Nefropatia por Contraste

Criado em: 13 de Março de 2023 Autor: Kaue Malpighi

Há décadas, a infusão de contraste iodado tem sido associada a lesão renal aguda. Em janeiro de 2023, a Intensive Care Medicine publicou um estudo sobre nefropatia induzida por contraste em pacientes com lesão renal aguda pré-existente [1]. Aproveitamos a publicação para revisar e atualizar o tema neste tópico.

O que é nefropatia induzida por contraste e quem é o paciente de risco?

Nefropatia induzida por contraste (NIC) é definida por uma piora da função renal (> 0,3 mg/dL de creatinina) nas primeiras 24 a 48 horas após a infusão de contraste iodado em pacientes sem outros fatores para lesão renal aguda (LRA). Outro termo utilizado é nefropatia associada ao contraste (NAC), usado para situações em que não é possível estabelecer causalidade com o contraste por existirem outros fatores de risco para LRA que geram confusão.

O conceito de NIC surgiu na década de 60, baseado principalmente em relatos de casos e experimentos em animais. Apesar de ser uma ideia bastante aceita, o real papel dos contrastes iodados no desenvolvimento de LRA é motivo de debate [2]. Na época dos primeiros estudos de NIC, predominavam os contrastes de primeira geração, que eram hiperosmolares (> 1.400 mOsm/kg), com potencialmente maior risco. Além disso, muitos estudos não tinham grupo controle e misturavam indicações diferentes de uso do contraste (angiografia de coronárias e tomografia, por exemplo).

Alguns estudos recentes não encontraram associação independente entre o uso de contraste iodado e LRA. [3-6]. Uma possível explicação para essa inconsistência é o viés de confusão por indicação. Nesse viés, atribui-se falsamente um desfecho (lesão renal aguda) a uma exposição (uso de contraste), quando a real causa do desfecho é o motivo da exposição. Assim, pacientes que precisam de exames contrastados possuem uma série de fatores (comorbidades, doenças agudas, uso de nefrotóxicos, hipovolemia) que respondem tanto pela necessidade de realizar um exame contrastado quanto pelo risco aumentado de LRA.

Figura 1
Viés de confusão por indicação
Viés de confusão por indicação

Na tentativa de encontrar indivíduos com maior risco de NIC, um estudo estratificou os pacientes por taxa de filtração glomerular (TFG) [7]. Os pesquisadores encontraram associação de NIC com TFG < 30 mL/min/1.73m² e uma tendência a associação com TFG entre 30 e 44. Não observou-se associação para TFG ≥ 45. Assim, considera-se TFG prévia < 45 como risco de NIC, sendo esse risco maior quando TFG < 30.

Quais pacientes devem receber profilaxia?

Segundo o consenso da American College of Radiology e National Kidney Foundation de 2020, os seguintes grupos devem receber profilaxia:

  • Pacientes com LRA
  • Pacientes com TFG menor que 30 mL/min/1.73m² e que não estão em regime de hemodiálise

Em pacientes com TFG de 30 a 44, pode-se considerar a profilaxia quando existem múltiplos fatores de risco (hipertensão, diabetes, LRA recente ou TFG limítrofe). O documento reforça que a presença de diabetes não deve ser fator único para considerar profilaxia nesta faixa de TFG.

A profilaxia deve ser feita com NaCl 0,9% em um volume de 1 a 3 mL/kg/hora, de uma hora antes do procedimento até 3 a 12 horas após. A infusão de solução bicarbonatada pode ser uma opção, mas não acrescenta benefício, necessita de manipulação e tem custo maior [8-11].

O principal risco da profilaxia é hipervolemia, devendo-se evitar em pacientes com sinais de congestão [12].

O consenso reforça que TFG < 30 não deve ser uma contraindicação absoluta ao uso de contraste iodado e exames de urgência e emergência não devem ser postergados pelo risco de NAC.

A recomendação expõe que para pacientes com LRA pré-existente as evidências são ainda mais limitadas.

O que o estudo acrescenta?

O estudo avaliou a associação entre administração de contraste iodado com LRA persistente em indivíduos com LRA pré-existente. Foi um estudo retrospectivo que analisou uma coorte de visitas ao departamento de emergência de 3 hospitais dos Estados Unidos, sendo incluídos pacientes adultos e que fechavam critérios para LRA baseado na definição do Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). O desfecho primário avaliado foi LRA persistente, com desfecho secundário de necessidade de hemodiálise em 180 dias.

Ao todo foram 14.449 visitas ao departamento de emergência, sendo que o contraste foi administrado em 2.659 destas visitas. Os grupos apresentavam características semelhantes (marcadores de gravidade, comorbidades e função renal inicial), exceto que os que receberam contraste eram comparativamente mais jovens e mulheres.

Não foi encontrado associação independente entre administração de contraste e LRA persistente, achado mantido ao ajuste para confundidores. Resultado semelhante foi encontrado quando analisados subgrupos de pacientes com TFG < 30 e pacientes admitidos em UTI. Além disso, o uso de contraste também não associou-se com início de diálise em 180 dias.

Este estudo fortalece as evidências mais recentes que não mostram causalidade do uso de contraste com disfunção renal. Na prática, reforça que exames contrastados, quando bem indicados em situações de urgência e emergência, não devem sofrer atrasos pelo possível risco de nefropatia. Deve-se evitar nefrotóxicos quando possível e considerar profilaxia em pacientes sem contraindicação.

Tratamento de Esofagite Eosinofílica

Criado em: 13 de Março de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

Em dezembro de 2022, o New England Journal of Medicine (NEJM) publicou um trabalho de fase 3 com o dupilumabe para o tratamento de esofagite eosinofílica [1]. Vamos revisar esofagite eosinofílica e ver o que o estudo acrescenta.

Entendendo a esofagite eosinofílica

A esofagite eosinofílica (EE) é uma doença crônica, caracterizada por inflamação eosinofílica. A patogênese não é completamente compreendida, mas sabe-se que envolve fatores genéticos, ambientais e imunes.

A EE deve ser considerada em adultos com histórico de sensação de impacção alimentar, disfagia persistente, dor em abdome superior ou com doença de refluxo gastroesofágico que não responde à terapia inicial.

Para fazer o diagnóstico de EE é necessário a presença de sintomas e de achados histológicos, além de excluir outras causas que possam ser responsáveis ou contribuir para os sintomas. Assim, para confirmar o diagnóstico é necessário uma endoscopia digestiva alta com 2 a 4 biópsias tanto do esôfago proximal quanto distal [2]. Não é necessário um teste terapêutico com inibidores de bomba de prótons (IBP).

Tabela 1
Achados endoscópicos e histológicos sugestivos de esofagite eosinofílica
Achados endoscópicos e histológicos sugestivos de esofagite eosinofílica

As alterações endoscópicas e histopatológicas comumente encontradas estão na tabela 1. Dentre os achados, a presença de ≥ 15 eosinófilos por campo é um marcador avaliado em vários estudos.

Como é a abordagem inicial?

Existem três opções para o tratamento inicial da EE: terapia dietética, IBP e corticóides tópicos.

Dieta

A dieta é uma opção inicial de tratamento da EE em adultos e crianças. Baseia-se na observação de que os pacientes com EE têm altas taxas de alergias alimentares e que essas alergias podem contribuir para o desenvolvimento da condição.

Orienta-se encaminhar esses pacientes para um alergologista com experiência na avaliação de alergias alimentares. O alergologista deve orientar a terapia dietética, ajudar no tratamento da EE e identificar e tratar condições atópicas extra esofágicas. Sugere-se evitar o consumo dos alimentos alergênicos detectados durante a avaliação.

Existem alguns obstáculos para a restrição dietética. Essa terapia pode levar a problemas psicológicos e aversão desnecessária a alimentos, pode ser difícil de manejar e aumentar os custos. Além disso, é comum os sintomas recidivarem após a descontinuação da dieta.

Inibidor de bomba de prótons (IBP)

Quanto aos IBP, sugere-se o tratamento inicial por 8 semanas. Pode-se iniciar na dose padrão, uma vez ao dia, e em caso de refratariedade após 4 semanas, sugere-se aumentar a dose para 2 vezes ao dia.

Os pacientes são avaliados quanto à melhora sintomática após o curso de 8 semanas de tratamento. Naqueles com boa resposta, continua-se o IBP com a menor dose em que se obteve controle dos sintomas.

Para saber mais sobre indicações de manutenção e desprescrição de IBPs leia o tópico "Desprescrição de inibidores de bomba de prótons".

Corticóides tópicos

A terapia com corticóides também é uma escolha inicial no manejo da EE, porém ressalta-se que aqui são corticóides de ação tópica . Dentro desse grupo, as medicações com maior evidência são a fluticasona e a budesonida [3-5]. Ambas têm eficácia semelhante no tratamento [6].

A fluticasona é administrada utilizando um inalador sem espaçador, sendo pulverizado na boca do paciente e depois engolido. Não deve-se inalar quando o medicamento estiver sendo administrado nem se alimentar por 30 minutos após a administração. Em adultos, recomenda-se a dose de 880 a 1760 mcg ao dia, preferencialmente dividido em 2 tomadas [2].

A budesonida pode ser utilizada por via oral na dose de 2mg ao dia em doses divididas em adultos [2]. Deve-se manter o jejum por 30 minutos após o uso. O tratamento de indução é geralmente realizado por 12 semanas, seguida pela avaliação da resposta clínica.

A dose é reduzida gradualmente após a remissão, com monitorização dos sintomas. Como muitos recorrem, deve-se considerar a terapia de manutenção com os corticoides tópicos ou dieta para todos, principalmente aqueles com disfagia severa ou impactação alimentar, anéis esofágicos de alto grau (“traquealização”) e recaída sintomática/histológica rápida após a terapia inicial [2]. A ausência de sintomas não prevê com segurança a ausência de atividade da doença [7-9].

Os efeitos colaterais relatados com os corticóides tópicos são candidíase esofágica e esofagite herpética.

O que o trabalho acrescenta?

O artigo investigou o dupilumabe no manejo da EE. O dupilumabe é um anticorpo monoclonal humano que bloqueia a sinalização das interleucina-4 e interleucina-13, que têm papéis-chave na EE e também na asma e dermatite atópica.

O estudo foi randomizado e de fase 3, avaliando dois desfechos principais: remissão histológica na semana 24 e mudança de sintomas pelo questionário de sintomas de disfagia (QSD). Adultos e adolescentes foram incluídos.

O trabalho foi realizado em três partes:

  • Parte A: pacientes eram randomizados na proporção 1:1 para receberem dupilumabe subcutâneo 300 mg semanalmente ou placebo.
  • Parte B: pacientes eram randomizados na proporção 1:1:1 para receber ou dupilumabe 300 mg semanalmente ou dupilumabe 300mg a cada 2 semanas ou placebo semanal. Todos os pacientes foram avaliados até a semana 24.
  • Parte C: todos os pacientes que concluíram a parte A passaram a receber dupilumabe 300mg semanal até a semana 52 (parte A-C). A parte C em relação aos pacientes da parte B ainda está em andamento e não foi incluída nesta publicação atual.

Na parte A, a remissão histológica ocorreu em 25 dos 42 pacientes (60%) que receberam dupilumabe semanal e em 2 dos 39 pacientes (5%) que receberam placebo. Na parte B, a remissão histológica ocorreu em 47 de 80 pacientes (59%) com dupilumabe semanal, em 49 de 81 pacientes (60%) com dupilumabe a cada 2 semanas, e em 5 de 79 pacientes (6%) com placebo.

Houve redução significativa do QSD nas partes A e B nos pacientes em uso de dupilumame semanal quando comparados ao placebo. Contudo, não houve mudança significativa no QSD do dupilumabe a cada 2 semanas versus placebo.

Os eventos adversos ocorreram em 10 pacientes. O efeito mais comum foi reação no local de injeção e conjuntivite. Não houve mortes.

Este estudo de fase 3 mostrou que o tratamento semanal com dupilumabe subcutâneo melhorou os resultados histológicos e aliviou os sintomas de esofagite eosinofílica em adultos e adolescentes. A droga é uma opção ainda mais interessante se o paciente possui asma ou dermatite atópica.

Infecção Articular Periprótese

Criado em: 13 de Março de 2023 Autor: Frederico Amorim Marcelino

A infecção articular periprotética é uma complicação que pode ocorrer após uma artroplastia. Com o aumento do número de artroplastias, essa complicação se tornou ainda mais importante. Um artigo de revisão publicado em 2023 no New England Journal of Medicine (NEJM) foi usado como base para revisar o assunto neste tópico [1].

O que é uma infecção articular periprotética?

Uma infecção articular periprotética (IAP) é definida como uma infecção que envolve a prótese articular e os tecidos adjacentes [2]. As infecções esqueléticas, em geral, são um grupo heterogêneo de doenças que podem ser classificadas de diversas maneiras. Uma revisão publicada pela Nature em 2022 propõe uma classificação que evidencia essa diversidade (tabela 1) [3].

Tabela 1
Infecções esqueléticas
Infecções esqueléticas

No caso das infecções associadas a implantes, existe um fator que influi na apresentação e no tratamento: o biofilme.

Biofilme

Biofilme é uma estrutura complexa formada por uma comunidade de bactérias aderidas a uma superfície, incluindo tecidos humanos, como dentes (tártaro), e materiais biocompatíveis, como próteses e cateteres [4].

Esse conglomerado microbiano é envolvido por uma matriz extracelular que protege as bactérias do ambiente externo e de antimicrobianos. Algumas bactérias podem diminuir seu metabolismo (persister cells), dificultando a ação de antimicrobianos. Essas bactérias podem formar novamente o biofilme após a suspensão do tratamento ocasionando recidiva da infecção [4]. Além disso, o biofilme funciona como um refúgio para a troca de material genético entre as bactérias, favorecendo a disseminação de resistência a múltiplos antibióticos.

O entendimento do biofilme tem sido fundamental para o desenvolvimento de terapias mais eficazes contra infecções bacterianas crônicas e recorrentes.

Diagnóstico

Sinais inflamatórios como eritema, edema, calor, assim como febre podem estar presentes, mas são pouco sensíveis. Os sintomas mais comuns e sensíveis são dor articular e restrição de movimento, mas esse sintomas também estão presentes em disfunções assépticas de prótese dificultando o diagnóstico [5]. Em alguns casos pode ocorrer formação de fístula articular, o único sinal clínico que já confirma o diagnóstico.

Exames laboratoriais como PCR e VHS podem estar alterados, mas se estiverem normais não excluem a infecção. Os exames de imagem não são recomendados de rotina.

Na suspeita da infecção, idealmente devem ser coletadas amostras do líquido sinovial via artrocentese ou intraoperatórias. A escolha do procedimento vai depender da programação cirúrgica do paciente e da experiência do local.

Se for optado por artrocentese, devem ser solicitados coloração de Gram, cultura e citologia com diferencial. O biomarcador alfa-defensina pode ser usado, mas é pouco disponível. Os valores de corte para cada exame estão reunidos na tabela 2. No caso das culturas, a coleta em frascos de hemocultura pode aumentar a sensibilidade [6].

Tabela 2
Definição de infecção articular periprótese
Definição de infecção articular periprótese

Durante o intraoperatório devem ser coletadas pelo menos 3 a 5 amostras para cultura de diferentes tecidos e coleta de amostras para análise anatomopatológica [2, 6]. A coleta de culturas via swab de secreção de fístula ou no intraoperatório não deve ser realizada.

Tratamento

Os dois pilares do tratamento da IAP são a intervenção cirúrgica e os antimicrobianos. A intervenção cirúrgica é recomendada na maioria dos casos , com exceção de pacientes que não tenham condições clínicas para o procedimento. As 3 principais modalidades cirúrgicas são: DAIR, a troca em um tempo e troca em dois tempos.

  • DAIR (debridement, antibiotics, implant retention): nessa modalidade é feito debridamento e mantida a prótese em conjunto com terapia antimicrobiana. É mais indicada para infecções agudas que ocorrem logo após a artroplastia ou tardias, mas com apresentação aguda.
  • Troca em um tempo: nessa modalidade é feita a troca da prótese em um tempo cirúrgico único em conjunto com terapia antimicrobiana.
  • Troca em dois tempos: nessa modalidade é feita a retirada da prótese, o paciente é mantido sem prótese por um período e implantada nova prótese em um segundo tempo cirúrgico. No período entre próteses pode ser colocado um espaçador de cimento com antimicrobiano.

O tratamento antimicrobiano é dividido em empírico e direcionado. Os principais microrganismos que devem ser cobertos são Staphylococcus aureus e estafilococos coagulase negativo (ex.: Staphylococcus epidermidis , saprophyticus). Além disso, com menos frequência, gram negativos aeróbicos.

Tratamento empírico: Idealmente deve-se aguardar o resultado de culturas para iniciar antibioticoterapia direcionada, evitando terapia empírica. A exceção é em pacientes sépticos. Não há consenso sobre quais antibióticos devem ser utilizados nesse cenário, com alguns autores recomendando uso de vancomicina associado a um antibiótico com cobertura para gram-negativos como uma cefalosporina de terceira geração (exemplo: ceftriaxona), esta podendo ser substituída por cefepime ou piperacilina/tazobactam caso haja suspeita de microrganismos resistentes.

Tratamento direcionado: a escolha do antibiótico dependerá do resultado do antibiograma. Deixamos algumas opções na tabela 3.

Tabela 3
Antibióticos para infecção articular periprotética
Antibióticos para infecção articular periprotética

Dois pontos da terapia antimicrobiana são motivos de debate atualmente: a via e a duração.

Existe uma tendência atual na infectologia de utilizar cada vez mais antibióticos orais para infecções que são classicamente tratadas com antibiótico endovenoso [7]. No caso da IAP, um trabalho publicado em 2019 no NEJM comparou tratamento via oral com tratamento endovenoso [8]. O tratamento por via oral se mostrou não-inferior ao tratamento endovenoso.

Sobre a duração da antibioticoterapia, há recomendação em diretrizes para manter por 4 a 6 semanas na maioria dos casos [9]. Contudo, um estudo publicado em 2021 no NEJM comparou o tratamento por 6 semanas contra 12 semanas. O tratamento por 6 semanas foi associado com piores desfechos. Assim, ainda há discussão na literatura sobre qual é o tempo ideal de duração da antibioticoterapia.