Avaliação de Cálculo Ureteral

Criado em: 01 de Maio de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

Em fevereiro de 2023, o American Journal of Emergency Medicine publicou o estudo CURIOUS sobre o uso de tomografia computadorizada na avaliação de cálculo ureteral na emergência [1]. Este tópico revisa a investigação de cálculo ureteral no pronto socorro e traz o que o estudo acrescenta.

Apresentação clínica

Dor é o sintoma mais comum de cálculo ureteral, sendo tipicamente em cólica. As crises de dor intensa duram de 20 a 60 minutos.

Quando a obstrução ocorrer na pelve renal ou no ureter proximal, espera-se dor em flanco. Se a obstrução ocorrer no ureter distal, a dor pode irradiar para testículo ou grande lábio ipsilateral. Apesar dos padrões descritos, esse sintoma não é suficiente para definir a localização do cálculo.

Hematúria, macroscópica ou microscópica, ocorre na maioria dos pacientes com litíase sintomática. Por outro lado, a ausência de hematúria não exclui o diagnóstico, pois não é detectada em 10 a 30% dos pacientes com nefrolitíase [2-6]. O tempo entre o início da dor e a realização do exame de urina influencia o resultado desse achado, tendo menor presença após o terceiro dia [5].

Outros sintomas como náuseas, vômitos, disúria e urgência urinária também podem estar presentes. A presença de infecção urinária associada a cálculo ureteral requer intervenção urológica de emergência devido à potencial gravidade do quadro.

Como fazer o diagnóstico?

Indica-se avaliação da função renal e exame de urina para detectar a presença de hematúria em toda suspeita de cálculo ureteral.

A tomografia computadorizada (TC) sem contraste é o padrão ouro para o diagnóstico radiológico em casos suspeitos.

O protocolo de TC com baixa dose de radiação é a escolha na maioria dos adultos por ter um bom desempenho para detectar hidronefrose e alta acurácia para identificar nefrolitíase (sensibilidade 97% e especificidade 95%) [7-10].

A TC com dose padrão de radiação tem sensibilidade > 94% e especificidade > 97% para detectar litíase ureteral [7, 8, 11]. Na avaliação do tamanho do cálculo os dois métodos têm resultados equivalentes [12]. A TC com baixa dose é menos acurada em pacientes com IMC > 30 kg/m² e para detectar cálculos menores que 2 mm.

Quando não é possível realizar a TC, a ultrassonografia de rins e vias urinárias (USRV) associada ou não com a radiografia de abdome é a segunda escolha. A sensibilidade e especificidade da USRV para identificação de hidronefrose é de 81% e 100%, respectivamente, variando entre as diversas referências [1]. Outras opções, como ressonância magnética de abdome e pelve e pielografia intravenosa, só devem ser consideradas na impossibilidade de realizar TC ou USRV.

A hidronefrose pode ser detectada com precisão usando ultrassonografia à beira leito ( point-of-care ultrasound - POCUS), sendo um achado que reforça a suspeita de cálculo. A presença de hidronefrose aumenta o risco de complicações subsequentes. A ausência de hidronefrose no POCUS é insuficiente para excluir cálculos.

Quando comparado a TC, o POCUS tem sensibilidade de 70% e especificidade de 75% para detectar hidronefrose [13-16]. A menor especificidade do POCUS em comparação com a ultrassonografia tradicional pode ser devido a resultados falso positivos como cistos parapiélicos, malformações vasculares e outros confundidores.

Uma estratégia diagnóstica simples e segura para identificar pacientes de baixo risco sem utilizar TC ainda não está definida.

Falamos sobre abordagem no pronto socorro e avaliação da composição do cálculo no Episódio 110: Litíase renal.

O que o estudo acrescenta?

O trabalho CURIOUS é uma coorte retrospectiva com 4000 adultos atendidos numa emergência na Califórnia. Todos os pacientes foram submetidos a uma TC por suspeita de cálculo ureteral entre janeiro de 2016 a dezembro de 2020.

O desfecho primário foi a presença de cálculo clinicamente importante, definido como cálculo no trato urinário ou distal à junção ureteropélvica que resulta em hospitalização ou procedimento urológico dentro de 60 dias. O objetivo do estudo foi criar um fluxograma para orientar a indicação de imagem baseado no risco de litíase clinicamente importante. Os pesquisadores desenvolveram o fluxograma e aplicaram na população estudada. A ferramenta avaliava a presença de hidronefrose (avaliada por ultrassonografia), hematúria e história de cálculo.

Um cálculo clinicamente importante foi encontrado em 354 pacientes. Assumindo uma probabilidade de pelo menos 2% de ter um cálculo, o fluxograma de decisão clínica (ver fluxograma 1) previu litíase clinicamente importante com sensibilidade de 95%, especificidade de 59%, valor preditivo positivo de 18% e valor preditivo negativo de 99,3% . A área sob a curva ROC do fluxograma foi de 0,81.

Fluxograma 1
Fluxograma de decisão clínica para indicação de tomografia de abdome na avaliação de cálculo clinicamente significativo
Fluxograma de decisão clínica para indicação de tomografia de abdome na avaliação de cálculo clinicamente significativo

A aplicação desta regra de decisão clínica às decisões de imagem teria levado a 63% menos TCs com uma taxa de classificação inadequada de apenas 0,4%.

Uma limitação foi a aplicação do fluxograma de decisão somente nos pacientes que foram submetidos à TC por suspeita de cálculo ureteral. O fluxograma não se aplica em pacientes com hipótese de cólica nefrética que não realizaram a TC porque a ultrassonografia ou o histórico eram suficientes para o diagnóstico.

Apesar de eficiente, o fluxograma precisa de validação para ser formalmente recomendado.

Anticoagulação na Síndrome Antifosfolípide

Criado em: 01 de Maio de 2023 Autor: Marcela Belleza

A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma doença autoimune caracterizada por eventos trombóticos recorrentes e uma das bases do manejo é a anticoagulação. Em 2022 foi publicada uma metanálise no Journal of the American College of Cardiology sobre o uso de anticoagulantes diretos na SAF [1]. Nesse tópico revisamos o tema e trazemos o que esse estudo acrescentou.

Quais as manifestações da SAF e como fazer o diagnóstico?

A SAF tem três características marcantes:

  • Eventos trombóticos (venosos, arteriais e/ou microvasculares)
  • Complicações obstétricas
  • Persistência de anticorpos antifosfolípides (anticoagulante lúpico; anti-beta2-glicoproteína-1 e anticardiolipina)

O diagnóstico exige a presença de uma manifestação clínica (trombose ou complicação obstétrica) associada à positividade de anticorpos (critério laboratorial). Os detalhes sobre critérios clínicos e laboratoriais podem ser revisados na tabela 1 e foram detalhados no nosso Episódio 175: Síndrome Anticorpo Antifosfolípideo.

Tabela 1
Critérios diagnósticos Síndrome Antifosfolípide (SAF)
Critérios diagnósticos Síndrome Antifosfolípide (SAF)

Existem manifestações de SAF não contempladas nos critérios diagnósticos. Alguns exemplos são trombocitopenia, doença valvar cardíaca, nefropatia, manifestações cutâneas (pioderma gangrenoso e vasculopatia livedoide) e disfunção cognitiva [2].

A ocorrência de trombose de múltiplos órgãos indica uma expressão clínica de SAF com alto risco de morte, conhecida como SAF catastrófica. As manifestações são variáveis e incluem lesão renal aguda, hemorragia alveolar difusa e síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA ou SARA). O diagnóstico pode ser desafiador especialmente quando a presença de anticorpos antifosfolípides não é conhecida previamente [2].

Quais são as recomendações atuais para o manejo dos fenômenos trombóticos?

O manejo dos fenômenos trombóticos inclui a profilaxia primária em pacientes de alto risco, tratamento de fase aguda e prevenção secundária (após o evento trombótico estabelecido) [3].

Profilaxia primária:

  • Indicação: pacientes assintomáticos com alto risco trombótico. Este grupo de alto risco é caracterizado pela presença persistente de anticoagulante lúpico (mesmo que isoladamente) ou persistência de anticorpos antifosfolípides em combinação.
  • Recomendação: ácido acetilsalicílico (AAS) 75 a 100 mg/dia.

Profilaxia secundária em paciente com tromboembolismo venoso (TEV):

  • Indicação: pacientes com SAF confirmada e TEV.
  • Recomendação: antagonista de vitamina K (varfarina) com objetivo de RNI entre 2-3.

Profilaxia secundária em paciente com evento tromboembólico arterial:

  • Indicação: pacientes com SAF confirmada e evento tromboembólico arterial
  • Recomendação: antagonista de vitamina K (varfarina), com objetivo de RNI entre 2-3 ou 3-4 a depender do risco individual de trombose ou sangramento. A associação de AAS à varfarina (com alvo de RNI entre 2-3) pode ser considerada.

Recorrência de trombose (venosa ou arterial) na vigência de anticoagulação:

  • A principal recomendação é a avaliação da adesão à terapia, bem como investigação de outros fatores de risco (malignidade, risco cardiovascular elevado).
  • As diretrizes recomendam como alternativas: associar AAS 75-100 mg/dia ao antagonista de vitamina K, com objetivo de RNI entre 2-3; ou antagonista de vitamina K, com objetivo de RNI entre 3-4; ou troca para heparina de baixo peso molecular.

Na SAF catastrófica a principal recomendação é a combinação de corticosteróides, heparina e imunoglobulina ou plasmaférese. Opções como eculizumabe e rituximabe estão em estudo, especialmente em casos refratários. Além disso, deve-se procurar fatores precipitantes e tratá-los (especialmente infecções).

Existe espaço para anticoagulantes orais diretos (DOAC) na SAF?

Os estudos para avaliação dos anticoagulantes diretos (DOAC) na SAF são motivados pela sua facilidade posológica e ausência de necessidade de monitoramento. Além disso, já tem indicação estabelecida na prevenção de AVC em pacientes com fibrilação atrial não valvar e na terapia de tromboembolismo venoso (trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar) não associado à SAF [4].

A metanálise publicada pelo Journal of the American College of Cardiology em 2022 agrupou 4 ensaios clínicos randomizados, com um total de 474 indivíduos. Os estudos compararam DOAC (rivaroxabana ou apixabana) à varfarina em pacientes com SAF e evento tromboembólico prévio. Foram avaliados prevenção de novos eventos tromboembólicos (arteriais ou venosos) e segurança (incidência de sangramentos e mortalidade) [1].

Os DOACs foram associados a uma chance 5 vezes maior de eventos tromboembólicos arteriais (odds ratio 5.43), especialmente AVC isquêmico (odds ratio 10.74). Não houve diferença significativa na prevenção de TEV ou complicações hemorrágicas [1].

O que a metanálise acrescenta? Quais são as limitações do estudo?

A metanálise reforça as recomendações prévias de superioridade dos antagonistas de vitamina K no tratamento de pacientes com SAF. Em uma análise de subgrupos, os desfechos foram piores independente do tipo de SAF (triplo positiva ou outras combinações).

Uma das possíveis explicações para a superioridade dos antagonistas da vitamina K é o fato de agirem em várias etapas da cascata de coagulação [1, 4].

A metanálise incluiu poucos estudos e edoxabana e dabigatrana não foram avaliados.

Ultrassom à Beira Leito para Diagnóstico de Fasciíte Necrosante

Criado em: 01 de Maio de 2023 Autor: Frederico Amorim Marcelino

A fasciite necrosante é uma infecção grave e rara. O diagnóstico é difícil porque tem poucos sinais clínicos indicativos ou exames laboratoriais específicos. Em março de 2023 foi publicado no The American Journal of Emergency Medicine uma revisão sistemática sobre o uso da ultrassonografia à beira leito no diagnóstico dessa condição e aproveitamos para revisar o assunto [1].

O que são infecções necrosantes?

Infecções de pele e partes moles necrosantes podem acometer desde a derme e subcutâneo até a fáscia profunda e músculos e são caracterizadas por necrose tecidual em pelo menos um desses planos [2]. A depender do tecido acometido há uma nomenclatura diferente:

  • Celulite necrosante: presença de necrose em tecido subcutâneo
  • Fasciíte necrosante: necrose em fáscia profunda
  • Mionecrose: necrose de tecido muscular

Apesar dessa denominação, é comum na prática todas essas infecções serem referidas conjuntamente como fasciíte necrosante. Dependendo do local da infecção, a fasciíte necrosante pode receber outro nome. Em região perineal é chamada de gangrena de Fournier e na parede abdominal no pós-operatório é chamada de gangrena de Meleney.

Tabela 1
Classificação de fasciíte necrosante
Classificação de fasciíte necrosante

Existe também uma classificação microbiológica das infecções necrosantes de pele e partes moles [2] (tabela 1):

  • Tipo I: infecções polimicrobianas. Correspondem a 53% dos casos [3].
  • Tipo II: infecções monomicrobianas por gram-positivos com destaque para o Streptococcus do grupo A e Staphylococcus aureus.
  • Tipo III: infecções por Clostridium (Clostridium perfringens, Clostridium histolyticum ) - também conhecidas como gangrena gasosa - e infecções por gram-negativos. Destaque para Vibrio vulnificus e Aeromonas hydrophila associados a acidentes em água.
  • Tipo IV: infecções fúngicas por Candida e Zygomycetes (mucormicose).

Quadro clínico e diagnóstico

Calafrios, sensação de febre e mialgia podem estar presentes. Febre ocorre em apenas 30-60% dos casos [4-6]. Sintomas gastrointestinais como náuseas, vômitos e diarreia podem ocorrer no início do quadro.

Eritema (72%), edema (75-80%) e dor (72-79%) são os sinais clínicos mais frequentes dificultando a diferenciação de outras infecções cutâneas [7, 8]. A dor pode ser desproporcional à lesão de pele ou descrita como além das margens do eritema. Com a progressão da doença surgem equimoses, bolhas, crepitações e necrose cutânea.

Erro diagnóstico na primeira apresentação ocorre em 50-70% de casos, sendo comumente diagnosticadas inicialmente como celulite [9, 10].

A exploração cirúrgica é o método diagnóstico de escolha e também faz parte da terapia. Uma avaliação cirúrgica de urgência deve ser sempre solicitada na suspeita da fasciíte necrosante [2, 8, 11]. Exames laboratoriais e de imagem podem auxiliar no diagnóstico, mas a espera por resultados não deve atrasar a avaliação cirúrgica.

Aumento de proteína C reativa (PCR) e leucocitose podem ocorrer, mas são inespecíficos. Hiponatremia, disfunção renal e hiperlactatemia também são achados relatados [2, 6, 8].

Existe um escore que utiliza exames laboratoriais - PCR, hemoglobina, sódio, leucócitos, creatinina e glicemia - para tentar identificar fasciíte necrosante, o escore laboratory risk indicator for necrotizing fasciitis - LRINEC [12]. Os detalhes de como é feita a pontuação do LRINEC estão na tabela 2. Uma revisão sistemática e meta análise de 2019 publicada no Annals of Surgery identificou que para o diagnóstico de fasciíte necrosante, um LRINEC ≥ 6 tem sensibilidade de 68% e especificidade de 84% e LRINEC ≥ 8 tem sensibilidade de 40% e especificidade de 94% [13].

Tabela 2
Escore LRINEC
Escore LRINEC

Tanto a tomografia computadorizada quanto a ressonância magnética podem ser usadas na avaliação de infecções necrosantes. A tomografia apresenta sensibilidade 80% enquanto a ressonância magnética tem sensibilidade maior que 90%, mas ambas não possuem alta especificidade [14-17]. A dificuldade de ambas é a baixa disponibilidade e a dificuldade em realizar o exame.

Ultrassom à beira leito

O estudo publicado no The American Journal of Emergency Medicine foi uma revisão sistemática sobre o uso da ultrassonografia à beira leito no diagnóstico de fasciíte necrosante [1]. Foram avaliados 3 estudos observacionais, 2 séries de casos e 16 relatos de casos. A maior parte dos estudos usou um probe linear na investigação. Em alguns estudos o exame foi feito por equipe de médicos que haviam recebido treinamento, mas em outros foi um profissional experiente.

A sensibilidade encontrada foi de 75 a 100% e a especificidade de 70% a 98%, mas o baixo número de pacientes dificulta uma estimativa real desses valores. Os achados ultrassonográficos relacionados a fasciíte necrosante são espessamento ou irregularidade do tecido subcutâneo, presença de ar e/ou líquido na fáscia profunda, agrupados no acrônimo STAFF (Subcutaneous irregularity or Thickening, Air and Fascial Fluid). O achado mais comum nos estudos foi presença de líquido na fáscia com mais de 2 mm de profundidade . Um dos protocolos sugeridos de avaliação de fasciíte necrosante é conhecido pelo acrônimo SEFE (sonographic exploration for fascial exploration ) e possui 4 passos (tabela 3) [18].

Tabela 3
Protocolo SEFE para avaliação de fasciíte necrosante
Protocolo SEFE para avaliação de fasciíte necrosante

Esse estudo ressalta o papel de uma nova modalidade diagnóstica de fasciíte necrosante. Aguarda-se estudos maiores para avaliar o impacto do uso da ultrassonografia à beira leito no diagnóstico dessa condição.