Guia Prático de Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica

Criado em: 09 de Outubro de 2023 Autor: Joanne Alves Moreira

Em janeiro de 2023, a American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) publicou recomendações sobre avaliação e manejo da doença hepática gordurosa não alcoólica (nonalcoholic fatty liver disease - NAFLD) [1]. Esse tópico revisa os principais pontos da diretriz.

Entendendo a nomenclatura

Doença hepática gordurosa não alcoólica (nonalcoholic fatty liver disease - NAFLD) é um termo abrangente que inclui a esteatose hepática não alcoólica e esteatohepatite não alcoólica (nonalcoholic steatohepatitis - NASH). O que diferencia essas duas últimas condições é a evidência de lesão hepática, que está presente na NASH, mas está ausente na esteatose hepática não alcoólica.

A deposição de gordura hepática nos pacientes com NAFLD acontece de forma independente da ingestão de álcool e na ausência de causas alternativas de esteatose.

O limite para o consumo de álcool associado a NAFLD é de menos de 20 g/dia para mulheres e menos de 30 g/dia para homens. Em média, uma dose de álcool tem 14 g (veja a figura 1).

Figura 1
Dose equivalente de álcool
Dose equivalente de álcool

Causas alternativas de esteatose devem ser consideradas e afastadas conforme o contexto clínico, em especial as seguintes:

  • Drogas: metotrexato, tamoxifeno, amiodarona, corticoides
  • Doenças hepáticas: doença de Wilson, doença celíaca e carência nutricional

Quais são os fatores de risco e como avaliar?

NAFLD está diretamente ligada e frequentemente precede o desenvolvimento de síndrome metabólica. Os fatores de risco da NAFLD estão na tabela 1.

Tabela 1
Fatores de risco para doença hepática gordurosa não alcoólica
Fatores de risco para doença hepática gordurosa não alcoólica

DM2 é o fator de risco com maior impacto no desenvolvimento de NAFLD, progressão da fibrose e carcinoma hepatocelular [2, 3]. A presença de NAFLD está associada a um risco de duas a cinco vezes de incidência de diabetes mellitus tipo 2 (DM2).

A presença e o grau de obesidade estão relacionados com a progressão de NAFLD. O acúmulo de gordura visceral aumenta o risco de resistência insulínica, doença cardiovascular e fibrose hepática, independente do índice de massa corporal (IMC). Em pessoas com NAFLD há maior incidência de hipertensão, dislipidemia, doença aterosclerótica e doença renal crônica [4].

A avaliação inicial do paciente com esteatose inclui:

  1. Rastreio de síndrome metabólica
  2. Avaliação do consumo de álcool
  3. Exclusão de outras causas de hepatopatia.

O exame físico deve buscar sinais de resistência à insulina e de doença hepática avançada (veja a tabela 2).

Tabela 2
Avaliação inicial de esteatose hepática
Avaliação inicial de esteatose hepática

O rastreio de NAFLD é direcionado para pessoas com risco aumentado de hepatopatia, no caso aquelas com obesidade, DM2, HAS e história familiar de cirrose por NASH. O objetivo é identificar pacientes com fibrose clinicamente significativa (estágio ≥ 2).

A suspeita de NAFLD ocorre na presença de fatores de risco ou quando existe achado incidental de esteatose hepática em exames de imagem (como na ultrassonografia). Nesse cenário, os pacientes devem ter o escore FIB-4 calculado (fibrosis-4 index). Esse escore tem como objetivo identificar pessoas com maior probabilidade de ter fibrose avançada.

Um paciente com FIB-4 < 1.3 é considerado de baixo risco e uma nova avaliação só é indicada em um a três anos, dependendo da presença de DM2 ou outro fator de risco. Caso o FIB-4 ≥ 2.67, a diretriz sugere encaminhar para avaliação especializada. Em valores intermediários, a diretriz sugere teste adicional, sendo a elastografia uma opção (veja mais detalhes no fluxograma 1).

Fluxograma 1
Sugestão de investigação de doença gordurosa hepática não alcoólica (DGHNA)
Sugestão de investigação de doença gordurosa hepática não alcoólica (DGHNA)

Leia também sobre FAST-score que falamos no tópico Escore para Identificação de Fibrose na Esteatose Hepática.

Abordagem terapêutica

A base do tratamento é mudança do estilo de vida com dieta e exercício físico regular. A perda de 3 a 5% do peso já reduz a esteatose. Para redução de NASH e fibrose geralmente é necessária perda de peso maior do que 10%.

Não existem medicamentos aprovados para tratamento direcionado de NAFLD. Apesar disso, algumas medicações mostraram benefício em estudos clínicos e podem ser consideradas segundo a diretriz. Benefício antifibrótico claro não foi encontrado e as medicações não foram estudadas especificamente em pacientes com cirrose.

Em pacientes sem DM2, a vitamina E é uma opção. A medicação reduz os níveis de transaminases sem reduzir fibrose [5]. O uso a longo prazo deve ser ponderado devido dados conflitantes quanto à associação com neoplasia de próstata [6, 7].

Análogos de GLP-1 (liraglutida e semaglutida) devem ser considerados em pacientes com DM2 ou obesidade, reduzindo a progressão de fibrose e de NASH e conferindo benefício cardiovascular [8, 9]. Tirzepatida e inibidores de SGLT-2 têm possível benefício no tratamento pela melhora em exames de imagem, porém mais trabalhos são necessários para confirmar o benefício. Veja o resumo na tabela 3.

Tabela 3
Abordagem farmacológica de doença hepática gordurosa não alcoólica
Abordagem farmacológica de doença hepática gordurosa não alcoólica

A pioglitazona reduz esteatose e inflamação associada a NASH em pessoas com ou sem DM2 ou pré-DM2 [10, 11]. A diretriz coloca como opção em pacientes com DM2.

Para reduzir o risco cardiovascular em pessoas com NAFLD, recomenda-se o uso de estatina, inclusive nos pacientes com cirrose compensada.

A cirurgia bariátrica deve ser considerada como uma opção terapêutica em pacientes que preencham os critérios para a cirurgia metabólica de perda de peso. O procedimento tem potencial de resolver a NAFLD ou NASH na maioria das pessoas sem cirrose e diminuir a mortalidade por neoplasias e doenças cardiovasculares.

Veja mais no episódio 122 sobre esteatose hepática.

Será que Tem Evidência?

Oseltamivir na Infecção por Influenza

Criado em: 09 de Outubro de 2023 Autor: Frederico Amorim Marcelino

Oseltamivir é um antiviral recomendado para o tratamento de infecção por influenza em pacientes de alto risco. Em junho de 2023 foi publicada no Journal of the American Medical Association uma revisão sistemática e meta-análise para avaliar o uso de oseltamivir em pacientes ambulatoriais [1]. Esse tópico revisa as evidências do uso dessa medicação.

Recomendações atuais de oseltamivir para tratamento de Influenza

Oseltamivir é um antiviral usado no tratamento de infecção por influenza. O Guia de manejo e tratamento de Influenza publicado em 2023 pelo do Ministério da Saúde do Brasil recomenda o uso de oseltamivir em duas situações [2]:

  • Síndrome respiratória aguda grave (SRAG) independentemente da coleta ou positividade de exames (tabela 1).
  • Síndrome gripal com condições e fatores de risco para complicações (tabela 2).
Tabela 1
Definição de síndrome respiratória aguda grave
Definição de síndrome respiratória aguda grave
Tabela 2
Pacientes com síndrome gripal com condições e fatores de risco para complicações
Pacientes com síndrome gripal com condições e fatores de risco para complicações

A Organização Mundial de Saúde (OMS), o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), a Infectious Disease Society of America (IDSA) e a European Society of Clinical Microbiology and Infectious Diseases (ESCMID) também recomendam o uso de oseltamivir no tratamento de infecção por influenza em condições semelhantes [3, 4, 5, 6]. A dose recomendada é de 75 mg a cada 12 horas por cinco dias. A OMS também incluiu a medicação na lista de medicações essenciais.

Em pacientes intubados, a droga pode ser administrada por sonda oro ou nasogástrica. O pó contido na cápsula deve ser dissolvido em 20 ml de água estéril e injetado pela sonda, seguido de um flush de 10 ml de água [7]. As recomendações atuais não orientam dobrar a dose (150 mg de 12/12 horas) em pacientes graves ou imunossuprimidos [4].

A justificativa da recomendação é baseada na redução de três desfechos: tempo de sintomas, hospitalização por influenza e risco de complicações e mortalidade.

Polêmica após aprovação

Em 2009 a Cochrane publicou uma meta-análise que encontrou diminuição de hospitalização com uso de oseltamivir, assim como redução na duração de sintomas. Essa revisão usou como base os dados de uma meta-análise publicada anteriormente. Dos dez estudos incluídos, apenas dois tinham sido publicados em jornais com revisão pelos pares. Os oito estudos restantes foram apresentados em congressos ou como resumos em conferências [8-10]. Esse fato foi notado pela comunidade científica que confrontou os resultados da publicação de 2009.

A partir daí, a Cochrane decidiu fazer uma análise completa dos dez estudos. A liberação dos dados só ocorreu em 2013. Até então, as informações eram sigilosas, pois a maior parte dos estudos foi desenvolvida pela indústria farmacêutica e os resultados não foram compartilhados com OMS, CDC, FDA dos Estados Unidos ou a European Medicines Association (EMA).

A nova revisão e meta-análise feita pela Cochrane foi publicada em 2014 [11]. Nesse novo estudo não foi encontrada diferença de hospitalização entre os grupos que usaram oseltamivir e o placebo. O achado de diminuição de tempo de sintomas se manteve.

O estudo atual

A revisão sistemática e meta-análise publicada em 2023 pelo Journal of the American Medical Association avaliou 15 estudos randomizados, incluindo 6295 pacientes no cenário ambulatorial [1]. Dos 15 estudos, nove foram patrocinados pela empresa responsável pelo oseltamivir.

O desfecho primário avaliado foi hospitalização por qualquer causa e a análise foi feita por intenção de tratar. A confirmação de infecção foi feita principalmente por métodos moleculares ou cultura viral, mas estudos mais antigos utilizaram aumento dos títulos de anticorpos como confirmação.

Não houve redução de hospitalização com o uso de oseltamivir na população estudada. A média de idade era de 45 anos e mesmo entre idosos e pacientes com fatores de risco para hospitalização não foi identificado benefício do oseltamivir. Em análise restrita a estudos patrocinados pela indústria farmacêutica, houve tendência de diminuição de hospitalização.

Náuseas e vômitos foram significativamente mais comuns na população que usou oseltamivir. Não houve aumento de eventos adversos graves.

Os autores do trabalho propõem algumas explicações para os resultados. Primeiro, os estudos patrocinados usaram cultura viral para confirmar a infecção, enquanto os estudos mais atuais utilizaram métodos moleculares. Estes exames são mais sensíveis e podem diagnosticar casos com menor carga viral, situação em que o uso de oseltamivir pode ter benefício mais discreto. Segundo, o oseltamivir pode reduzir a soroconversão. Nesse caso, pacientes hospitalizados em uso da medicação podem ter sido considerados não infectados já que soroconvertem menos. Por último, os estudos patrocinados foram realizados em períodos de menor resistência ao oseltamivir, o que pode explicar o benefício encontrado por esses estudos.

Críticas ao estudo e considerações finais

Apesar do grande número de pacientes, o baixo número de hospitalizações (0,6% no grupo controle) pode dificultar a identificação de diferença entre placebo e oseltamivir. Com um número baixo de eventos, os autores estimaram que seria necessária análise de 30.716 pacientes para identificar uma redução relativa de risco em 30%. Já um estudo que selecionasse apenas populações de alto risco necessitaria de 15.232 pacientes.

A média de idade de 45 anos e a exclusão de indivíduos em imunossupressão também dificulta a identificação de diferença clínica entre os grupos, considerando que o maior risco é em população idosa e imunossuprimidos.

A evidência atual sugere que o oseltamivir não diminui hospitalização em pacientes ambulatoriais com influenza, mas parece diminuir tempo de sintomas. As populações imunossuprimidas ou com comorbidades graves ainda são pouco estudadas, o que limita a extrapolação dos resultados para esses grupos. A diminuição da duração de sintomas tem efeito econômico e/ou social que deve ser considerado ao decidir sobre a prescrição.

Tonsilectomia para Faringite de Repetição

Criado em: 09 de Outubro de 2023 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Faringite de repetição em adultos está associada a incapacidade, com perda de funcionalidade durante os dias de doença. Um dos tratamentos possíveis para reduzir os episódios é a tonsilectomia, porém há poucos estudos sobre os benefícios do procedimento. Recentemente foi publicado o NATTINA, um dos maiores trabalhos sobre essa questão [1]. Esse tópico revisa faringite de repetição em adultos e traz os resultados do estudo.

Faringite em adultos

As principais causas de faringite no adulto são infecções virais e Streptococcus do grupo A. É necessário diferenciar as faringites virais das bacterianas, pois o tratamento da infecção por Streptococcus pode reduzir complicações supurativas (abscessos peritonsilares e retrofaríngeos) e não supurativas (febre reumática e glomerulonefrite).

Fluxograma 1
Investigação e manejo de odinofagia
Investigação e manejo de odinofagia

As infecções virais tendem a apresentar mais coriza, diarreia e exantema. Realizar essa diferenciação através do julgamento clínico é difícil. Uma ferramenta recomendada para ajudar na diferenciação é o critério de Centor modificado (fluxograma 1) [2]. Pacientes de alto risco pelo escore devem realizar o teste rápido de antígeno para Streptococcus. Em adultos, esse teste possui sensibilidade de 86 a 91% com especificidade de 86 a 97% [3].

Há outras causas para dor de garganta no adulto, como visto na tabela 1. A dor de garganta por infecção aguda pelo HIV pode ser acompanhada de febre, úlceras mucocutâneas e fadiga. Deve-se sempre procurar por exposições de risco e outras IST.

Tabela 1
Exemplos de outras doenças que causam dor de garganta
Exemplos de outras doenças que causam dor de garganta

Outra causa relevante de dor de garganta no adulto é a mononucleose. Os sinais com maior probabilidade para essa doença são petéquias no palato e linfonodomegalia cervical posterior. O hemograma pode apresentar linfocitose atípica [4].

Quando fazer tonsilectomia?

A tonsilectomia (amigdalectomia) pode ser realizada em pacientes com abscessos tonsilares. Não há evidência clara de benefício de tonsilectomia para faringite de repetição em adultos. A diretriz inglesa recomenda considerar a cirurgia em pacientes que apresentam [5]:

  • Confirmação que a dor de garganta era por faringite E
  • Episódios de dor de garganta incapacitantes que impedem a rotina diária E
  • Sete ou mais episódios no último ano OU cinco ou mais episódios por ano nos últimos dois anos OU três episódios por ano nos últimos três anos.

Uma indicação não relacionada a processo infeccioso é quando há suspeita de malignidade. Essa dúvida ocorre quando o paciente apresenta assimetria persistente das tonsilas. Se isso ocorrer em associação com dor crônica no local, disfagia, ulceração, adenopatia cervical ou perda de peso, é indicada a realização da tonsilectomia para afastar malignidade. Em pacientes que não apresentam esses sintomas associados, a assimetria isolada é um sinal de risco baixo de malignidade [6]. Nesses casos pode ser ou optado por observação ou por investigar linfonodomegalias não palpáveis com tomografia.

Tonsilectomia também pode ser indicada em pacientes com SAHOS que apresentam hipertrofia tonsilar. A cirurgia é reservada para aqueles que falham a terapia inicial de perda de peso, higiene do sono e CPAP [7].

O procedimento pode apresentar complicações graves. As principais são infecções e sangramentos. As infecções podem ocorrer no local da cirurgia ou pneumonia por aspiração após o procedimento.

Os sangramentos ocorrem em dois tempos. O primeiro momento é nas primeiras seis horas após o procedimento e pode necessitar de uma reabordagem cirúrgica. O segundo momento, que pode ser mais comum que o primeiro, é o intervalo entre o 5º e 14º dia [8]. Uma explicação para esse sangramento tardio é que nesse período ocorre uma descamação da cicatrização, expondo vasos sanguíneos.

O que o estudo NATTINA acrescentou?

O estudo NATTINA é um trabalho encomendado pelo National Health Service (NHS), o sistema de saúde britânico [1]. A motivação é o alto número de tonsilectomias realizadas no Reino Unido, porém sem uma evidência clara de benefício na literatura. O estudo selecionou pacientes do Reino Unido que tinham faringite de repetição e foram encaminhados para uma avaliação com um otorrinolaringologista. O critério de faringite de repetição era baseado na diretriz inglesa (ver subtópico "Quando fazer tonsilectomia?").

Os 453 pacientes selecionados foram randomizados para tonsilectomia ou tratamento conservador. O desfecho primário foi o número de dias com dor de garganta durante 24 meses. A média de idade foi de 23 anos.

Ao longo do período observado, o grupo tonsilectomia teve menos episódios de dor de garganta (23 dias) do que o grupo conservador (30 dias). Nos desfechos secundários, o grupo tonsilectomia também teve melhores desfechos em questionários de qualidade de vida e em análise de custo-benefício. Os principais eventos adversos relacionados à tonsilectomia foram sangramento (19%) e infecção (3%).

O estudo tem algumas críticas. A primeira é que o estudo foi não-cego devido ao procedimento cirúrgico. O não-cegamento em associação com um desfecho voltado a sintomas relatados pelo paciente traz um grande risco de viés. O segundo problema são os dados faltantes. Apenas metade dos participantes completaram 80% dos questionários enviados durante os 24 meses de acompanhamento.

Esse é o maior estudo sobre essa questão clínica em adultos, porém ainda com falhas metodológicas. Os resultados podem ajudar na tomada de decisão compartilhada, auxiliando com dados mais objetivos sobre os benefícios e riscos do procedimento.