeito após suspensão. Após alcançar a dose máxima tolerada do nitrato, assegurando uma pressão arterial média (PAM) acima de 65 mmHg, realiza-se a transição para a via oral (tabela 4).

Tabela 4
Doses dos vasodilatadores
Doses dos vasodilatadores

Após garantir a vasodilatação adequada, o desmame do inotrópico pode ser iniciado. A redução da dose de dobutamina deve ser feita conforme a tolerância individual de cada paciente, geralmente entre 1 a 3 mcg/kg/min a cada 6 a 24 horas. Em alguns casos, pode ser necessário conduzir o processo de forma mais lenta, ao longo de dias.

Durante o desmame, deve-se reavaliar parâmetros clínicos e laboratoriais de perfusão, como alteração no nível de consciência, náuseas, tontura, perfusão periférica e diurese, assim como função renal e níveis séricos de lactato.

Refratariedade

Tabela 5
Mnemônico INEEDHELP para insuficiência cardíaca avançada
Mnemônico INEEDHELP para insuficiência cardíaca avançada

Alguns pacientes com insuficiência cardíaca podem não tolerar a retirada do inotrópico, indicando doença avançada (tabela 5). Nesses casos, a dobutamina pode ser mantida para garantir a estabilidade clínica, funcionando como ponte para outras terapias, como dispositivos de assistência circulatória de longa duração (como HeartMate 3) ou transplante cardíaco (classificação INTERMACS 3, que confere prioridade na fila, conforme tabela 6). Outra aplicação nesse cenário é para alívio de sintomas no contexto de cuidados paliativos. [20].

Tabela 6
Classificação INTERMACS - interagency registry for mechanically assisted circulatory support
Classificação INTERMACS - interagency registry for mechanically assisted circulatory support

Diretriz Americana de Doença Celíaca: Diagnóstico e Tratamento

Criado em: 03 de Março de 2025 Autor: Marcela Belleza Revisor: João Mendes Vasconcelos

A doença celíaca é uma condição imunomediada induzida pela exposição alimentar ao glúten. As manifestações são variadas, entre sintomas gastrointestinais e extraintestinais. O único tratamento eficaz é a dieta isenta de glúten. Este tópico revisa o diagnóstico e o manejo da doença celíaca, embasado principalmente pela diretriz do American College of Gastroenterology (AGC), de 2023 [1].

Definição, manifestações e quando pesquisar

A doença celíaca é uma condição imunomediada, desencadeada pela exposição alimentar ao glúten. O glúten é um complexo de proteínas composto pelas proteínas gliadina e glutenina presente em cereais como trigo, centeio e cevada. A prevalência estimada no Brasil é entre 0,3 e 1,3%, no entanto, alguns estudos nacionais sugerem que a condição é subdiagnosticada [2, 3 ,4].

Tabela 1
Manifestações clínicas associadas à doença celíaca
Manifestações clínicas associadas à doença celíaca

Os sintomas podem ser divididos em gastrointestinais e extraintestinais (tabela 1). Entre as formas gastrointestinais, são frequentes diarreias crônicas, distensão abdominal, dor abdominal e perda de peso. Das manifestações extraintestinais, destacam-se:

  • Dermatite herpetiforme: ocorre em até 10% dos adultos com doença celíaca [5]. É caracterizada por vesículas dolorosas em joelhos, cotovelos e couro cabeludo (figura 1) [6, 7].
  • Deficiências nutricionais: anemia ferropriva, deficiência de ferro, vitamina B12 e vitamina D (levando à osteopenia).
  • Elevação de transaminases: a doença celíaca é um diagnóstico diferencial desse achado laboratorial [8]. Veja mais sobre a investigação de elevação de transaminases no tópico "Abordagem à Elevação de Enzimas Hepáticas".
Figura 1
Dermatite herpetiforme
Dermatite herpetiforme

Em casos mais graves, podem ocorrer desnutrição e atraso de crescimento e desenvolvimento em crianças. O risco de linfoma intestinal é maior em pacientes com doença celíaca não tratada [9]. 

Não há recomendação de rastreio universal para doença celíaca [10]. A diretriz do American College of Gastroenterology (ACG) recomenda que a doença seja pesquisada nos seguintes grupos:

  • Pacientes com sinais e sintomas sugestivos: manifestações gastrointestinais, extraintestinais e alterações laboratoriais (tabela 1).
  • Familiares de primeiro grau de pacientes com doença celíaca. Especialmente se apresentarem manifestações clínicas ou laboratoriais sugestivas.
  • Indivíduos com diabetes tipo 1 que apresentem sintomas gastrointestinais ou baixa estatura, com diminuição da velocidade de crescimento.
Tabela 2
Condições possivelmente associadas à doença celíaca
Condições possivelmente associadas à doença celíaca

Outras condições que podem estar associadas à doença celíaca estão listadas na tabela 2 [1].

Diagnóstico de doença celíaca

A maioria das diretrizes recomenda que o diagnóstico seja estabelecido pela combinação de manifestações clínicas, sorológicas e histopatológicas (fluxograma 1) [1]. Os testes sorológicos e histopatológicos devem ser realizados enquanto o paciente está exposto ao glúten. A retirada prolongada do glúten da dieta (> 12 meses) pode negativar a presença de autoanticorpos e reverter a atrofia de vilosidades do duodeno [9].

Fluxograma 1
Diagnóstico de doença celíaca segundo o American College of Gastroenterology
Diagnóstico de doença celíaca segundo o American College of Gastroenterology

Sorologias

O exame de escolha para iniciar a investigação de doença celíaca é o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA (anti-TTG IgA). Deve-se dosar também a IgA total, visto que a deficiência de IgA é mais frequente em pacientes com doença celíaca, podendo interferir na interpretação do anti-TTG IgA [11, 12].

Outras sorologias podem auxiliar o diagnóstico quando existe alta probabilidade de doença celíaca associada à deficiência de IgA ou quando o anti-TTG IgA é negativo. A diretriz recomenda complementar a investigação nesses casos com a dosagem de anticorpos da classe IgG: anti peptídeo de gliadina deaminada (anti-DGP) ou anti-TTG IgG [1]. O papel do anti-endomísio (EMA) se limita à confirmação diagnóstica de pacientes com alto título de anti-TTG IgA, especialmente em crianças sem critérios para biópsia duodenal (ver fluxograma 1).

O desempenho das sorologias no diagnóstico está descrito na tabela 3.

Tabela 3
Performance das sorologias para o diagnóstico de doença celíaca
Performance das sorologias para o diagnóstico de doença celíaca

Endoscopia e biópsia de intestino delgado

A endoscopia digestiva alta com biópsia de intestino delgado deve ser realizada quando houver positividade de anti-TTG IgA ou alta suspeição de doença celíaca [1]. As alterações macroscópicas na endoscopia de duodeno são pregas mucosas serrilhadas, padrão em mosaico, pregas achatadas, menor tamanho e desaparecimento das pregas [13]. Mesmo na ausência de alterações macroscópicas, devem ser realizadas pelo menos quatro biópsias do duodeno distal e uma do bulbo duodenal se houver suspeita de doença celíaca [1].  

Os achados histológicos esperados são:

  • Aumento do número de linfócitos intraepiteliais.
  • Atrofia de vilosidades.
  • Hiperplasia de criptas.
Tabela 4
Classificação de Marsh
Classificação de Marsh

A classificação de Marsh é utilizada para quantificar esses achados (tabela 4). As alterações histológicas descritas são frequentes na doença celíaca, mas podem ocorrer em outras condições (tabela 5).

Tabela 5
Possíveis causas de atrofia de vilosidades em intestino delgado
Possíveis causas de atrofia de vilosidades em intestino delgado

Em pacientes com sorologias limítrofes ou biópsia duvidosa, pode-se repetir a sorologia após algum tempo de reintrodução controlada de glúten, se a condição clínica permitir [1].

Pacientes que não podem realizar endoscopia

Nesse grupo, a diretriz do ACG possibilita o diagnóstico a partir de: 

  • Títulos de anti-TTG IgA > 10 vezes o limite superior da normalidade, em conjunto com:
    • Positividade de anti-endomísio (EMA). 
    • Presença do HLA DQ2/DQ8. Este teste, embora não seja obrigatório, fortalece a hipótese diagnóstica [1].
  • Biópsia de pele compatível com dermatite herpetiforme [7, 14]. O achado característico na imunofluorescência direta são depósitos granulares de IgA na derme.

HLA DQ2/DQ8

Quase 100% dos pacientes com doença celíaca possuem HLA DQ2/DQ8 [6, 15]. A ausência do HLA DQ2/DQ8 praticamente exclui essa hipótese em casos de dúvidas. No entanto, é um exame pouco disponível e não deve ser realizado na rotina de investigação de doença celíaca. A principal indicação é em situação de dúvida diagnóstica, como a divergência entre testes sorológicos e histológicos ou em indivíduos que já seguem uma dieta isenta em glúten [1].

Tratamento e acompanhamento da doença celíaca

A dieta isenta em glúten é a única terapia eficaz para doença celíaca até o momento. Pacientes com esse diagnóstico devem receber orientações nutricionais específicas, para adequação do consumo de fibras e minerais [1]. A adesão à dieta pode ser um desafio, especialmente entre adolescentes, indivíduos oligossintomáticos e com menor poder aquisitivo [7].

A diretriz do ACG recomenda que não sejam usadas ferramentas para verificação de glúten na dieta [1]. Essa recomendação se baseia em estudos que não evidenciaram melhora da qualidade de vida ou na adesão à dieta a partir do uso dessas ferramentas [16].

A aveia não possui glúten naturalmente, mas existem relatos de presença de glúten em produtos com aveia por contaminação. Não há recomendação de exclusão desse alimento para todos os pacientes com doença celíaca. Contudo, a diretriz orienta que o consumo deva ser monitorado, tendo atenção para o surgimento de sintomas [1].

A dieta isenta em glúten pode melhorar os sintomas nos primeiros 60 dias de tratamento em até 80% dos pacientes [1]. Uma cartilha com recomendações gerais para essa dieta está disponível aqui

Não há consenso sobre a realização de endoscopia ou biópsias de controle em pacientes aderentes à dieta isenta em glúten [1]. A dosagem de anti-TTG IgA durante o tratamento auxilia a avaliar a adesão. Positividade após 12 meses de tratamento é um forte indicador de que o paciente segue ingerindo glúten. A normalização sorológica, no entanto, não é capaz de predizer a melhora da atrofia de vilosidades [1, 17].

Os pacientes com doença celíaca devem ser investigados quanto à presença de deficiências nutricionais e doenças associadas. Recomenda-se avaliação do perfil de ferro, ácido fólico, vitamina B12, cálcio, fosfato e vitamina D. Devem ser pesquisadas doenças imunomediadas (com avaliação de TSH e glicemia) e hepáticas (dosagem de transaminases) [1, 17]. 

Pacientes com doença celíaca possuem maior risco de infecções pelo S. pneumoniae [1, 18]. Isso pode ser explicado pelo hipoesplenismo que ocorre em até um terço dos pacientes [1, 6, 19]. A diretriz do ACG sugere que os pacientes com o diagnóstico sejam vacinados [6]. Leia mais sobre a vacina pneumocócica no tópico "Vacina Pneumocócica no Adulto". Outras diretrizes recomendam ainda a vacinação para Haemophilus influenzae e Meningococcus [17].