Estenose de Carótida Assintomática

Criado em: 24 de Outubro de 2022 Autor: Raphael Coelho

Algumas diretrizes recomendam a revascularização de pacientes com estenose de carótida assintomática. Os estudos que demonstraram benefício com essa conduta são antigos, quando o tratamento clínico não era tão eficaz. Não sabemos se os resultados seriam os mesmos no contexto terapêutico atual. O SPACE-2, publicado no Lancet Neurology em outubro de 2022, foi desenhado para tentar tirar essa dúvida [1].

Qual é o tamanho do problema?

Estenose da artéria carótida é uma manifestação da doença ateromatosa. Em torno de 10% dos acidentes vasculares cerebrais isquêmicos (AVCi) são causados por aterosclerose carotídea e costumam se originar de ateromas na artéria carótida interna e no bulbo carotídeo [2]. Quanto maior o grau de obstrução, maior é o risco de AVCi [3].

Tabela 1
Conceitos importantes na estenose de carótida
Conceitos importantes na estenose de carótida

Clinicamente, deve-se quantificar o grau de obstrução e classificar a doença em sintomática ou assintomática. A mensuração do grau de obstrução é feita com exames de imagem, comumente a ultrassonografia com Doppler. A doença é considerada sintomática quando há déficit neurológico focal justificado pela estenose. A tabela 1 traz essas informações.

Devemos rastrear estenose carotídea?

Em 2021, a United States Preventive Services Taskforce (USPSTF) se posicionou contra o rastreio da estenose carotídea na população geral [4]. American Heart Association (AHA) e American Stroke Association (ASA) concordam com a recomendação da USPSTF [5]. A justificativa é que o benefício do tratamento da doença assintomática é pequeno e o malefício da intervenção pode ser muito grande. A incidência de AVCi e morte em até 30 dias de pós-operatório pode chegar a 5%. Além disso, a ultrassonografia pode superestimar a obstrução, levando a falsos-positivos.

Por outro lado, a Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular recomenda considerar o rastreio nos pacientes com múltiplos fatores de risco para AVCi e naqueles com doença arterial obstrutiva periférica ou outra doença cardiovascular estabelecida, com o objetivo de otimizar a terapia clínica [6].

O que fazer na estenose carotídea sintomática?

Todos os pacientes devem receber tratamento clínico. A abordagem cirúrgica é recomendada nas estenoses graves sintomáticas a partir de 50% de obstrução, com uma maior evidência de benefício nas estenoses graves (> 70%) [7]. Veja a tabela 2.

Tabela 2
Abordagem da estenose de carótida AHA/ASA
Abordagem da estenose de carótida AHA/ASA

Não há consenso sobre a melhor técnica de revascularização. Os resultados variam conforme a experiência do centro e do cirurgião. Uma revisão da Cochrane de 2020 mostrou menor risco de AVC e morte periprocedimento para endarterectomia em relação ao tratamento endovascular (stent) [8]. A superioridade da endarterectomia é ainda maior nos pacientes com mais de 75 anos pelo menor risco de AVC no perioperatório.

O que fazer na estenose carotídea assintomática?

O primeiro passo é garantir que não houve um evento isquêmico que reclassifique o paciente como estenose sintomática.

Tabela 3
Fatores que aumentam o risco de AVCi na estenose de carótida assintomática
Fatores que aumentam o risco de AVCi na estenose de carótida assintomática

Recomendações mais antigas consideram razoável a endarterectomia em pacientes assintomáticos com obstrução > 70% [9]. Outras entidades, como a Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular, recomendam incluir na avaliação alguns fatores de risco específicos que aumentam a chance de AVCi (veja a tabela 3) [10].

Estudo SPACE-2

Com a melhora do tratamento clínico, a incidência atual de AVCi em pacientes assintomáticos com estenose > 70% é semelhante ou menor do que a incidência em pacientes que receberam intervenção cirúrgica nos estudos antigos que justificaram as recomendações comentadas [11, 12]. Por isso, há necessidade de novos estudos para verificar se o benefício permanece no contexto terapêutico atual.

O estudo SPACE-2 foi o primeiro ensaio clínico randomizado feito comparando tratamento clínico, endarterectomia e tratamento endovascular, em três grupos distintos. Foi um trabalho multicêntrico, aberto, de fase 3, realizado na Alemanha, Áustria e Suíça. Mais de 500 pacientes entre 50 a 85 anos com obstrução > 50% da carótida comum ou carótida interna extracraniana foram acompanhados por 5 anos. O estudo não atingiu o número planejado de pacientes e precisou mudar o protocolo no meio do caminho, o que diminuiu o poder e a confiança em suas conclusões.

Não houve diferença entre os grupos no desfecho primário, que foi um composto de morte ou AVC em 30 dias ou AVC do mesmo lado da estenose em 5 anos.

Recomenda-se cautela na interpretação dos achados pelos problemas metodológicos do estudo. Outros trabalhos bastante aguardados, como o CREST-2, devem sair nos próximos anos para tirar as dúvidas que permaneceram.

Manejo Medicamentoso no Perioperatório

Criado em: 24 de Outubro de 2022 Autor: Joanne Alves Moreira

Este tópico foi atualizado. Acesse "Atualização sobre Inibidores do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona no Perioperatório" para ver as novidades.

Em agosto de 2022, ocorreu o congresso da European Society of Cardiology (ESC) e foi apresentada a nova diretriz de avaliação perioperatória para cirurgias não cardíacas [1]. Vamos aproveitar para revisar o manejo medicamentoso no perioperatório e comentar as principais atualizações.

Betabloqueadores

Os betabloqueadores (BBQ) reduzem o consumo de oxigênio no miocárdio ao reduzir a força contrátil e a frequência cardíaca. Estas propriedades explicam por que os betabloqueadores têm sido frequentemente testados em pacientes submetidos às cirurgias não cardíacas (CNC).

Os estudos iniciais sugeriram que essa classe seria capaz de reduzir a morbimortalidade cardiovascular no perioperatório, porém esse efeito não foi confirmado por trabalhos posteriores [2-4]. Além disso, os estudos encontraram uma possível associação com maior incidência de bradicardia e hipotensão.

O estudo POISE randomizou 8.351 pessoas, a maioria de risco intermediário de complicações, para receber metoprolol ou placebo [5]. O metoprolol era iniciado 2 a 4 horas antes da cirurgia na dose de até 400 mg e mantido por até 30 dias. O desfecho primário era infarto agudo do miocárdio (IAM) não fatal, parada cardíaca não fatal e mortalidade cardiovascular. Os resultados mostraram uma menor incidência do desfecho no grupo que utilizou BBQ. No entanto, o grupo do metoprolol apresentou maior incidência de AVC e mortalidade global (hazard ratio 2.17, 95% IC = 1.26-3.74; p=0.0053), além de alta incidência de hipotensão e bradicardia clinicamente significativas.

Uma metanálise averiguou se não somente o uso de BBQ, mas o controle rígido da frequência cardíaca (FC), poderia levar a melhores desfechos [6]. Quando os autores dividiram os pacientes em dois grupos com base na FC máxima, notou-se que os trabalhos cuja FC máxima estimada foi menor que 100 bpm estavam associados à cardioproteção (odds ratio = 0,23; 95% CI = 0,08-0,65; p = 0,005) enquanto os trabalhos em que a FC máxima estimada era maior que 100 bpm não demonstraram cardioproteção (odds ratio = 1,17; 95% CI = 0,79-1,80; p= 0,43).

A Diretriz de Perioperatório da ESC afirma que o início rotineiro de BBQ não é recomendado (grau de recomendação III, nível de evidência A). O documento também indica que o uso de BBQ antes de CNC pode ser benéfico em pacientes com alto risco cardiovascular ou que estão se submetendo a intervenções cirúrgicas de alto risco, incluindo cirurgias vasculares (grau de recomendação IIb, nível de evidência A).

Quando o BBQ é iniciado em pacientes com doença arterial coronariana (DAC), devemos considerar o uso de atenolol ou bisoprolol como primeira escolha. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) orienta que, ao iniciar um BBQ, deve-se realizar titulação progressiva até FC de 55 a 65 bpm e evitar hipotensão (pressão arterial sistêmica < 100 mmHg) (grau de recomendação IIa, nível de evidência B).

Em pacientes com uso crônico da medicação, recomenda-se mantê-la no perioperatório, pois há aumento da mortalidade se houver retirada nesse período (grau de recomendação I, nível de evidência B).

Inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona

Dados sobre o uso no perioperatório dos inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) são inconclusivos. A maioria dos estudos sugere que o uso continuado está associado a um maior risco de hipotensão perioperatória, uso de vasopressores e inotrópicos. Sabe-se que hipotensão intraoperatória e sua duração estão associados a danos teciduais, incluindo lesão renal, injúria miocárdica e AVC.

O estudo PREOP-ACEI randomizou 275 pacientes para manutenção ou suspensão da dose de IECA pré-operatória [7]. Os pacientes randomizados para a omissão da última dose antes da cirurgia apresentaram menos hipotensão intraoperatória (55% vs. 95/138 69%) e menor chance de precisarem de vasopressores. Por outro lado, a hipertensão pós-operatória foi mais frequente no grupo que omitiu a dose.

A coorte observacional VISION estudou 4802 pacientes submetidos à CNC que utilizavam um IECA ou bloqueador do receptor da angiotensina (BRA) [8]. Os pesquisadores avaliaram se a descontinuação destes medicamentos nas 24 horas antes da cirurgia interferia em desfechos clínicos. Os resultados mostraram um menor risco de hipotensão intraoperatória (risco relativo ajustado 0,80; IC 95% = 0,72-0,93; p=0,001) e a uma redução no desfecho composto que consiste em mortalidade por todas as causas, AVC e IAM (risco relativo ajustado 0,82; IC 95% = 0,70-0,96; p=0,01).

Dados da revisão sistemática PROSPERO não mostraram associação entre a suspensão de IECA/BRA na manhã da cirurgia e mortalidade ou evento cardiovascular maior [9]. No entanto, confirmou que suspender a medicação teve associação com menos hipotensão intraoperatória (odds ratio 0,63; 95% IC = 0,47-0,85). Se um IECA/BRA for descontinuado antes da CNC, ele deve ser reiniciado o mais rápido possível a fim de evitar a omissão involuntária a longo prazo.

Em pacientes sem insuficiência cardíaca (IC), a ESC recomenda considerar a suspensão do inibidor do SRAA no dia da cirurgia para evitar hipotensão perioperatória (grau de recomendação IIa, nível de evidência B).

Inibidores do co-transportador de sódio-glicose-2 (SGLT-2)

O uso de inibidores do co-transportador de sódio-glicose-2 (iSGLT-2) está aumentando devido aos benefícios cardiovasculares para pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2), IC e insuficiência renal (veja mais em "Gliflozinas (inibidores da SGLT2)").

A cetoacidose diabética euglicêmica (CADE) é uma complicação rara, porém grave dessa classe. A incidência de CADE não aumentou significativamente com os iSGLT-2 nos ensaios clínicos randomizados, porém vários relatos de casos indicam que essa complicação pode ocasionalmente ocorrer após CNC [10]. O Food and Drug Administration (FDA) recomenda a interrupção de iSGLT-2 por pelo menos 3-4 dias antes da cirurgia programada e vigiar sintomas relacionados a CADE.

A ESC recomenda considerar a interrupção do iSGLT-2 por pelo menos 3 dias antes de cirurgias não cardíacas de risco intermediário e alto (grau de recomendação IIa, nível de evidência C).

Tabela 1
Manejo medicamentoso no peri-operatório
Manejo medicamentoso no peri-operatório

Veja um resumo sobre o manejo das medicações no perioperatório na tabela 1.

Imunoglobulina na Dermatomiosite

Criado em: 24 de Outubro de 2022 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Em outubro de 2022, foi publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) o trabalho PRODerm, estudo que avaliou uso de imunoglobulina no controle das manifestações clínicas de dermatomiosite [1]. Isso motivou o Guia a revisar dermatomiosite e a terapia com imunoglobulina.

Sobre Dermatomiosite

Dermatomiosite (DMT) é uma doença autoimune sistêmica caracterizada por inflamação crônica da pele e dos músculos. Alterações cutâneas (como rash periorbital violáceo e pápulas de Gottron) e fraqueza muscular proximal são achados clássicos. Duas manifestações atípicas de DMT são potencialmente graves e merecem destaque: pneumonia intersticial e disfagia.

Marcadores de lesão muscular podem estar elevados, como creatinofosfoquinase (CPK), aldolase, desidrogenase lática (DHL ou LDH) e transaminases. Em quadros típicos, exames complementares não são necessários, mas podem ajudar em casos de dúvida diagnóstica:

  • Eletroneuromiografia: Diferenciar de neuropatias. Útil em casos de doença assimétrica ou distal. Na DMT pode resultar em um padrão miopático, mas não é patognomônico.
  • Ressonância magnética: Pode encontrar hiperintensidade intramuscular ou perimuscular em T2. Bom exame para identificar o melhor local para biópsia.
  • Biópsia muscular: Atrofia perifascicular é específica, mas não é sensível para DMT. Pode apresentar também infiltrado muscular predominante de células dentríticas plasmocitárias, células B, células T CD4 e macrófagos.

Um dos critérios de classificação que pode auxiliar no diagnóstico é o do EULAR 2017, que inclui idade, clínica, laboratório e biópsia (veja a tabela 1) [2].

Tabela 1
Critério EULAR/ACR 2017 para miopatia inflamatória idiopática
Critério EULAR/ACR 2017 para miopatia inflamatória idiopática

O tratamento de primeira linha para dermatomiosite é com corticóides. A imunoglobulina intravenosa é uma opção utilizada junto com imunossupressores, geralmente em pacientes com acometimento grave da doença (como disfagia) ou como segunda ou terceira escolha, em casos refratários.

Imunoglobulina

A imunoglobulina intravenosa (IVIG) é um produto do sangue. Pode ser utilizada em baixas doses para quem tem deficiência de anticorpos, como imunodeficiência comum variável, na dose de 200–400 mg/kg; ou em altas doses para função imunomodulatória, na dose de 2 g/kg/mês (fracionada em 2 a 5 dias).

Os usos de IVIG são diversos, passando pela reumatologia, neurologia, dermatologia e várias outras especialidades (veja a tabela 2).

Tabela 2
Exemplos de doenças que podem ser tratadas com imunoglobulina
Exemplos de doenças que podem ser tratadas com imunoglobulina

Dos eventos adversos, destacam-se três:

  • Reações leves: Febre, sintomas gripais (influenza-like), cefaleia.
  • Trombogenicidade: Aumento do risco de eventos trombóticos venosos e arteriais. O risco se concentra nas primeiras 2 semanas de tratamento e está relacionado com a terapia de alta dose (> 1g/kg).
  • Anafilaxia: Pacientes que possuem deficiência de IgA, ao receber a imunoglobulina rica em IgA podem desenvolver um quadro de anafilaxia. A dosagem de IgA sérica pode estimar a probabilidade de isso ocorrer. Caso o paciente possua níveis baixos de IgA sérico, uma solução de imunoglobulina depletada de IgA pode impedir esse evento adverso.

Também podem ocorrer eventos adversos como reações transfusionais - lesão pulmonar relacionada à transfusão (TRALI), sobrecarga volêmica associada a transfusão (TACO) - hiperviscosidade e hiponatremia.

Sobre o estudo

O trial ProDERM é um trabalho prospectivo, randomizado e duplo cego, que randomizou 95 pacientes com dermatomiosite na Europa e América do Norte. Entravam no estudo pacientes que não obtiveram controle com corticóide ou imunossupressores ou que estavam atualmente em uso de corticoide e no máximo dois imunossupressores (metotrexato, azatioprina, micofenolato mofetil, sulfassalazina, leflunomida, tacrolimus, ciclosporina ou hidroxicloroquina).

Os pacientes eram randomizados para receber IVIG ou placebo. A IGIV era prescrita na dose de 2g/kg, distribuído entre 2 a 5 dias, a cada 4 semanas. Como a IVIG pode aumentar o risco de eventos trombóticos, foram excluídos pacientes com história de trombose venosa profunda, tromboembolismo pulmonar, infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral.

Buscando um desfecho de controle de doença medido pelo escore TIS < 20, o trabalho encontrou melhores desfechos no grupo IVIG (79% apresentou controle após 16 semanas) comparado com placebo (44% de controle) [3]. Em análise de subgrupo, os resultados foram parecidos quando estratificados pela gravidade da doença. O tempo médio para melhora dos sintomas foi de 35 dias no grupo IVIG.

Na análise de segurança, ocorreram eventos leves no grupo IVIG, como febre, cefaleia e náuseas. Em relação a eventos trombóticos, ocorreram 8 eventos no grupo IVIG, sendo que 6 destes foram considerados como tendo relação direta com a droga. No meio da randomização, o protocolo de infusão da IVIG foi modificado de 0,12 ml/kg/min para 0,04 ml/kg/min. Após a modificação, a taxa de eventos trombóticos caiu para menos da metade.