Corticoides na Pneumonia Adquirida na Comunidade

Criado em: 17 de Abril de 2023 Autor: Kaue Malpighi

A pneumonia adquirida na comunidade (PAC) é responsável por mais de 600 mil internações anuais no Brasil. A estratificação de risco ajuda a guiar o tratamento. Atualmente, o uso de corticoides como medida terapêutica em PAC grave é controverso. Em março de 2023, o estudo CAPE COD [1], publicado no New England Journal of Medicine (NEJM), analisou o uso de corticoides na PAC grave e aproveitamos para revisar o assunto.

Como fazer estratificação de risco na PAC e o que é PAC grave?

Todo paciente com pneumonia adquirida na comunidade (PAC) deve ter seu risco de desfechos desfavoráveis avaliado. A avaliação deve levar em conta julgamento clínico, calculadoras prognósticas e condições de vulnerabilidade psicossocial. Isso ajuda a determinar o local de tratamento mais adequado, seja em ambiente hospitalar ou ambulatorial.

Tabela 1
Índice de Gravidade de Pneumonia (Pneumonia Severity Index, PSI)
Índice de Gravidade de Pneumonia (Pneumonia Severity Index, PSI)

A ferramenta recomendada pela diretriz da Infectious Diseases Society of America/American Thoracic Association (IDSA/ATS) de 2019 é o Índice de Gravidade de Pneumonia (Pneumonia Severity Index, PSI) (confira a tabela 1). Desenvolvida para pacientes imunocompetentes com PAC, ela é eficaz na previsão da mortalidade em 30 dias e possivelmente superior a outros modelos preditivos, como o CURB-65 [2, 3]. Pacientes com PSI I ou II podem ser tratados ambulatorialmente, enquanto aqueles com PSI III devem ter sua decisão individualizada. Para PSI maior que III, o tratamento deve ser hospitalar.

Fatores sociais como acesso aos serviços de saúde, funcionalidade e capacidade de uso de medicamentos orais devem ser considerados na decisão de indicar ou não internação hospitalar.

Tabela 2
Critérios de gravidade na pneumonia adquirida na comunidade (IDSA/ATS 2007)
Critérios de gravidade na pneumonia adquirida na comunidade (IDSA/ATS 2007)

Após a internação, deve-se decidir qual é o cenário hospitalar mais adequado: enfermaria ou unidade de terapia intensiva (UTI). Pacientes com sepse, choque séptico ou insuficiência respiratória devem sempre ser admitidos na UTI.

Fluxograma 1
Fluxograma para determinar local adequado de tratamento de pneumonia adquirida na comunidade (PAC)
Fluxograma para determinar local adequado de tratamento de pneumonia adquirida na comunidade (PAC)

O PSI não é apropriado para identificar pacientes que precisam ser internados em UTI. Outros modelos prognósticos (IDSA/ATS 2007, SMART-COP e SCAP) podem ser utilizados para avaliar a necessidade de internação na UTI. Os critérios IDSA/ATS de 2007 são os mais utilizados (veja a tabela 2) e, se preenchidos, considera-se que o paciente tem uma PAC grave (confira o fluxograma 1).

Quais são as evidências do uso de corticoide na PAC?

A diretriz IDSA/ATS de 2019 não recomenda o uso de corticóides em pacientes com pneumonia adquirida na comunidade (PAC), independentemente da gravidade. O uso é restrito a pacientes com sinais de sepse e choque séptico, conforme a orientação do Surviving Sepsis de 2021 [4] (consulte o tópico "Vasopressores e Corticoide no Choque Séptico"). Em contraste, uma diretriz da Society of Critical Care Medicine (SCCM) e da European Society of Intensive Care Medicine (ESICM) de 2017 recomenda o uso em pacientes com PAC hospitalizados [5].

As evidências para o uso de corticoides na PAC são inconsistentes. O ensaio clínico randomizado mais recente, de 2022, não encontrou diferença na mortalidade em 60 dias ao comparar metilprednisolona 40 mg e placebo em pacientes com PAC grave [6]. No entanto, o estudo teve baixo recrutamento e uso tardio de corticoides, o que pode ter reduzido seu efeito anti-inflamatório. Outros ensaios randomizados menores apresentaram alto risco de viés, critérios de inclusão variados e resultados variáveis em relação à mortalidade [7, 8].

Com relação às revisões sistemáticas disponíveis, os resultados também são conflitantes [9-12]. A dificuldade de padronizar os critérios de inclusão e a qualidade dos estudos avaliados colocam em dúvida o benefício de mortalidade encontrado em algumas destas revisões. Em uma destas, o benefício encontrado foi principalmente no subgrupo de pacientes com PAC grave [12].

Além da dúvida dos potenciais benefícios, o uso de corticoides pode causar efeitos adversos, como hiperglicemia e infecções secundárias [13].

O que o estudo encontrou?

O estudo CAPE COD foi realizado para avaliar a eficácia da hidrocortisona em pacientes com pneumonia grave. Foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, duplo-cego e de fase 3, realizado em 31 hospitais franceses.

O estudo focou em pacientes com pneumonia grave, conforme critérios específicos, para reduzir as discrepâncias dos estudos anteriores. Os pacientes foram incluídos se apresentassem pelo menos um dos seguintes critérios:

  • Início de ventilação invasiva ou não-invasiva com PEEP ≥ 5 cmH2O
  • Uso de cateter nasal de alto fluxo com FiO2 > 0.5 e relação pO2/FiO2 < 300
  • Máscara não reinalante com estimativa de pO2/FiO2 < 300
  • Índice de Gravidade de Pneumonia (PSI) > 130

Alguns critérios de exclusão foram: choque séptico (neste caso, por apresentar indicação de uso mais estabelecido), pneumonia aspirativa, diagnóstico de influenza, pneumonia hospitalar e uso de corticoides por outra condição.

A intervenção consistiu no uso de hidrocortisona 200 mg por 4 a 8 dias, com desmame até 8 a 14 dias no total (consulte o protocolo na tabela 3), comparado ao placebo. O desfecho primário foi mortalidade em 28 dias. Um total de 800 pacientes foram randomizados.

Tabela 3
Protocolo de tratamento com hidrocortisona no estudo CAPE COD
Protocolo de tratamento com hidrocortisona no estudo CAPE COD

O estudo mostrou benefício no grupo intervenção quanto ao desfecho primário (redução absoluta de -5,6%; -9,6% a -1,7%, IC 95%; p = 0,006). Desfechos secundários, como necessidade de intubação orotraqueal, tempo de intubação e uso de vasopressores, também apresentaram benefícios.

Não houve diferença em infecções secundárias ou sangramento gastrointestinal, mas o grupo intervenção precisou de doses maiores de insulina por dia.

Este trabalho fortalece a indicação de corticoides em pacientes com pneumonia grave, principalmente levando em consideração a definição de PAC grave dos critérios de inclusão. Algumas situações comuns estavam nos critérios de exclusão, e o uso deve ser evitado nestes casos (exceto quando o critério de exclusão era uma situação com benefício consolidado de corticoides). Além disso, é necessário estar atento aos eventos adversos, como hiperglicemia.

Pneumonia por Broncoaspiração: Posicionamento da British Thoracic Society

Criado em: 17 de Abril de 2023 Autor: Raphael Coelho

A British Thoracic Society (BTS) publicou um posicionamento em fevereiro de 2023 sobre pneumonia por broncoaspiração [1]. O objetivo desse documento foi complementar as diretrizes de pneumonias dessa sociedade. Este tópico revisa o tema.

O que é pneumonia por broncoaspiração?

A pneumonia por broncoaspiração ocorre quando bactérias são microaspiradas e entram nos pulmões, causando inflamação local e sistêmica. Essas bactérias vêm da região orofaríngea ou gastrointestinal. Essa definição não inclui os casos de macroaspiração, situação em que ocorre pneumonite por aspiração.

O diagnóstico da pneumonia por broncoaspiração pode ser difícil, já que as microaspirações costumam passar despercebidas clinicamente. Por isso, o diagnóstico muitas vezes é uma inferência baseada em achados clínicos e radiológicos de pneumonia, associados à história de fatores de risco para broncoaspiração (veja a tabela 1).

Tabela 1
Fatores associados ao aumento de risco de pneumonia por broncoaspiração
Fatores associados ao aumento de risco de pneumonia por broncoaspiração

Caso seja optado por confirmar a broncoaspiração, os dois principais exames são a videofluoroscopia (também conhecida como videodeglutograma), que consiste na deglutição de bário, e a avaliação endoscópica da deglutição.

Essas pneumonias geralmente afetam mais o pulmão direito do que o esquerdo, especialmente os segmentos basais do lobo inferior , se o paciente passa a maior parte do tempo em pé ou sentado. Já em pacientes que passam mais tempo em decúbito dorsal, os segmentos apicais do lobo inferior ou posterior do lobo superior tendem a ser mais afetados.

A microaspiração também pode levar a outras doenças das vias aéreas como broncoespasmo, bronquiectasia e bronquiolite.

Como prevenir pneumonia por broncoaspiração?

A British Thoracic Society destaca 4 cuidados para prevenção da broncoaspiração: deglutição, alimentação, tosse/força muscular e oral.

Existem evidências que indicam que o manejo da deglutição reduz o risco de pneumonia por broncoaspiração, apesar de haver autores que questionam o seu valor. A fonoterapia identifica fatores de risco para broncoaspiração e avalia a função oromotora e de nervos cranianos durante as refeições. As medidas terapêuticas envolvem mudanças na postura, uso de suporte para alimentos e adaptação ao ambiente e utensílios, rotinas de alimentação e otimização da musculatura com alguns exercícios como o “chin down” (engolir tocando o queixo no peito).

Alguns cuidados com a alimentação também podem ajudar na prevenção, tais como alterações na textura, temperatura e tamanho dos pedaços e espessamento de líquidos. A evidência científica para alterar a consistência da alimentação não é muito forte, embora seja uma recomendação comum. Fluidos espessados podem reduzir a aspiração, mas aumentar o resíduo faríngeo, sendo uma opção servir volumes menores para minimizar o resíduo. Alguns estudos pequenos sugerem que bebidas carbonatadas (com gás) podem reduzir a aspiração.

Caso haja contraindicação da via oral, como ocorre em alguns pacientes com pneumonia por broncoaspiração, deve-se programar o momento ideal para a terapia enteral. Por um lado, a via enteral reduz os malefícios da má nutrição pelo jejum naqueles com contraindicação a via oral, por outro as sondas enterais estão associadas a aumento do risco de pneumonia por aspiração. A British Thoracic Society sugere que a sonda seja considerada se o paciente permanecer em jejum por mais de 3 dias ou tiver menos do que 50% do aporte nutricional necessário por mais de 10 dias. Em pacientes em cuidados paliativos, especialmente aqueles em fim de vida, a decisão sobre o uso de sondas enterais deve ser tomada em conjunto com a família e o paciente. Os valores e desejos do paciente devem ser sempre considerados.

No contexto de AVC, existe evidência de que nutrição enteral aumentou sobrevida em comparação com jejum [2].

Quanto à posição da sonda, não há estudos que indiquem a melhor alternativa entre pós pilórica ou posição gástrica. Para AVC, parece haver maior benefício com a posição gástrica. A gastrostomia pode ser indicada nos pacientes que não toleram sonda ou se a disfunção de deglutição durar algumas semanas.

Poucos estudos mostraram benefício no treinamento muscular para prevenção de pneumonia por broncoaspiração. Mas, considerando o contexto de melhora com a reabilitação, o treinamento muscular e da tosse normalmente é recomendado para todos os pacientes o mais rápido possível.

Por fim, recomenda-se o cuidado oral para todos os pacientes. Dentre esses cuidados estão a limpeza mecânica (escovação) dos dentes, língua e palatos pelo menos 2 vezes ao dia e o tratamento de candidíase oral e sialorréia.

Estudos realizados na China e no Japão investigaram o uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECA) para reduzir o risco de pneumonia por aspiração em pacientes pós-AVC , e obtiveram bons resultados [3, 4]. Não existe evidência suficiente no momento para recomendar essa terapia em outras populações.

Como tratar?

O tratamento é semelhante a qualquer outra pneumonia , exceto pelos cuidados já citados na prevenção de novas aspirações e cuidados nutricionais relacionados.

O uso de antibiótico é indicado por 5 dias, caso haja resposta com a terapia. O antibiótico deve ser escolhido baseado na microbiologia da comunidade. Não existe evidência forte para recomendar um esquema sobre outro. Nos pacientes com déficit de deglutição, a via endovenosa é preferencial.

Não é recomendada a cobertura rotineira de anaeróbios. É sugerido cobrir esse grupo de bactérias nos pacientes com doença periodontal extensa, escarro produtivo pútrido e naqueles com abscessos ou empiema. A associação de metronidazol ou o uso de amoxicilina-clavulanato ou piperacilina-tazobactam são suficientes nesses casos.

Sugere-se também a fisioterapia respiratória, principalmente quando há secreção (manobras de clearance da via aérea), atelectasias (manobras de reexpansão) ou fraqueza muscular (técnicas para melhorar a tosse).

Acido Bempedóico para Dislipidemia

Criado em: 17 de Abril de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Um dos trabalhos que chamou a atenção no congresso do American College of Cardiology (ACC) de 2023 foi o CLEAR OUTCOMES que avaliou o uso do ácico bempedoico em pacientes que não toleram estatina. Este tópico revisa o que fazer nessa situação e traz o que o artigo agrega [1].

Intolerância à estatina

As estatinas são parte fundamental do tratamento e profilaxia das complicações da aterosclerose. A impossibilidade de utilizar essas drogas pode piorar os desfechos cardiovasculares [2].

O principal evento adverso que leva à suspensão das estatinas é a miopatia. Existem três alternativas para evitar a suspensão desse medicamento uma vez que ocorram efeitos adversos [3]:

  • Troca por um outro tipo de estatina
  • Redução da dose
  • Utilizar em dias alternados

O paciente é considerado intolerante à estatina apenas quando não consegue utilizar o medicamento mesmo utilizando essas estratégias. A dificuldade de utilização pode ser tanto por evento adverso grave, como rabdomiólise, ou por incapacidade de garantir adesão devido a sintomas adversos.

Mesmo com as medidas para evitar a suspensão, é possível que ocorra intolerância em alguns pacientes pelo efeito nocebo. Efeito nocebo é um fenômeno psicológico em que uma expectativa negativa em relação a um tratamento leva o paciente a apresentar sintomas adversos, mesmo que o tratamento em si não seja a causa direta desses sintomas.

Falamos mais sobre esse tema no Episódio 177: Mialgia por estatina.

Sobre o ácido bempedoico

O ácido bempedoico é um medicamento que inibe a ação da enzima ATP-citrato liase, que está envolvida na síntese do colesterol. Sua ação é semelhante à das estatinas, mas o ácido bempedoico é metabolizado apenas no fígado , e não nos músculos, o que pode resultar em uma taxa menor de miopatia.

Em 2019, o NEJM publicou um trabalho de segurança e eficácia dessa droga, chamado CLEAR harmony [4]. Neste trabalho, o ácido bempedóico reduziu o LDL em 18% na semana 12. Em relação a segurança, a taxa de miopatia foi similar ao placebo, porém o grupo que fez uso do ácido bempedóico teve maior incidência de gota e de elevação do ácido úrico.

Mesmo com trabalhos mostrando redução do LDL e com aprovação do Food and Drug Administration (FDA) para este fim, faltavam estudos que comprovassem a capacidade do ácido bempedóico de reduzir eventos cardiovasculares.

O que o estudo acrescenta?

O estudo CLEAR OUTCOMES foi feito para avaliar se o ácido bempedóico conseguiria reduzir eventos cardiovasculares. Os pesquisadores randomizaram 13.970 pacientes que tinham recomendação de profilaxia primária ou secundária de eventos cardiovasculares e que eram intolerantes à estatina.

Os pacientes primeiro recebiam placebo por 4 semanas. Caso não apresentassem sintomas adversos nesse período, eram randomizados para receber ácido bempedoico 180 mg ou placebo. O desfecho primário foi uma composição de morte por causas cardiovasculares, infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e revascularização coronariana.

Com um seguimento médio de 40 meses, o trabalhou encontrou uma menor taxa de eventos cardiovasculares no grupo intervenção (um risco 13% menor do que o placebo). Também ocorreu uma redução de LDL de mais de 20% no grupo intervenção e de proteína C reativa ultrassensível, ambos com diferença significativa em relação ao placebo.

O grupo intervenção teve maiores taxas de elevação de enzimas hepáticas, creatinina e ácido úrico. Esse grupo também teve mais eventos de gota e colelitíase.

O estudo é animador, porém o alto custo do ácido bempedóico é um limitante. Além disso, o perfil de eventos adversos precisa ser mais explorado em estudos futuros. É necessário sempre insistir com as estatinas antes de considerar trocar de classe.