Anticoagulação na Fibrilação Atrial com Doença Valvar Reumática

Criado em: 19 de Setembro de 2022 Autor: Kaue Malpighi

Em agosto de 2022 ocorreu o congresso da European Society of Cardiology (ESC) e um dos estudos apresentado foi o INVICTUS [1]. Este trabalho avaliou pacientes com fibrilação atrial e doença valvar reumática com a hipótese de que a rivaroxabana seria não-inferior à varfarina. Vamos aproveitar para revisar anticoagulação na fibrilação atrial e comentar o que este artigo acrescentou.

Quando indicar anticoagulação?

Tabela 1
CHA2DS2-VASc
CHA2DS2-VASc

Anticoagulação é uma terapia bem estabelecida que reduz o risco de acidente vascular encefálico (AVC) e morte em pacientes com fibrilação atrial (FA). A indicação é feita conforme o risco de eventos embólicos (avaliado pelo CHA2DS2-VASc - veja tabela 1) e sexo:

  • Em homens - anticoagular se CHA2DS2-VASc ≥ 2.
  • Em mulheres - anticoagular se CHA2DS2-VASc ≥ 3.
Tabela 2
HAS-BLED
HAS-BLED

Quando a decisão é por anticoagular, o risco de sangramento do paciente sempre deve ser avaliado. Isso auxilia na busca de fatores modificáveis para sangramento e identifica os pacientes que necessitam de um acompanhamento mais próximo. Este risco deve ser avaliado pelo escore HAS-BLED (veja tabela 2).

Varfarina ou anticoagulantes orais diretos?

Nos últimos 50 anos, a varfarina foi a droga mais estudada e utilizada na FA. Seu uso está associado a um estreito intervalo terapêutico e necessidade de monitorização frequente do tempo de atividade de protrombina (TAP/INR) para ajuste de dose.

Desde 2009, quatro estudo principais mostram a não-inferioridade dos anticoagulantes orais diretos (DOACs - dabigatrana, apixabana, edoxabana e rivaroxabana) com relação à varfarina em termos de redução de risco de AVC [2-4]. Em uma meta-análise destes estudos, os DOACs apresentaram um risco menor de eventos embólicos, AVC hemorrágico e mortalidade [5].

Estes estudos excluíram os pacientes que apresentavam estenose mitral moderada a grave (particularmente de origem reumática) ou valva mecânica. Assim, existe a dúvida se poderíamos utilizar os DOACs nesta população.

Fibrilação atrial valvar e não-valvar

Os primeiros estudos com varfarina para prevenção de eventos embólicos foram em pacientes com doença reumática (principalmente com estenose mitral) e valvas mecânicas, sendo classificadas como FA valvar. Ao longo dos últimos 25 anos, este benefício também foi comprovado no pacientes com FA não-valvar.

Os termos FA valvar e não-valvar apresentam grande heterogeneidade na literatura, gerando confusão entre clínicos e cardiologistas que tratam esses pacientes [6]. Isso pode atrapalhar o planejamento terapêutico e as pesquisas clínicas.

Tabela 3
Uso dos anticoagulantes diretos (DOACs) na fibrilação atrial
Uso dos anticoagulantes diretos (DOACs) na fibrilação atrial

Com esta consideração, a diretriz europeia de FA de 2016 e a diretriz dos Estados Unidos de 2019 abandonaram o termo valvar e não-valvar [7, 8]. Estas diretrizes especificam que apenas a estenose mitral moderada a grave (especialmente na doença reumática mitral) e a prótese mecânica são contraindicações ao uso dos DOACs, sendo que estes casos seriam os equivalentes à FA "valvar" na literatura atual. As demais condições seriam consideradas como FA "não-valvar" (ver tabela 3).

O que o estudo INVICTUS evidenciou?

O estudo INVICTUS avaliou se a rivaroxabana seria não-inferior à varfarina para prevenir eventos tromboembólicos em pacientes com doença valvar reumática. O desfecho primário avaliado foi uma composição de AVC, embolia sistêmica, infarto ou morte de causa cardiovascular. Foram randomizados 4565 pacientes com fibrilação atrial e valvopatia reumática, sendo 85% com estenose mitral e 81,9% com estenose moderada-grave (área valvar ≤ 2.0 cm2).

O estudo encontrou um aumento do desfecho primário composto com o uso da rivaroxabana em relação à varfarina (8,21% versus 6,49% ao ano, respectivamente; hazard ratio - HR - 1,25; intervalo de confiança - IC - 95% 1,10-1,41; P < 0,001). Este aumento do desfecho composto ocorreu principalmente pelo aumento da ocorrência de AVC e morte. No desfecho de segurança, sangramento maior, não houve diferença.

Tabela 4
Exemplo de normograma para início de varfarina
Exemplo de normograma para início de varfarina

O maior benefício da varfarina foi visto após 12 meses de acompanhamento. O tempo em intervalo terapêutico (TTR), uma proporção do tempo em que o paciente apresentou INR dentro da faixa terapêutica, se aproximou de 65% (ideal seria de ≥ 65%). Para atingir esta faixa, utilizou-se normogramas válidados para o controle terapêutico (veja exemplos na tabela 4 e tabela 5).

Uma crítica ao estudo é o viés de tratamento diferencial. Os pacientes do grupo varfarina apresentaram contatos mais frequentes com médicos. Essa consideração é importante, pois a prevenção de eventos embólicos na FA é multimodal, envolvendo não somente anticoagulação, mas também manejo de sintomas centrado no paciente e controle de fatores de risco cardiovasculares. O contato frequente com assistência médica poderia resultar em melhor controle dos fatores de risco, favorecendo pacientes do grupo varfarina [9]. Porém, apenas uma pequena parcela da população do estudo apresentava outras comorbidades (25% com hipertensão, 6.4% com diabetes e 1.1% com doença coronariana), de modo que esse fator isoladamente não explica a diferença encontrada.

Tabela 5
Exemplo de normograma para manutenção de varfarina com meta de RNI 2 - 3
Exemplo de normograma para manutenção de varfarina com meta de RNI 2 - 3

Este estudo enfatiza que o anticoagulante de escolha na FA com valvopatia reumática é a varfarina, não sendo recomendado o uso dos DOACs. Além disso, reforça a necessidade do acompanhamento mais estrito do intervalo terapêutico da varfarina.

Revascularização na Miocardiopatia Isquêmica

Criado em: 19 de Setembro de 2022 Autor: João Mendes Vasconcelos

A doença arterial coronariana é a principal causa de miocardiopatia no mundo. O estudo REVIVED, anunciado no congresso da European Society of Cardiology (ESC) de 2022, avaliou se a revascularização através de angioplastia poderia ser benéfica em pacientes com miocardiopatia isquêmica [1]. Vamos ver o que essa nova evidência acrescentou e revisar o tópico.

Avaliação de coronariopatia em pacientes com insuficiência cardíaca

A miocardiopatia (MCP) isquêmica é a principal causa de MCP em vários locais. Doença arterial coronariana (DAC) quase sempre deve ser pesquisada na investigação etiológica de um paciente com insuficiência cardíaca (IC). Existem evidências que apontam que nem sempre isso é feito [2]. Diagnosticar DAC está associado a maior aderência à terapia orientada nas diretrizes.

Dor torácica não é um bom indicativo de DAC em pacientes com IC, já que muitos pacientes com MCP não isquêmica apresentam dor torácica. O exame inicial para investigação pode ser um exame funcional (ecocardiograma de estresse ou cintilografia miocárdica) ou, em pacientes de alto risco, angiografia. Os exames anatômicos não invasivos como angiotomografia de coronárias e ressonância magnética são métodos promissores nessa investigação.

Diagnosticar DAC em um paciente com IC não implica que a MCP seja isquêmica. A presença de infarto prévio ou miocárdio hibernante favorecem a possibilidade de MCP isquêmica. Miocárdio hibernante significa uma região do miocárdio que apresenta redução da contratilidade em consequência de redução do fluxo sanguíneo, mas que apesar disso ainda não sofreu morte celular e fibrose. Como o miocárdio nessas regiões ainda é viável, a função ventricular pode ser total ou parcialmente recuperada se houver revascularização. Uma das maneiras de avaliar a presença de miocárdio hibernante é através do ecocardiograma com dobutamina. Nesse teste, caso ocorra melhora da função contrátil de um setor do miocárdio após a dobutamina, considera-se que há a possibilidade de miocárdio hibernante naquela região.

Evidência de benefício de revascularização cirúrgica

A melhor evidência de benefício de revascularização em MCP isquêmica vem dos estudos STICH e STICHES.

O estudo STICH foi publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) em 2011 randomizando 1212 pacientes para revascularização cirúrgica e terapia médica otimizada ou terapia médica otimizada isolada [3]. Os cirurgiões do estudo tinham que divulgar seu desempenho cirúrgico e deveriam ter menos de 5% de mortalidade. Não houve diferença de mortalidade entre os grupos.

Os pacientes foram seguidos por 10 anos e os resultados também publicados no NEJM no estudo STICHES [4]. Nesse trabalho, houve diferença de mortalidade favorecendo o grupo de revascularização cirúrgica.

A revascularização cirúrgica é recomendada em diretrizes para pacientes selecionados com fração de ejeção (FE) menor que 35%, desde que haja anatomia coronariana favorável [5].

O que essa nova evidência acrescenta?

O estudo REVIVED-BCIS2 randomizou 700 pacientes no Reino Unido para terapia medicamentosa e intervenção coronariana percutânea (ICP) ou terapia medicamentosa isolada. Todos os pacientes tinham FE menor que 35%, DAC extensa e viabilidade miocárdica demonstrada. O desfecho primário foi uma composição de morte por todas as causas e hospitalização por IC. Era exigido que a ICP tentasse revascularizar todos os vasos coronarianos proximais a áreas de miocárdio viável.

No seguimento médio de 3,4 anos, não houve diferença entre os grupos no desfecho composto. Avaliando cada desfecho isoladamente, também não houve diferença.

Apesar do resultado negativo, o estudo reforça que a terapia medicamentosa funciona bem, independente da revascularização. Ao invés de correr para a hemodinâmica, é necessário otimizar a terapia medicamentosa dos pacientes com IC.

Polipílula no Pós Infarto Agudo do Miocárdio

Criado em: 19 de Setembro de 2022 Autor: Raphael Coelho

O estudo SECURE, publicado no New England Journal of Medicine , avaliou a estratégia da polipílula em pacientes que haviam infartado recentemente [1]. Vamos tentar desmistificar esse tema e trazer os resultados de um dos estudos mais debatidos no congresso da European Society of Cardiology (ESC) de 2022.

O que é a polipílula?

Polipílula é a combinação de mais de um medicamento em um mesmo comprimido ou cápsula, no intuito de aumentar a adesão. As doses fixas limitam as variações possíveis na administração de cada um dos componentes. Essa estratégia já é utilizada no tratamento do HIV e hepatite C.

O termo surgiu em 2003 por pesquisadores que propuseram que todos os pacientes acima de 55 anos usassem uma polipílula composta por ácido acetilsalicílico (AAS), estatina, ácido fólico e anti-hipertensivos [2]. Mesmo considerando que apenas um terço dos pacientes se beneficiaria, na argumentação dos autores essa abordagem reduziria em 80% os eventos cardiovasculares. Essa estratégia não considerava as características individuais dos pacientes, levando ao tratamento de muitas pessoas de baixo risco.

Estudos como o FOCUS, IMPACT e UMPIRE encontraram que pacientes de alto risco cardiovascular ou com doença cardiovascular estabelecida tinham maior adesão ao tratamento com estatina, aspirina e anti-hipertensivos, se combinados em um único comprimido [3-5].

O uso da polipílula após um infarto agudo do miocárdio (IAM) é oportuno por que todos os pacientes devem receber AAS, estatina e inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) antes da alta hospitalar. Essa é uma ocasião em que um paciente que muitas vezes não tomava remédio algum passa a tomar várias medicações, dificultando a adesão.

O estudo

O estudo SECURE avaliou o uso da polipílula para pacientes com mais de 65 anos que haviam infartado recentemente. A polipílula era composta por AAS (100 mg), ramipril (2,5; 5 ou 10 mg) e atorvastatina (40 mg), sendo comparada com o tratamento convencional. De 2016 a 2019, mais de 100 centros na Europa acompanharam 2499 pacientes por 4 anos. Todos os participantes tiveram infarto agudo do miocárdio tipo 1 (por lesão de placa aterotrombótica) nos 6 meses anteriores. O desfecho primário foi um composto de morte cardiovascular, IAM tipo 1 não fatal, acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico não fatal e revascularização coronária de urgência. O aumento da dose do ramipril até o alvo de 10 mg/dia foi feito em um intervalo de 3 semanas. Ainda havia a possibilidade de redução da dose da atorvastatina para 20 mg, em caso de opção do médico assistente.

Resultados

A média de idade foi de 75 anos e a maioria dos participantes eram homens brancos aposentados com escolaridade menor do que o ensino médio. Um número semelhante de pacientes desistiu do estudo nos dois grupos, mas a adesão ao tratamento foi maior no grupo polipílula, tanto em 6 como em 24 meses de acompanhamento.

Houve superioridade do grupo polipílula no desfecho composto - 12.7% no grupo usual e 9.5% no grupo polipílula. Todos os componentes do desfecho primário foram reduzidos, exceto revascularização de urgência. Apenas 40% dos pacientes do grupo controle fez uso de estatina de alta potência, contra 90% dos pacientes do grupo polipílula em uso de atorvastatina 40 mg/dia.

O que esse estudo acrescenta?

Esse trabalho veio para abordar o problema da má adesão à prevenção secundária, o que leva a eventos cardiovasculares isquêmicos recorrentes, estimados em torno de 50% pelos trabalhos tradicionais. A polipílula simplifica o tratamento e pode ser uma estratégia aplicada a nível populacional. Esse estudo demonstrou que o uso da polipílula resultou em menor risco de eventos adversos cardiovasculares em relação ao tratamento convencional. Os resultados são aplicáveis principalmente para população de idosos, incluindo pacientes diabéticos, com doença renal crônica e eventos coronarianos prévios.