Nova Diretriz de Hemorragia Digestiva Baixa

Criado em: 06 de Março de 2023 Autor: Raphael Coelho

O Colégio Americano de Gastroenterologia (ACG) publicou em 2023 uma nova diretriz sobre hemorragia digestiva baixa [1]. Esse tópico resume as principais recomendações desse documento, que atualiza a última diretriz de 2016.

O que é e o que causa hemorragia digestiva baixa?

Hemorragia digestiva baixa (HDB) aguda é a saída de sangue pelo reto de origem colorretal. A incidência de HDB tem aumentado, provavelmente devido ao envelhecimento da população e ao maior uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários.

A causa mais comum de HDB é a doença diverticular do cólon. Outras causas comuns são: colite isquêmica, hemorroidas, angiectasia, neoplasia colorretal, úlceras (estercorais, retais ou induzidas por AINEs) e colites (inflamatória, infecciosa ou relacionada a radioterapia).

O sangramento digestivo de intestino delgado é outra entidade e tem manejo diferente.

Como é o manejo inicial?

O exame físico inicial deve ser focado na avaliação de sinais de choque. A ressuscitação hemodinâmica com cristalóides deve ser realizada simultaneamente. O uso de ácido tranexâmico está contraindicado. Veja mais sobre o uso do ácido tranexâmico em "Ácido Tranexâmico no Peri-Operatório".

O exame do reto pode encontrar a fonte de sangramento nos casos das lesões anorretais ou indicar a presença de melena, sinal de hemorragia digestiva alta (HDA).

Quando o sangramento por uma HDA é intenso pode ocorrer hematoquezia. História de úlcera péptica, cirrose hepática e relação ureia/creatinina elevada (maior que 60) apontam para HDA. Se houver suspeita clínica de HDA, uma endoscopia digestiva alta deve ser realizada. A aspiração nasogástrica não tem boa sensibilidade e não está indicada para excluir HDA. Veja mais sobre HDA no episódio 120: caso clínico de hemorragia digestiva alta.

Quem não precisa ser internado?

A mortalidade de HDB é menor do que 1% e a maioria dos pacientes é manejado sem a necessidade de internação.

O ACG sugere a utilização de ferramentas de estratificação de risco com o objetivo de identificar pacientes de baixo risco que não precisariam ser internados. Um escore de Oakland (tabela 1) menor ou igual a 8 se correlaciona bem com uma alta segura , com 95% de probabilidade de não acontecerem intercorrências relacionadas ao sangramento em 28 dias.

Tabela 1
Escore de Oakland para hemorragia digestiva baixa (HDB)
Escore de Oakland para hemorragia digestiva baixa (HDB)

Escores não devem substituir a impressão clínica. Apesar de alguns pacientes terem altas seguras, a oportunidade de alguns diagnósticos pode ser atrasada, como nos casos de câncer colorretal e doença inflamatória intestinal.

Como fazer o manejo específico da HDB?

Dois exames principais podem ser utilizados para diagnóstico: colonoscopia e angiotomografia (angioTC).

A principal função da colonoscopia é identificar a causa e excluir neoplasias. Apesar do poder diagnóstico, a capacidade da colonoscopia de conter sangramentos é baixa. A hemostasia dos exames realizados em até 24 horas chega a no máximo 20%. Por isso, o ACG faz uma recomendação forte com moderada qualidade de evidência que pacientes com HDB não devem realizar colonoscopia de urgência, em até 24 horas, por não haver redução de ressangramento ou mortalidade. Essa recomendação mudou em relação às últimas diretrizes. Uma exceção a ser considerada é o sangramento pós polipectomia.

A tabela 2 traz as sugestões do tratamento endoscópico recomendado, cabendo ao endoscopista a definição da melhor técnica.

Tabela 2
Sugestões do Colégio Americano de Gastroenterologia (ACG) para tratamento endoscópico na HDB
Sugestões do Colégio Americano de Gastroenterologia (ACG) para tratamento endoscópico na HDB

O preparo do cólon recomendado é com soluções de polietilenoglicol (PEG). A recomendação clássica é o uso de 4 a 6 litros de PEG em 3 a 4 horas até que as evacuações fiquem livres de sangue e fezes, mas outros protocolos podem ser utilizados. Os especialistas citam que os riscos desse preparo são semelhantes aos de pacientes que não estão sangrando.

A angioTC é um exame não invasivo que consegue identificar sangramentos e delimitar a anatomia vascular. O ideal é que a angioTC seja realizada dentro de 4 horas do início da hematoquezia. Quando a angiotomografia encontra o foco do sangramento, o controle é feito por embolização arterial via radiointervenção imediatamente após o exame ou por colonoscopia.

Faltam melhores estudos comparando as estratégias diagnósticas e não há evidência atual de diferença de mortalidade entre elas. A escolha é baseada em estudos retrospectivos e experiência do local. A diretriz sugere que a colonoscopia seja realizada nos pacientes estáveis e a angiotomografia nos pacientes instáveis ou com sangramento vigente (vide fluxograma 1).

Fluxograma 1
Investigação e manejo de hemorragia digestiva baixa
Investigação e manejo de hemorragia digestiva baixa

O manejo conservador, sem a realização da colonoscopia ou embolização, pode ser considerado em pacientes que pararam de sangrar e que têm confirmados a presença de doença diverticular e ausência de câncer, em exame realizado no último ano. Uma angioTC negativa tem valor para indicar estratégias conservadoras pois 80% desses pacientes melhoram sem necessidade de endoscopia ou rádio intervenção.

A cintilografia com hemácias marcadas vem sendo cada vez menos solicitada. O exame é demorado e não consegue localizar precisamente a região do sangramento.

A cirurgia é necessária em apenas 0,2% dos casos, quando há falha na hemostasia com angiografia ou colonoscopia. A maioria das cirurgias são de hemicolectomia e apenas 15% de todas as cirurgias são colectomia total.

Hidroxicloroquina nas Doenças Reumatológicas

Criado em: 06 de Março de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Em janeiro de 2023, o Annals of Internal Medicine publicou uma coorte de pacientes que utilizam hidroxicloroquina cronicamente e avaliou a incidência de retinopatia [1]. Este tópico traz os achados do estudo e revisa as indicações dessa droga nas doenças reumatológicas e seus eventos adversos.

Quais são as indicações de hidroxicloroquina nas doenças reumatológicas?

A hidroxicloroquina (HCQ) é um dos pilares do tratamento do lúpus. Existe evidência de que a HCQ melhora a sobrevida dos pacientes com lúpus, reduz atividade de doença, diminui dano renal, melhora lesões cutâneas e sintomas articulares e diminui o risco de trombose. Pra saber mais sobre tratamento de lúpus, veja "Nova Medicação para Lúpus Eritematoso Sistêmico".

Para artrite reumatóide, a HCQ é considerada uma droga modificadora de doença (DMARD), conseguindo melhora clínica e laboratorial. A Liga Europeia contra o Reumatismo (EULAR) indica o medicamento em pacientes com formas leve e moderada da doença e que não podem utilizar os três DMARDs principais - metotrexato, leflunomida e sulfassalazina [2].

A droga também tem aplicação em outras doenças reumatológicas. Na dermatomiosite leve, a HCQ pode melhorar sintomas. Em pacientes com síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAAF), a droga pode ser acrescentada quando ocorre trombose em vigência de anticoagulação. Na síndrome de Sjogren, a HCQ pode ser utilizada para dor articular refratária ao tratamento inicial.

Os comprimidos de HCQ são encontrados na apresentação de 200 a 400mg. A HCQ é a versão hidroxilada da cloroquina, que também está no mercado. Entre as duas, a HCQ possui preferência devido ao menor risco de toxicidades.

Quais são os cuidados?

Dentre os eventos adversos, o mais comum é a retinopatia associada à HCQ, que pode causar perda da visão. Em formas avançadas, o dano costuma ser irreversível. A orientação é manter a dose abaixo de 5 mg/kg e realizar rastreio anual para retinopatia. Essa recomendação é baseada em trabalhos transversais que encontraram maior incidência de retinopatia em quem usava doses superiores a 5mg/kg.

Os principais fatores de risco para a retinopatia descritos pela Sociedade Americana de Oftalmologia (SAO) são:

  • Doses altas - especialmente maiores do que 5 mg/kg
  • Duração do uso - em doses de 4 a 5 mg/kg, o uso por 10 anos está associado a prevalência de retinopatia de 2%, enquanto o uso por 20 anos está associado a prevalência de 20% [3]
  • Disfunção renal
  • Uso concomitante de tamoxifeno
  • Maculopatia ou retinopatia prévia

Recomenda-se que todo paciente faça uma avaliação oftalmológica no início do tratamento para avaliar a presença de retinopatia prévia. Em pacientes sem fatores de risco, o rastreio de retinopatia deve começar no máximo até 5 anos após o início da HCQ. Em pacientes com fatores de risco, o rastreio deve começar em 1 ano do início do tratamento. Os métodos preferenciais de rastreio são a tomografia de coerência óptica de domínio espectral (OCT) e a campimetria computadorizada [4]. Uma vez iniciado, o rastreio deve ser repetido anualmente.

A cardiotoxicidade da cloroquina/HCQ é manifestada principalmente através de arritmias (como prolongamento do QT ou arritmia ventricular), porém também pode causar cardiomiopatia resultando em insuficiência cardíaca e morte súbita. É um evento adverso raro e a maior preocupação é com pacientes que utilizam outros medicamentos que também podem prolongar o QT ou que já possuem cardiopatias, QT longo ou histórico de arritmia.

A HCQ também pode causar eventos adversos dermatológicos. Uma revisão sistemática encontrou que os eventos adversos cutâneos mais comuns foram rash cutâneo, prurido, pustulose exantemática generalizada aguda (PEGA), síndrome de Stevens-Johnson ou necrólise epidérmica tóxica, perda de cabelo e estomatite [5].

O que o estudo encontrou?

Essa coorte retrospectiva selecionou pacientes em uso de HCQ para lúpus ou outras doenças reumatológicas e que utilizaram a droga por pelo menos 5 anos. O desfecho primário foi a presença de retinopatia por HCQ, diagnosticado pela OCT.

O estudo avaliou 3325 pacientes, a maioria usando HCQ por lúpus ou artrite reumatóide. A incidência cumulativa de retinopatia por HCQ foi de 2,5% em 10 anos de uso e 8,6% em 15 anos de uso.

Analisando pela dose, a incidência aumenta sensivelmente conforme o cálculo por peso: em 15 anos, a incidência cumulativa de retinopatia por hidroxicloroquina foi de 2,7% em quem usava doses menores que 5 mg/kg, chegando a 21,6% em quem usava acima de 6 mg/kg.

Em análise de subgrupo, a incidência também foi maior em pacientes com doença renal crônica e naqueles com mais de 55 anos.

A maior parte dos casos de retinopatia era leve e assintomática. A rara ocorrência da forma grave da doença se deve ao método sensível de rastreio.

Diagnóstico de Síndromes Mielodisplásicas

Criado em: 06 de Março de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

As síndromes/neoplasias mielodisplásicas (SMD) são um grupo de doenças da medula óssea cada vez mais compreendidas. Acompanhando essa evolução, o Journal of the American Medical Association (JAMA) e o New England Journal of Medicine (NEJM) lançaram revisões recentes sobre o tema [1, 2]. Esse tópico traz o entendimento atual sobre a causa e o diagnóstico desta entidade.

O que é uma síndrome mielodisplásica?

Síndrome/neoplasia mielodisplásica (SMD) é um termo que agrupa várias neoplasias hematológicas que comprometem a função da medula óssea. Algumas características típicas de uma SMD são:

  • Manifestação clássica: citopenia sem causa clara em uma pessoa idosa.
  • Gatilho inicial: surgimento de uma célula tronco hematopoiética maligna com vantagem replicativa sobre as demais.
  • Achado na medula óssea: alterações morfológicas (mielodisplasia). Isso não é exclusivo de SMD, podendo ocorrer em outras neoplasias mielóides e na deficiência de vitamina B12/ácido fólico.

A fisiopatologia das SMD é variada. Uma SMD pode se desenvolver de diversas maneiras. Contudo, didaticamente, o surgimento de uma SMD pode ser dividido em quatro fases (nem todos os pacientes passam por todas essas fases):

  1. Mutação em uma célula tronco hematopoiética que adquire vantagem replicativa. Isso leva à expansão da população da célula que sofreu a mutação, situação chamada de hematopoiese clonal.
  2. As células tronco mutadas migram para outras regiões de medula óssea através do sangue periférico. Quando no mínimo 4% das células hematopoiéticas possuem a mutação, a condição é chamada de hematopoiese clonal de potencial indeterminado (CHIP, da sigla em inglês), um precursor de SMD. A mutação é detectada através do sequenciamento de nova geração.
  3. Quando a hematopoiese clonal se torna dominante na medula, surge a citopenia. A depender do grau de dominância clonal, displasia morfológica e alterações citogenéticas, essa condição pode ser chamada de SMD ou de citopenia clonal de significado indeterminado (CCUS, da sigla em inglês).
  4. Desenvolvimento de leucemia mielóide aguda (LMA) secundária. A aquisição de novas mutações leva ao surgimento de clones com cada vez mais dificuldade de se diferenciar (blastos). Quando a quantidade de blastos passa de 20% , o diagnóstico de LMA secundária é configurado.

As mutações garantem vantagem replicativa para as células tronco malignas, porém são desvantajosas para as células progenitoras (um passo mais avançado na maturação celular), causando apoptose excessiva. Por isso a combinação paradoxal de uma medula hipercelular e um sangue periférico com citopenias.

Quais são os sintomas de síndrome mielodisplásica?

Os sintomas mais comuns de SMD são consequências das citopenias (anemia, neutropenia e plaquetopenia). Fadiga ocorre em 55% dos pacientes, febre e infecções em 15% e sangramento em 8%.

Anemia é a citopenia mais presente. Costuma ser macro ou normocítica. Muitos têm leucopenia em consequência de uma neutropenia absoluta. Plaquetopenia está presente em até um quarto dos pacientes. Enquanto que anemia isolada é frequente, plaquetopenia não é uma manifestação inicial comum.

O sangue periférico pode mostrar alterações morfológicas. A anormalidade mais comum dos eritrócitos na SMD é a presença de macroovalócitos. Nos leucócitos, uma alteração descrita são os neutrófilos hipossegmentados, conhecida como anomalia de pseudo Pelger Huet. Esse achado confere ao núcleo a aparência de dois lobos ligados por um fino fio.

Existe uma calculadora que ajuda a estimar a probabilidade de SMD baseada em dados clínicos e laboratoriais em pacientes com anemia sem explicação. Uma vez que existe a suspeita de SMD, a medula óssea deve ser avaliada.

Como diagnosticar uma síndrome mielodisplásica?

Tabela 1
Diagnóstico de síndrome/neoplasia mielodisplásica
Diagnóstico de síndrome/neoplasia mielodisplásica

O diagnóstico é feito através da análise da biópsia de medula óssea e do aspirado medular (mielograma). O mais comum é que a medula na SMD seja hipercelular, mas também pode ser hipocelular.

Tabela 2
Tipos de síndrome/neoplasia mielodisplásica
Tipos de síndrome/neoplasia mielodisplásica

O critério da Organização Mundial de Saúde para o diagnóstico de SMD exige a presença de uma citopenia por no mínimo 6 meses. Além disso, a contagem de blastos na medula deve ser menor que 20% e deve ocorrer displasia em no mínimo 10% das células nucleadas de pelo menos uma linhagem. Mesmo sem displasia, é possível diagnosticar SMD em um paciente com citopenia refratária se algumas anormalidades citogenéticas estiverem presentes (ver tabela 1 e tabela 2).

Tabela 3
Causas de displasia
Causas de displasia

Existem outras condições neoplásicas e não neoplásicas que causam citopenias e displasia medular que não são SMD. Causas de displasia medular estão agrupadas na tabela 3.