Profilaxia de Hemorragia Digestiva Alta em Uso de Anticoagulação Oral

Criado em: 13 de Fevereiro de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

O American Journal of Medicine publicou em junho de 2022 uma revisão sistemática sobre a associação de terapia anti-secretora com hemorragia digestiva alta em pacientes em anticoagulação oral [1]. Vamos ver o que o estudo encontrou e revisar o tema.

Qual é o risco de sangramento?

O uso de anticoagulantes aumenta o risco de sangramento maior. Sangramento maior é definido como sangramento significativo com necessidade de hemotransfusão ou sangramento em sítio crítico (por exemplo, intracraniano ou com síndrome compartimental) ou necessidade de intervenção (cirurgia, endoscopia, etc).

O sítio mais comum é o trato gastrointestinal com cerca de 40% dos casos de sangramento em pacientes com anticoagulação oral [2-5].

Os inibidores de bomba de prótons (IBP) reduzem o risco de hemorragia digestiva alta em pacientes que usam ácido acetilsalicílico (AAS) e anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs). No entanto, o uso de IBP em pacientes com anticoagulação permanente continua incerto porque estes pacientes foram excluídos da maioria desses estudos.

Inibidores de bomba de prótons

A proteção gástrica com um IBP é prescrita para muitas pessoas em anticoagulação terapêutica, especialmente aqueles com fatores de risco. Contudo, ainda existe incerteza sobre essa conduta, por conta da falta de estudos.

Os fatores de risco adicionais específicos de sangramento gastrointestinal podem ser divididos em três grupos e estão disponíveis na tabela 1.

Tabela 1
Fatores de risco para sangramento gastrointestinal
Fatores de risco para sangramento gastrointestinal

Uma coorte retrospectiva de 2018 com mais de 1,6 milhão de pacientes que receberam um anticoagulante (a maioria por fibrilação atrial) encontrou que o uso concomitante de IBP se associou a um menor risco de hospitalização por sangramento gastrointestinal (taxa de incidência 0,66, IC 95% 0,62-0,69) [6]. A análise de subgrupos revelou que o efeito foi visto individualmente para cada anticoagulante. Os sangramentos que exigiram hospitalização ocorrem com maior probabilidade no grupo em uso de rivaroxabana.

O UpToDate orienta o uso de IBP em pacientes com histórico de sangramento gastrointestinal que não foram adequadamente tratados ou em indivíduos com maior risco, como aqueles com uso concomitante de AINE. Ressalta-se a preferência por IBP, pois há melhores evidências para o IBP do que para um bloqueador do receptor H2 (brH2).

O que o estudo acrescenta?

A revisão sistemática e metanálise publicada em junho de 2022 avaliou a associação de terapia anti-secretora, seja com IBP ou brH2, em pacientes anticoagulados na prevenção de hemorragia digestiva alta (HDA).

Os pacientes avaliados nos estudos deveriam ter mais de 18 anos e estar em uso de varfarina ou anticoagulante oral direto (DOAC), independente da dose. Os estudos deveriam comparar IBP ou brH2 com placebo ou ausência de terapia; ou comparar IBP com brH2. Pelo baixo número de ensaios clínicos randomizados, trabalhos observacionais também foram incluídos.

Foram excluídos trabalhos cuja terapia anti-secretora tinha recomendação clara de benefício (ver o tópico "Desprescrição de inibidores de bomba de prótons"). Também foram excluídos trabalhos que não controlavam pelo menos duas variáveis de confusão que interferissem no risco de sangramento.

Após a revisão sistemática, sete estudos eram elegíveis para metanálise, sendo dois de caso-controle, quatro coortes retrospectivas e um ensaio clínico randomizado. Apenas um estudo avaliou o brH2 como terapia anti-secretora.

Em pacientes anticoagulados, os IBPs foram associados a uma menor probabilidade de HDA, com um risco relativo de 0,67 (IC 95% CI 0,61, 0,74) e baixa heterogeneidade estatística (I² = 15%, p = 0,32). O tamanho do efeito protetor foi relativamente consistente em populações que utilizavam varfarina e DOACs.

O efeito foi maior em pacientes com maior risco de HDA - por exemplo, uso simultâneo de AINE ou AAS ou alta pontuação de risco de sangramento. O único estudo observacional avaliando a associação de brH2 com HDA encontrou um risco relativo de 0,69 (IC 95% 0,24-2,02).

O trabalho tem duas limitações importantes. A primeira é a possibilidade de vieses dos estudos, considerando principalmente os trabalhos observacionais. A segunda é a diversidade da população e dos métodos. Entretanto, os autores afirmam que a consistência da associação negativa entre IBPs e HDA nos estudos observacionais e a baixa heterogeneidade estatística na metanálise é animadora.

O uso de IBP parece prevenir HDA em pacientes em anticoagulação, mas o benefício varia bastante a depender do risco individual. Para aqueles sem fatores de risco adicionais, o benefício é mínimo. Para aqueles com fatores de risco, pode-se considerar a prescrição de um IBP para minimizar o risco de HDA.

Diretriz ESMO de Neoplasia de Sítio Primário Desconhecido

Criado em: 13 de Fevereiro de 2023 Autor: Raphael Coelho

Pacientes com câncer na maioria das vezes têm o sítio primário identificado. Há casos em que não se identifica a origem da neoplasia, uma situação chamada de câncer de sítio primário desconhecido. Em dezembro de 2022, foi publicada diretriz da European Society for Medical Oncology (ESMO) sobre o tema [1]. Vamos revisá-la neste tópico.

O que é um câncer de sítio primário desconhecido?

É uma neoplasia que inicialmente não tem o sítio primário identificado. O cenário típico é de um paciente que descobre uma metástase de um câncer já avançado.

Os sintomas dependem do local das lesões, por exemplo, dor na metástase óssea ou tosse na metástase pulmonar. As lesões também podem ser encontradas ao acaso, em um exame solicitado por outro motivo.

Entre todos os cânceres invasivos, 2% têm sítio primário desconhecido ao diagnóstico. Avanços na oncologia, como melhores tecnologias, vêm diminuindo a incidência de cânceres de sítio primário desconhecido (CSPD).

A mortalidade desse grupo de neoplasias é alta, contribuindo para uma parcela considerável das mortes por câncer [2]. A sobrevida em 1 ano é em torno de 20% e metade das mortes ocorrem nos primeiros 3 meses.

Como deve ser feita a investigação?

A diretriz destaca que o diagnóstico é definido pelos achados clínicos, patológicos e radiológicos.

A avaliação diagnóstica começa com a biópsia confirmando que a lesão suspeita é de fato neoplásica.

O passo seguinte é definir se é um tumor primário daquela região. Tamanho, localização, características da imagem, fenômenos associados e padrões de disseminação (hematogênico ou linfogênico) ajudam a encontrar essa resposta. A ausência de linfonodos acometidos em localizações próximas da lesão suspeita diminui a chance dela ser primária.

Após a definição de que a lesão não é primária, alguns exames iniciais básicos são recomendados, além da complementação da história e exame físico a partir das hipóteses levantadas (veja a tabela 1).

Tabela 1
Investigação Inicial recomendada para câncer de sítio primário desconhecido pela diretriz ESMO 2022
Investigação Inicial recomendada para câncer de sítio primário desconhecido pela diretriz ESMO 2022

Marcadores oncológicos séricos podem se elevar de acordo com o tipo histológico:

  • Células germinativas: alfa-fetoproteína e beta-HCG
  • Próstata: PSA
  • Suspeita de primário ginecológico: CA 15-3 e CA 125
  • Suspeita de primário trato gastrointestinal: CA 19-9, CEA e CA 72-4
  • Neuroendócrino: cromogranina A

Alguns marcadores como CEA, CA 19-9, CA 15-3 e CA 125 se elevam em muitas situações e tem pouco valor diagnóstico. Esses marcadores têm maior utilidade para o acompanhamento clínico e a determinação de resposta ao tratamento.

O próximo passo é determinar a linhagem celular da neoplasia. Isso depende de características histológicas e imunohistoquímicas da biópsia. O patologista avalia a morfologia das células e do tecido e procura marcadores para realizar a identificação.

A diretriz traz quatro grupos de cânceres de sítio primário desconhecido:

  • Adenocarcinomas diferenciados - 50% dos casos
  • Adenocarcinoma pouco diferenciados ou carcinomas não diferenciados - 30% dos casos
  • Carcinomas de células escamosas - 15% dos casos
  • Neoplasias indiferenciadas - 5% dos casos

Os tumores neuroendócrinos não estão incluídos nessa diretriz, pois não são mais vistos como câncer de sítio primário desconhecido pela ESMO. Essa foi uma mudança da nova diretriz. A justificativa é de que esses tumores têm subclassificações específicas, independentemente da presença de um sítio primário óbvio, sendo manejados de maneira particular. Algumas referências incluem os tumores neuroendócrinos como um subtipo de origem epitelial, ao lado dos adenocarcinomas e carcinomas escamosos [3].

A diretriz da ESMO também não considera como câncer de sítio primário indeterminado: sarcomas, melanomas, tumores de células germinativas ou hematológicos. Esses tipos histológicos devem ser manejados conforme suas diretrizes específicas.

Conforme o laudo imunohistoquímico, suspeitas mais fortes da origem do câncer são estabelecidas. A partir daí, novos exames podem ser solicitados para investigação. Painéis com alvos moleculares em que há terapias alvo também são solicitados neste momento para definição do tratamento.

Manejo do câncer de sítio primário desconhecido

Caso seja descoberto o sítio primário, o manejo deve seguir de acordo. Se não, deve ser tentado classificar subtipos de câncer que indiquem semelhanças com neoplasias primárias típicas.

Em geral, os pacientes com um dos 7 subtipos favoráveis devem ser tratados com terapias dos sítios específicos (tabela 2). O câncer renal-like foi incluído nessa diretriz como um novo subtipo favorável por causa dos inibidores de tirosina quinase e inibidores de checkpoint. O subtipo “câncer de sítio primário desconhecido localizado” foi reclassificado para também incluir doença oligometastática passível de tratamento ablativo local.

Tabela 2
Tratamento dos subtipos favoráveis de câncer de sítio primário desconhecido pela diretriz ESMO 2022
Tratamento dos subtipos favoráveis de câncer de sítio primário desconhecido pela diretriz ESMO 2022

Os pacientes com câncer de sítio primário desconhecido desfavorável são os que não se enquadram nos subtipos da tabela 2. O prognóstico é ruim e os tratamentos são pouco efetivos, mas geralmente esquemas quimioterápicos com platinas são recomendados.

Tuberculose Latente

Criado em: 13 de Fevereiro de 2023 Autor: Frederico Amorim Marcelino

A tuberculose latente é um problema global de saúde pública. Com o aumento do uso de imunossupressores, em especial inibidores do fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), a preocupação com a progressão da doença para a forma ativa tem aumentado. Em 2022, o New England Journal of Medicine Evidence e o Journal of the American Medical Association (JAMA) publicaram revisões sobre o assunto [1, 2]. Vamos trazer os principais pontos neste tópico.

Infecção ou doença por tuberculose?

A tuberculose latente (ILTB) ocorre quando uma pessoa está infectada pelo Mycobacterium tuberculosis (MTB), sem manifestação da doença ativa [3]. Ou seja, houve infecção por MTB, foi feita uma resposta imune suficiente para impedir a doença ativa, mas não o suficiente para eliminar o bacilo por completo , mantendo-o viável e capaz de se manifestar como tuberculose ativa no futuro.

Prova tuberculínica (PPD) e ensaio de liberação de interferon gama (IGRA)

Não existe um exame que consiga identificar diretamente ILTB. Contudo, é possível identificar a resposta imune ao MTB através de dois testes: a prova tuberculínica (PPD) e o ensaio de liberação de interferon gama ( interferon gamma release assay , o IGRA).

O PPD consiste em injetar por via intradérmica um derivado proteico purificado de MTB (purified-proteic derivative, PPD). Se o paciente teve contato prévio com MTB, linfócitos T de memória serão recrutados para a região injetada. Isso causará uma reação de hipersensibilidade tardia (tipo IV), com a formação de edema e vermelhidão após 48 a 72 horas. O exame tem dois principais falsos positivos: infecção por outra micobactéria e ter recebido a vacina BCG. Após 10 anos da vacinação a chance desse falso positivo diminui [1].

O IGRA é um exame feito no sangue do paciente. Após a coleta, a amostra de sangue é incubada com antígenos específicos do MTB e mede-se a quantidade de interferon produzida pelos linfócitos T. Não há reação cruzada e falso positivo com outras micobactérias e com a BCG, pois os antígenos utilizados no IGRA são bastante específicos de MTB.

Ambos os exames avaliam a imunidade celular de forma semelhante que a dosagem de anticorpos avalia a imunidade humoral.

Existe uma inconsistência nos achados dos estudos comparando PPD e IGRA. Alguns resultam em superioridade do IGRA, enquanto outros não encontram diferença [4, 5]. Assim, a escolha entre os dois deve levar em consideração a disponibilidade do teste e a preferência do paciente. O IGRA já foi incorporado no SUS e está disponível para algumas situações [6].

Quem rastrear e tratar

As pessoas com maior risco de evoluir para tuberculose ativa devem ser rastreadas. É possível dividi-las em dois grupos: pacientes que tiveram contato com tuberculose e pacientes com risco de reativação de tuberculose.

No primeiro grupo, o de pacientes que tiveram contato com tuberculose ativa pulmonar ou laríngea e que estão assintomáticos, o rastreio é realizado com PPD ou IGRA. Caso o IGRA seja positivo ou o PPD ≥ 5mm, está indicado tratamento de tuberculose latente. No caso de PPD negativo aguarda-se 8 semanas e o teste é repetido. Se houver aumento de 10 mm em relação ao PPD inicial, também é indicado o tratamento. Se surgirem sintomas é feita a investigação de tuberculose ativa.

Tabela 1
Pacientes com maior risco de evoluir para tuberculose ativa
Pacientes com maior risco de evoluir para tuberculose ativa

Os pacientes do segundo grupo, formado por pessoas com risco de reativação de tuberculose, estão reunidos na tabela 1. Destacam-se as pessoas vivendo com HIV e aquelas em uso de inibidores do TNF-alfa. Uma população grande e pouco lembrada é a de indivíduos em diálise. O rastreio nesse grupo também pode ser feito com IGRA ou PPD. Aqui o corte do PPD varia conforme o risco do paciente, estando discriminado na tabela 2.

Tabela 2
Indicações de tratamento de infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis (ILTB)
Indicações de tratamento de infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis (ILTB)

As indicações de tratamento de tuberculose latente também estão reunidas na tabela 2.

Excluindo tuberculose ativa

Após identificar que o paciente teve contato com tuberculose, o próximo passo é excluir tuberculose ativa. Em um estudo com pacientes vivendo com HIV, quatro sintomas foram utilizados para essa avaliação: tosse, febre, sudorese noturna e perda de peso [7]. A sensibilidade desse método é de 78%, mas se adicionado radiografia de tórax a sensibilidade chega a 90%, porém com especificidade de 38%. Se a suspeita de tuberculose se mantiver, o passo seguinte é a coleta de escarro para baciloscopia.

Tratamento no Brasil

Existem três principais esquemas de tratamento de tuberculose latente (tabela 3) [2, 8]:

  • Isoniazida por 6 (180 doses diárias) a 9 (270 doses diárias) meses
  • Rifapentina e isoniazida tomadas 1x por semana por 3 meses (12 doses semanais)
  • Rifampicina por 4 meses (120 doses diárias).
Tabela 3
Tratamentos para tuberculose latente
Tratamentos para tuberculose latente

Os três esquemas estão disponíveis no Brasil.

A revisão do JAMA coloca como preferência o esquema com rifampicina, pois mais pacientes completam o tratamento e têm menos efeitos adversos se comparado ao esquema de 9 meses de isoniazida [2, 8]. No Brasil, o esquema com rifampicina está disponível para pacientes acima de 50 anos, pacientes com hepatopatias e pacientes com contato com tuberculose resistente a isoniazida ou que têm intolerância à isoniazida.

A preferência no Brasil é por um dos dois esquemas baseados em isoniazida. A escolha deve levar em consideração a preferência do paciente e interações medicamentosas.

A isoniazida é hepatotóxica. Os pacientes devem ser monitorados com exames hepáticos, especialmente aqueles de alto risco como os que utilizam álcool. A medicação também pode causar neuropatia periférica. Recomenda-se a profilaxia de neuropatia com vitamina B6 (piridoxina) 50-100mg/dia para pacientes vivendo com HIV, gestantes, puérperas que estão amamentando, pessoas com diabetes e doentes renais crônicos.