Retatrutida para Obesidade

Criado em: 03 de Julho de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

Em junho de 2023 ocorreu o 83º encontro da American Diabetes Association. Nesse evento foi apresentado um estudo de fase 2 publicado no New England Journal of Medicine sobre a retatrutida, um agonista triplo de hormônios gastrointestinais [1]. Esse tópico traz os resultados do estudo e coloca as opções de tratamento para obesidade em perspectiva.

Os incretinomiméticos

As incretinas são hormônios liberados no trato gastrointestinal após uma refeição. Essas substâncias aumentam a secreção de insulina em resposta à hiperglicemia. O GLP-1 é uma incretina e o agonismo do seu receptor ajuda no controle da glicemia. A ativação desse receptor também causa perda de peso. Náuseas e redução do esvaziamento gástrico têm participação nesse efeito, mas o aumento da saciedade no sistema nervoso central tem um papel importante [2].

O primeiro medicamento agonista do GLP-1 foi lançado em 2005, o exenatide [3]. Em 2016, o liraglutide mostrou ser capaz de reduzir eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes no estudo LEADER [4]. Esse efeito é compartilhado por outros da classe, como a semaglutida [5]. Essas drogas começaram a ser testadas então para redução de peso, mostrando eficácia em pacientes com e sem diabetes. A droga mais potente da classe para redução de peso é a semaglutida, avaliada no estudos STEP [6, 7]. Após a suspensão da semaglutida, os pacientes tendem a ganhar o peso perdido, conforme o estudo STEP 4 [8].

Explorando o caminho do incretinomiméticos, os pesquisadores combinaram o agonismo de GLP-1 com outro hormônio das incretinas, o GIP. A droga que faz essa dupla ação é a tirzepatida, testada no estudo SURMOUNT-1 [9]. Para mais detalhes sobre tirzepatida, veja o tópico tirzepatida: novo medicamento para obesidade.

O estudo e resultados

O estudo apresentado avaliou a retatrutida, um agonista triplo do GLP-1, GIP e do glucagon (GCG), para perda de peso. A droga foi testada contra placebo e o estudo foi de fase 2 duplo cego, avaliando eficácia e segurança. O desfecho primário foi percentagem de peso perdido na semana 24, mas a percentagem de peso perdido na semana 48 também foi avaliada.

O critério de inclusão envolveu IMC maior que 30 ou IMC maior que 27 com uma condição relacionada ao peso. A medicação era feita via subcutânea uma vez por semana e várias doses foram testadas, conforme a figura 1. Todos os participantes recebiam intervenção focada no estilo de vida. Pacientes com diabetes, taxa de filtração glomerular menor que 45 ml/min e doença de vesícula biliar sintomática nos últimos dois anos foram excluídos.

Figura 1
Doses de retatrutida estudadas
Doses de retatrutida estudadas

Foram incluídos 338 adultos, sendo 51,8% homens. A média de perda de peso em 24 semanas no grupo 4 mg foi de 12% do peso total, no grupo 8 mg de 17% e no grupo 12 mg de 17%. A média de perda de peso em 48 semanas no grupo 4 mg foi de 17% do peso total, no grupo 8 mg de 22% e no grupo 12 mg de 24%. O placebo perdeu em média 2% em 48 semanas.

Nos grupos 8mg e 12mg, todos os pacientes perderam pelo menos 5% do peso. No grupo 12mg, 26% dos pacientes perderam pelo menos 30% do peso. Entre os pacientes que tinham pré-diabetes e utilizaram a droga, 72% reverteram para euglicemia. Ao final das 48 semanas, pacientes do grupo retatrutida ainda não atingiram um platô, sugerindo que a perda de peso pode ser maior.

Pacientes com IMC mais elevado tendiam a apresentar perdas maiores. Mulheres perdiam mais peso que os homens - por exemplo no grupo 12 mg, as mulheres perderam em média 26,6% versus 21,9% dos homens.

O colesterol LDL teve uma redução de 21% no grupo 12 mg. No estudo com tirzepatida, a variação máxima foi de 8%. Uma hipótese para esse achado é o agonismo na degradação da PCSK9 pelo glucagon.

Eventos adversos e segurança

Os eventos adversos mais comuns foram gastrointestinais (náuseas/vômitos, diarreia e constipação) e eram mais frequentes em doses maiores da medicação. Não houve nenhum evento de hipoglicemia grave, sendo todas as hipoglicemias maiores que 54 mg/dL e sem sintomas neurológicos ou necessidade da ajuda de terceiros. Aumentos de transaminases ocorreram. Em 1% dos pacientes houve aumento em mais de 3 vezes o limite superior. Parestesias cutâneas foram relatadas em 7% dos pacientes.

Houve um evento adverso grave, caracterizado por alargamento de QT, que aconteceu em uma paciente com vômitos, uso de ondansetrona e hipocalemia. Esse evento alerta que drogas para perda de peso podem predispor ao agrupamento de fatores para alargamento do QT. Durante o tratamento, os pacientes aumentaram a frequência cardíaca em uma média de 6 bpm na maior dose de retatrutida. Os grupos de 8 mg e 12 mg tiveram alguns eventos adversos relacionados a arritmias, como palpitações, extrassístoles ventriculares e taquicardia. O número desses eventos foi pequeno e apenas um grave, mas deve ser observado em estudos maiores.

Comparação com outras terapias

Colocando em perspectiva, a semaglutida no estudo STEP-1 levou à perda de 14,9% do peso na semana 68 e a tirzepatida no SURMOUNT-1 levou à perda de 20,9% na semana 72.

Em relação à cirurgia bariátrica, os resultados são próximos [10]. O sleeve gástrico leva à perda de 29,5% em um ano e 27% em cinco anos, enquanto que o bypass gástrico em Y de Roux causa perda de 31,9% em um ano e 28,1% em cinco anos.

No mesmo dia do estudo sobre perda de peso e retatrutida, foi publicado no Lancet um artigo com retatrutida em pacientes com diabetes [11]. Na dose de 12 mg, a droga levou à queda de 2% da hemoglobina glicada.

Apesar de fase 2, o estudo sinaliza a maior perda de peso conseguida com uma droga até hoje. Estudos de fase 3 são necessários, mas a publicação reforça o papel da terapia medicamentosa no tratamento da obesidade.

Pré-oxigenação e Oxigenação Apneica na Intubação

Criado em: 03 de Julho de 2023 Autor: Kaue Malpighi

Este tópico foi atualizado com as informações do estudo PREOXI, veja uma discussão completa do estudo em "Atualização sobre Pré-Oxigenação: o Estudo PREOXI".

Dessaturação e hipoxemia durante a intubação estão associadas a eventos adversos graves. Duas estratégias utilizadas para evitá-las são a pré-oxigenação e a oxigenação apneica. Em abril de 2023, um artigo sobre o uso de cateter nasal de alta fluxo na oxigenação apneica foi publicado no Annals of Intensive Care [1]. Este tópico revisa o tema e traz os resultados do estudo.

O que é e como fazer pré-oxigenação?

Níveis de saturação de O2 (SpO2) abaixo de 90% ocorrem em um terço dos pacientes durante a intubação em sequência rápida. Esse é um evento potencialmente grave. Algumas consequências incluem instabilidade hemodinâmica, lesão cerebral hipóxica e parada cardiorrespiratória. O tempo que o paciente permanece com saturação abaixo de 90% aumenta o risco de complicações [2, 3].

Idealmente, deve-se manter a saturação acima de 92% durante a intubação. A queda da saturação ocorre de forma progressivamente mais rápida com a dessaturação. O maior ponto de deflexão da curva de dissociação da hemoglobina acontece com a SpO2 em aproximadamente 93% como se observa na figura 1 [4].

Figura 1
Curva de dissociação da hemoglobina
Curva de dissociação da hemoglobina

A estratégia mais usada e conhecida para prevenir a dessaturação é a pré-oxigenação. Ela consiste em oferta de oxigenação com alta fração inspirada de O2 (FiO2) imediatamente antes da intubação. A pré-oxigenação adequada deve ser mantida por pelo menos 3 minutos. A máscara não-reinalante (MNR), bolsa-válvula-máscara (BVM) ou ventilação não invasiva (VNI) podem ser usados para pré-oxigenação. Quando MNR ou BVM são usados, o fluxo de oxigênio deve o "flush rate". Isso significa girar a válvula do fluxômetro até o final, mesmo após atingir 15 L/min. Essa estratégia pode fornecer fluxos de 30 a 60 L/min, otimizando a oferta da FiO2. Na VNI utiliza-se FiO2 de 100%.

A escolha do dispositivo para a pré-oxigenação é feita conforme o risco de hipoxemia de cada paciente [5]:

  • SpO2 > 95% (baixo risco para dessaturação) - pacientes colaborativos sem hipoxemia grave, a MNR é um opção adequada [6].
  • SpO2 entre 91 e 95% (alto risco para dessaturação) - o uso de MNR, BVM com PEEP e CPAP é semelhante em pacientes colaborativos.
  • SpO2 < 90% (hipoxêmico) - Em pacientes com hipoxemia grave e/ou necessidade> 10 L/min de oxigênio antes da intubação, há benefício do uso de VNI para aumentar o tempo de apneia segura [7].

A via aérea tem que estar adequadamente desobstruída e posicionada. Em casos de pacientes com rebaixamento do nível de consciência e ventilação espontânea inadequada (musculatura cervical hipotônica, flexão cervical e queda posterior da língua), o uso de BVM pode ser preferível. A BVM permite manipulação cefálica e cervical para manter a abertura da via aérea e adequada adaptação da interface máscara-face com as manobras jaw-thrust ou chin-lift e a cânula orofaríngea (cânula de Guedel).

Figura 2
Tempo para dessaturação em cenários diferentes
Tempo para dessaturação em cenários diferentes

Em pacientes adequadamente pré-oxigenados, o tempo estimado para dessaturação abaixo de 90% está resumido na figura 2, sendo dependente de fatores como idade, peso e doenças crônicas.

O que é e como fazer oxigenação apneica?

A oxigenação apneica consiste na administração passiva de oxigênio durante o período de apneia (paralisia) do paciente. A forma padrão de se manter a oxigenação apneica é por meio de cateter nasal com 15 L/min após a indução (sedação) e durante o processo de intubação.

Em centro cirúrgico, é bem estabelecido que esta técnica aumenta o tempo de apneia segura sem dessaturação. Apesar de estudos conflitantes fora do centro cirúrgico, uma meta-análise de 2017 com pacientes críticos em intubação de emergência também encontrou benefício em estender o tempo de apneia segura [8].

Por ser um técnica simples, com potencial benefício e sem riscos evidentes, recomenda-se seu uso em toda intubação de emergência.

Outras estratégias para otimizar o tempo de apneia segura

O uso da cabeceira da cama elevada de 20º a 25º pode auxiliar no aumento da apneia segura. Estudos em centros cirúrgicos evidenciam um incremento de até um minuto do tempo de apneia segura, apesar de um ensaio clínico em doentes críticos não ter encontrado benefício [9, 10].

A ventilação manual com BVM durante o período de indução até o início da laringoscopia pode ser realizada em pacientes com alto risco de dessaturação e baixo risco de aspiração. O principal estudo que avaliou essa conduta foi o PreVent, que observou redução do risco de hipoxemia durante o procedimento com o uso de ventilação manual na indução [11]. Alguns cuidados vistos no estudo devem ser tomados:

  • Pacientes de alto risco de aspiração foram excluídos (vômitos, hematêmese, hemoptise e grávidas).
  • BVM com ventilação manual suficiente apenas para expansão torácica visível.
  • Uso de válvula de PEEP ajustada para 5 a 10 cmH2O.
  • Sem hiperventilação, com frequências de no máximo 10 incursões por minuto.

O cateter nasal de alto fluxo (CNAF) tem sido cada vez mais usado na UTI e também estudado na pré-oxigenação e oxigenação apneica. Na pré-oxigenação, o CNAF parece ser equivalente à BVM e MNR, sendo usados fluxos de 50 a 60 L/min com FiO2 de 100% [12-14]. O CNAF pode ser mantido durante a tentativa de intubação, o que pode otimizar o tempo de apneia segura.

No estudo de abril de 2023 do Annals of Intensive Care realizado em pacientes cirúrgicos, o uso de máscara durante a pré-oxigenação foi comparado com o uso de máscara associado ao CNAF, mantendo-se o CNAF durante o período de apneia. O grupo submetido ao uso de CNAF teve menor risco de dessaturação quando comparado ao uso isolado da máscara [1].

Intoxicação por Antidepressivos e Síndrome Serotoninérgica

Criado em: 03 de Julho de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

Um medo nos pacientes que ingerem altas doses de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) é a ocorrência de síndrome serotoninérgica. Um estudo publicado em novembro de 2022 da revista Clinical Toxicology avaliou o desenvolvimento de síndrome serotoninérgica após a ingestão de elevadas doses de ISRS [1]. Este tópico revisa o tema e traz os resultados do estudo.

Intoxicação por inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS)

Os ISRS raramente causam complicações mesmo quando ingeridos em altas doses. A intoxicação intencional costuma ser mais grave que acidental, particularmente quando há coingestão de outras substâncias.

As complicações mais graves são síndrome serotoninérgica, alargamento do intervalo QT e convulsões. O citalopram parece ser o ISRS mais tóxico quando ingerido em altas doses, especialmente pela maior chance de alargar o QT e causar distúrbios de condução [2].

Apesar de seguros, a incidência de síndrome serotoninérgica pode passar de 10% na overdose de ISRS [2]. Sinais de síndrome serotoninérgica sempre devem ser procurados nesse cenário e sua ausência/presença documentada em prontuário. Todos os pacientes com overdose de ISRS devem ter um eletrocardiograma com medição do intervalo QT no pronto-socorro.

O alargamento do intervalo QT pode ser tratado com a infusão de bicarbonato de sódio. Se houver estreitamento do intervalo após a infusão rápida de 1 a 2 mEq/kg, recomenda-se manter uma infusão contínua de bicarbonato. Sulfato de magnésio está indicado se ocorrer torsades de pointes.

Síndrome serotoninérgica

Síndrome serotoninérgica (SS) é uma consequência de excesso de agonismo serotoninérgico no sistema nervoso central e na periferia. Um caso mundialmente conhecido de provável síndrome serotoninérgica letal é o da paciente Libby Zion, que impactou nas residências médicas de vários países.

Atualmente, os ISRS são os medicamentos mais implicados no desenvolvimento da síndrome. Essa complicação pode ocorrer em três situações principais:

  • Durante uso terapêutico, após um aumento de dose
  • Após interações medicamentosas
  • Após ingestão intencional de altas doses

O potencial de interações medicamentosas é maior em idosos, que comumente usam muitas medicações contínuas. O tramadol possui ação serotoninérgica e pode causar síndrome serotoninérgica isoladamente ou em combinação [3]. Uma lista com medicações serotoninérgicas pode ser vista na tabela 1.

Tabela 1
Agentes com ação serotoninérgica
Agentes com ação serotoninérgica

A maior parte dos casos é precoce, ocorrendo em até 24 horas de mudança de dose ou início de alguma droga. Alterações laboratoriais inespecíficas podem ocorrer, como leucocitose (dificultando a diferenciação com sepse, especialmente se houver hipertermia), elevação de creatinofosfoquinase e redução de bicarbonato.

O diagnóstico de síndrome serotoninérgica é clínico. Não existe exame laboratorial para o diagnóstico e dosagem sérica de serotonina ou de ISRS não são úteis. O subdiagnóstico é comum, podendo ser confundida com encefalopatias metabólicas e síndromes infecciosas [4]. O algoritmo utilizado para o diagnóstico é o do critério de Hunter (fluxograma 1).

Fluxograma 1
Algoritmo diagnóstico de síndrome serotoninérgica - critério de Hunter
Algoritmo diagnóstico de síndrome serotoninérgica - critério de Hunter

O tratamento se baseia em:

  • Suspender e evitar qualquer substância com potencial serotoninérgico
  • Tratamento de suporte para complicações (intubação, correção de sinais vitais, tratamento de rabdomiólise)
  • Sedação com benzodiazepínicos
  • Administração de antagonista serotoninérgico - ciproeptadina

Não existe comprovação rigorosa de ensaios clínicos da eficácia de ciproeptadina, porém múltiplos relatos de caso e evidência indiretas favorecem o uso [5-7]. O momento de iniciar ciproeptadina não é definido, mas pode ser utilizada se não houver resposta com terapia de suporte e benzodiazepínicos. Pode ser feita uma dose inicial de 12 mg seguida por doses adicionais de 2 mg a cada duas horas até uma resposta adequada.

O que o estudo encontrou?

O estudo foi uma coorte retrospectiva de um centro de toxicologia. Foram analisados dados de 23 anos, incluindo 1978 overdoses por antidepressivos ISRS e duais.

A síndrome serotoninérgica ocorreu em 13% dos episódios de overdose. A probabilidade de síndrome serotoninérgica aumenta se a dose de antidepressivo for maior e aumenta levemente se forem utilizados duais. A probabilidade da síndrome é menor em pacientes mais jovens e quando há coingestão com os antipsicóticos olanzapina e risperidona.

Os resultados mostram que síndrome serotoninérgica é relativamente comum após overdose de antidepressivos e deve ser ativamente procurada nesse cenário.