Manejo de Sangramento Maior em Pacientes em Uso de Anticoagulante Oral

Criado em: 18 de Setembro de 2023 Autor: Kaue Malpighi

Sangramento é o principal evento adverso dos anticoagulantes e deve ser rapidamente identificado e manejado. Em julho de 2023, foi lançado um consenso no European Journal of Emergency Medicine sobre o tratamento de sangramento maior em pacientes em uso de anticoagulantes orais [1]. Este tópico revisa a definição de sangramento maior e as estratégias para reverter a anticoagulação.

Definição de sangramento maior

Sangramento é a principal complicação do uso de anticoagulantes e é um desfecho de segurança avaliado em estudos com estas medicações. A International Society for Thrombosis and Haemostasis (ISTH) define sangramento maior como um dos seguintes [2]:

  • Sangramento fatal
  • Queda de 2 g/dL de hemoglobina
  • Necessidade de transfusão de dois ou mais concentrados de hemácias
  • Sangramento com acometimento de órgão ou área crítica (intracraniano, intraespinal, ocular, retroperitoneal, pericárdico, articular ou intramuscular com síndrome compartimental).

Essa definição unifica os termos usados para sangramentos graves na literatura. Isso permite uma comparação de resultados dos medicamentos que interferem com a hemostasia.

As principais causas de sangramento maior são: associadas ao trauma, hemorragias intracranianas espontâneas e sangramentos gastrointestinais.

A presença de choque associada a história de sangramento deve apontar para hipovolemia como causa. O manejo inicial consiste na monitorização, suporte hemodinâmico e protocolos de transfusão maciça individualizados em cada instituição. Este suporte independe de exames complementares iniciais como hemograma ou hemoglobina.

Pacientes em uso de antagonistas da vitamina K

O antagonista de vitamina K disponível no Brasil é a varfarina, que atua reduzindo a síntese de fatores II, VII, IX e X. Sua meia-vida é de aproximadamente 48 horas.

Em casos de sangramentos maiores com uso de varfarina, o consenso europeu indica o uso combinado do concentrado de complexo protrombínico de 4 fatores (CCP-4F) e reposição de vitamina K. A repleção dos fatores de coagulação isoladamente pode não ser suficiente para reverter o efeito anticoagulante, existindo a possibilidade de efeito rebote da varfarina. Na indisponibilidade de CCP-4F, pode ser usado plasma fresco congelado (PFC).

A dose de vitamina K é 10 mg e deve ser feita intravenosa. O início da ação pode demorar até duas horas.

Tabela 1
Dose de CCP-4F para reversão de antagonistas da vitamina K no sangramento maior
Dose de CCP-4F para reversão de antagonistas da vitamina K no sangramento maior

O CCP-4F contém os fatores II, VII, IX e X, sua ação acontece em menos de trinta minutos. É mais rápido e mais seguro que o PFC, especialmente quando se compara o risco de sobrecarga volêmica. O consenso recomenda que a dose seja conforme o peso e RNI inicial (veja tabela 1). Doses fixas também podem ser consideradas. O RNI deve ser solicitado novamente após 15 minutos da infusão. A dose de CCP-4F pode ser repetida caso o RNI se mantenha acima de 1,5.

Pacientes em uso de anticoagulantes orais diretos

Os anticoagulantes orais diretos (DOACs - direct oral anticoagulants) atuam inibindo fatores específicos:

  • Inibidor do fator II ativado (ou inibidores direto da trombina) - dabigatrana é o único exemplo.
  • Inibidores do fator X ativado - rivaroxabana, apixabana e edoxabana.

A meia-vida difere entre eles, mas é mais curta que da varfarina. Não possuem efeito rebote considerável (veja tabela 2).

Tabela 2
Propriedades dos anticoagulantes orais diretos
Propriedades dos anticoagulantes orais diretos

Em caso de sangramento grave em uso de DOACs, devem ser usados reversores específicos.

Em pacientes em uso de dabigatrana, o consenso recomenda reversão com idarucizumabe, um anticorpo monoclonal que se liga à dabigatrana [3]. Apesar de liberado pela ANVISA, sua disponibilidade ainda é limitada pelo custo.

O alfa andexanete é o reversor recomendado no uso de rivaroxabana e apixabana. É uma proteína recombinante do fator Xa que se liga ao inibidor e inativa seu efeito. Não foi aprovado para a reversão de edoxabana, apesar de este DOAC também agir no fator Xa. No estudo ANNEXA-4, que avaliou sua eficácia em pacientes com sangramento maior e uso de inibidores do fator Xa, houve pouca representação de pacientes em uso de edoxabana [4]. Um outro estudo menor que avaliou especificamente o alfa andexanete em pacientes em uso de edoxabana evidenciou bom controle hemostático [5].

A dose do alfa andexanete depende do tempo desde a última dose de anticoagulante (veja fluxograma 1). É realizada infusão em bolus com ação rápida em até 2 minutos, devendo-se seguir uma dose de manutenção por duas horas para evitar efeito rebote do anticoagulante.

Fluxograma 1
Dose de alfa adexanete no sangramento maior em pacientes em uso de inibidores do Xa
Dose de alfa adexanete no sangramento maior em pacientes em uso de inibidores do Xa

Em casos de indisponibilidade do idarucizumabe ou alfa andexanete, o uso de CPP-4F pode ser considerado [6].

O estudo ANNEXA-I, que compara o alfa adexanete com tratamento usual (incluindo CPP-4F) em hemorragia intracraniana e uso de rivaroxabana e apixabana, foi interrompido precocemente por ter atingido critérios pré-especificados de superioridade no efeito hemostático. Os resultados deste estudo devem ser publicados em breve.

Síndromes e Cenários

Dermatite de Estase

Criado em: 18 de Setembro de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Dermatite de estase é uma doença inflamatória comum, que acomete os membros inferiores. Pode haver dificuldade para diferenciar de outras condições como as infecções de pele. Este "síndrome e cenários" revisa a condição e seu tratamento.

O que é a dermatite de estase?

A dermatite de estase (DE) é um processo inflamatório cutâneo causado principalmente por insuficiência venosa crônica. Também é conhecida como eczema de estase ou dermatite gravitacional.

Figura 1
Dermatite de estase
Dermatite de estase

A dermatite de estase é mais comum em pacientes de mais idade, estando presente em 6% da população com mais de 65 anos [1].

Além da idade, outros fatores de risco para desenvolver dermatite de estase são insuficiência cardíaca, obesidade, gestação e história familiar de doença venosa.

Diagnóstico

O diagnóstico da DE é clínico, mas a biópsia pode auxiliar em casos de dúvidas. A dificuldade de cicatrização é um dos motivos para se realizar poucas biópsias nesse cenário.

A apresentação mais comum é o eritema em membros inferiores, sendo a região do maléolo medial a mais acometida. A lesão pode se estender até os pés. A pele também pode apresentar descamação, ressecamento e prurido.

A diferenciação entre dermatite de estase e infecções de pele é difícil, especialmente quando existe eritema. Até 33% dos pacientes diagnosticados com celulite ou erisipela possuem outra patologia associada. Entre elas, a mais comum é a dermatite de estase.

O predomínio bilateral é mais comum na DE, enquanto as infecções cutâneas primárias tendem a ser unilaterais. Outra pista é a cronicidade da dermatite de estase, muitas vezes confundida com celulite de repetição. Veja outras diferenças na tabela 1.

Tabela 1
Diferenças entre dermatite de estase e celulite/erisipela
Diferenças entre dermatite de estase e celulite/erisipela

O ressecamento da pele e o prurido facilitam as infecções secundárias. Nessa situação, a dor pode ser mais intensa e as lesões, assimétricas entre os membros. O tratamento deve ser direcionado à DE e à infecção.

A dermatite de contato é um diagnóstico diferencial, mas pode ocorrer em associação à DE. Algumas pomadas usadas no tratamento da DE podem desencadear a dermatite de contato.

Cronicidade e complicações

Alguns sinais acontecem em fases crônicas da doença. A liquenificação é um espessamento cutâneo, causado pela coceira [2]. Os pacientes podem apresentar hiperpigmentação local, em decorrência dos depósitos de hemossiderina na pele. As úlceras venosas são possíveis manifestações na DE crônica.

Uma complicação de dermatite de estase é a lipodermatoesclerose (veja aqui um exemplo de lipodermatoesclerose), uma paniculite fibrosante que pode evoluir com deformidade da pele e tecido subcutâneo. A aparência da lesão se assemelha a uma garrafa de champagne invertida na perna. Ela demora semanas a meses para surgir e geralmente é bilateral.

A acroangiodermatite, também chamada de pseudo-sarcoma de Kaposi, é outra complicação da doença [3]. Ocorre por hiperplasia vascular secundária a aumento da pressão venosa. Pode se apresentar como máculas, pápulas ou placas purpúricas no dorso dos pés e maléolos. A biópsia da lesão pode ser necessária para diferenciar do sarcoma de Kaposi.

Tratamento

O tratamento tem dois pilares: resolver o processo inflamatório atual e abordar a estase venosa.

A inflamação pode ser tratada com corticoides tópicos de média e alta potência, que também auxiliam no controle do prurido. Exemplos de corticoide possíveis são: valerato de betametasona 0,1% e valerato de hidrocortisona 0,2%. Podem ser mantidos por 7 a 14 dias. O uso prolongado está associado a atrofia local e efeitos sistêmicos. A xerose cutânea pode ser tratada com hidratantes.

A estase é tratada principalmente com compressão média (30 mmHg) ou alta (60 mmHg), utilizando meias ou ataduras. O paciente deve ser avisado que a elasticidade da meia reduz com o tempo. A terapia de compressão é contraindicada em pacientes com doença arterial periférica [4].

Outra opção para o manejo da estase é a bota de Unna. É uma atadura de compressão que também contém óxido zinco. Pode aliviar os sintomas inflamatórios locais. O uso é mais estudado em pacientes com úlceras venosas.

No paciente com DE também devem ser pesquisadas e tratadas outras causas de edema, como insuficiência cardíaca e medicamentos.

Tirofiban no AVC isquêmico

Criado em: 18 de Setembro de 2023 Autor: João Urbano

Terapias de reperfusão para AVC isquêmico são o padrão ouro de tratamento agudo. A trombectomia mecânica é efetiva em casos com oclusão proximal de vasos, mas ainda pouco disponível. A trombólise endovenosa é mais acessível, porém é limitada pela janela terapêutica. O estudo RESCUE BT2, publicado no New England Journal of Medicine em junho de 2023, avaliou o papel do antiagregante tirofiban no tratamento agudo de AVC isquêmico sem oclusão proximal e sem resposta à trombólise endovenosa [1]. Esse tópico revisa os antiagregantes no AVC e traz os resultados do estudo.

Qual o papel da antiagregação no AVC?

A antiagregação é uma etapa importante para redução da taxa de recorrência do AVC.

Pacientes submetidos à trombólise endovenosa não devem iniciar antiagregação simples com ácido acetil salicílico (AAS) 100 mg/dia nas primeiras 24 horas por maior risco de sangramento intracraniano.

Pacientes submetidos à trombectomia não devem receber antiagregantes periprocedimento por risco de sangramento e piores desfechos. A utilização de antiagregantes após trombectomia depende de múltiplos fatores (colocação de stent, embolização distal do trombo) e a decisão deve ser tomada em conjunto com a equipe de neurorradiologia.

Pacientes que não realizaram terapia de reperfusão aguda devem ter antiagregação com AAS 100 mg/dia iniciada dentro das primeiras 24h. No AIT de baixo risco, a antiagregação com AAS 100 mg/dia deve ser iniciada dentro de 24 horas. Para revisar a abordagem ao AIT, confira o tópico Abordagem do Paciente com Ataque Isquêmico Transitório.

Pacientes com mecanismo cardioembólico evidente descoberto durante a investigação devem ter sua profilaxia secundária realizada com anticoagulação (veja também o tópico Quando Iniciar Anticoagulação de Fibrilação Atrial Após AVC?)

Quando pensar em dupla antiagregação para AVC?

Alguns pacientes não têm indicação de terapia de reperfusão e possuem menor risco de sangramento intracraniano. Esse grupo se beneficia de dupla antiagregação (DAPT) para minimizar o risco de recorrência.

Os pacientes que têm indicação de DAPT foram estabelecidos pelos principais estudos sobre o tema como o POINT e CHANCE, compilados em uma meta-análise [2]. As indicações são:

  • AIT de alto risco, definido pelo escore ABCD2 de 4 ou mais.
  • AVC com pontuação na escala de NIHSS de 3 ou menos.

Esses pacientes devem receber DAPT nas primeiras 24h. A prescrição deve ser realizada da seguinte maneira: dose inicial de ataque com AAS 300 mg e clopidogrel 300 mg, seguida de dose manutenção com AAS 100 mg/d e clopidogrel 75 mg/d.

A duração da DAPT deve ser de 21 dias, com suspensão do clopidogrel e manutenção de AAS isoladamente após esse período. Uma exceção a essa regra é para pacientes com evento cerebrovascular causado por aterosclerose intracraniana significativa (>70%). Nessa situação, estende-se a duração da DAPT para 90 dias.

O que o estudo acrescenta?

O tirofiban é um antiagregante que inibe a glicoproteína IIb/IIIa, uma das vias de ativação plaquetária. Esse mecanismo é distinto dos antiagregantes como AAS (inibidores da ciclo-oxigenase) e clopidogrel (inibidores da P2Y12). O tirofiban é administrado via endovenosa e tem meia vida curta, com efeito totalmente revertido até 3h do final da infusão aproximadamente.

O estudo RESCUE-BT2 foi duplo cego, multicêntrico em hospitais na China, randomizando 1177 pacientes em dois grupos. Um deles recebeu tirofiban endovenoso com placebo via oral, enquanto o outro recebeu AAS 100 mg com placebo endovenoso por 48h. Após o período inicial de 48h, ambos os grupos receberam AAS 100 mg até o 90º dia.

O estudo avaliou pacientes com AVC não cardioembólico com pontuação na escala de NIHSS de 5 ou mais e pertencentes a qualquer um dos grupos da tabela 1. O desfecho primário foi a avaliação de funcionalidade em 90 dias por meio da escala de Rankin modificada (mRS).

Tabela 1
Critérios de elegibilidade do estudo RESCUE-BT2
Critérios de elegibilidade do estudo RESCUE-BT2

O resultado do estudo foi de melhores desfechos para o grupo tratado com tirofiban. O benefício foi melhor observado em desfechos secundários como avaliação de funcionalidade e qualidade de vida.

No grupo controle não houve sangramentos intracranianos sintomáticos, enquanto no grupo tratado com tirofiban houve seis eventos. Esse é um elemento importante a ser observado, mas a incidência ainda é considerada baixa (1%).

O estudo traz uma evidência mais robusta para um possível uso do tirofiban no AVC agudo em cenários com poucas opções terapêuticas.