Semaglutida para Prevenção Cardiovascular Secundária

Criado em: 04 de Dezembro de 2023 Autor: João Mendes Vasconcelos

A semaglutida reduz eventos cardiovasculares em pacientes com diabetes. Será que essa droga é capaz de reduzir esses desfechos em pacientes de alto risco sem diabetes, porém com obesidade ou sobrepeso? Essa foi a pergunta que o estudo SELECT, publicado no New England Journal of Medicine em novembro, tentou responder [1]. Esse tópico revisa o que existe para prevenção secundária e traz os resultados do estudo.

Definição de alto risco cardiovascular

A população de pacientes que já teve um evento cardiovascular inclui aqueles com infarto, AVC ou doença arterial obstrutiva periférica (DAOP). Nesse grupo estão também pacientes que já tiveram um ataque isquêmico transitório, que possuem angina estável ou claudicação intermitente de causa vascular. Independente de comorbidades ou outros fatores de risco, todas essas pessoas têm muito alto risco cardiovascular.

Em pacientes que não tiveram evento, a definição de alto risco e muito alto risco cardiovascular depende da probabilidade de um evento ocorrer nos próximos dez anos. Para definir alto risco, algumas diretrizes estipulam uma probabilidade de mais de 20% nos próximos dez anos, enquanto risco intermediário é definido por uma probabilidade entre 7,5% e 20% [2]. Os dois links a seguir tem calculadoras para estimar o risco: calculadora para estratificação de risco cardiovascular SBC e ASCVD risk estimator.

Apesar de certas limitações, alguns aplicam as recomendações de prevenção cardiovascular secundária aos pacientes que nunca tiveram evento e que têm alto risco. O argumento é que o elevado risco torna mais fácil reproduzir os benefícios encontrados na prevenção secundária.

Prevenção secundária de eventos cardiovasculares

A prevenção secundária de eventos cardiovasculares pode ser dividida em medidas farmacológicas e modificações do estilo de vida.

Entre as mudanças do estilo de vida, recomenda-se:

  • Cessação do tabagismo.
  • Dieta saudável. Uma das dietas com mais evidência de redução de eventos é a dieta mediterrânea.
  • Atividade física. Pelo menos 150 minutos/semana de moderada intensidade ou 75 minutos/semana de alta intensidade.
  • Limitar o consumo de álcool.

Entre as estratégias farmacológicas, deve-se controlar três comorbidades: hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus (DM) e dislipidemia. Além disso, todo paciente com doença cardiovascular estabelecida deve utilizar ácido acetilsalicílico (AAS). Naqueles que não toleram AAS, uma opção é o clopidogrel.

O estudo SELECT

A obesidade tem impacto indireto na incidência de doenças cardiovasculares ao aumentar o risco de HAS, DM e dislipidemia. Porém, existe também um efeito direto da obesidade no aumento do risco cardiovascular, independente das comorbidades. Havia dúvida se a semaglutida seria capaz de atuar nessa via, a despeito das comorbidades.

O SELECT foi um ensaio clínico randomizado que comparou a semaglutida contra placebo na prevenção secundária de eventos cardiovasculares. O estudo foi duplo cego e guiado por eventos. O estudo foi patrocinado pela Novo Nordisk, fabricante da semaglutida.

Os pacientes precisavam ter mais de 45 anos, IMC de 27 ou mais e doença cardiovascular estabelecida para serem incluídos no estudo. Doença cardiovascular foi definida como infarto prévio, AVC ou DAOP. Pessoas com diabetes eram excluídas do estudo. Os pacientes eram randomizados para semaglutida, objetivando uma dose de 2,4 mg, ou placebo. O desfecho primário foi uma composição de morte cardiovascular, infarto não fatal e AVC - eventos considerados como eventos cardiovasculares maiores ou MACE.

O estudo incluiu ao todo 17.600 pacientes com média de idade de 61 anos. A média de IMC foi de 33. Mais de 3/4 dos pacientes tiveram infarto prévio e 1/4 tinha insuficiência cardíaca. A maioria estava em uso de estatina (90%) e antiagregante plaquetário (86%). A pressão sistólica média no início do estudo era de 130 mmHg e o colesterol LDL de 78 mg/dl.

O que o estudo encontrou?

Houve diferença significativa no desfecho primário favorecendo o grupo semaglutida. Em um acompanhamento médio de 40 meses, a incidência do desfecho primário no grupo semaglutida foi de 6,5% contra 8,0% no placebo. Estes resultados resultam em um NNT de 67. Considerando os desfechos individuais, o que a semaglutida mais influenciou foi infarto não fatal.

Mais pacientes do grupo semaglutida suspenderam a droga por eventos adversos (16% vs 8%). Essa diferença se deu por eventos gastrointestinais. Mais pacientes no grupo semaglutida tiveram doenças biliares, o que já havia sido percebido em estudos anteriores.

A redução na incidência de MACE começa antes de perda de peso significativa, sugerindo um mecanismo além da perda de peso.

O estudo é um avanço na prevenção secundária cardiovascular e deve motivar novas recomendações. Apesar dos bons resultados, o acesso à medicação é um limitante significativo. Ainda não temos a formulação de 2,4 mg no Brasil e o preço da formulação atual já não é acessível para a maioria da população.

Essa nova evidência é bem recebida, porém não deve retirar o foco de fazer o básico bem feito. Promover modificações do estilo de vida e controlar HAS, DM e dislipidemia são pilares da prevenção cardiovascular.

Será que Tem Evidência?

Betabloqueadores para Hipertensão Arterial

Criado em: 04 de Dezembro de 2023 Autor: Raphael Coelho

Um dos pontos mais polêmicos do tratamento de hipertensão arterial é o uso de betabloqueadores. Inspirados pela nova diretriz da Sociedade Europeia de Hipertensão Arterial (ESH), disponível em novembro de 2023, trazemos hoje uma revisão sobre o tema [1]. Será que tem evidência para usar betabloqueadores na hipertensão?

O que é ser de primeira linha no tratamento da hipertensão arterial (HAS)?

Medicamentos considerados de primeira linha são aqueles que:

  • Reduzem a pressão arterial (PA) em monoterapia.
  • Têm evidência de redução de eventos cardiovasculares e mortalidade em ensaios clínicos randomizados.
  • Têm equivalência em desfechos clínicos em comparação com outras drogas comprovadamente eficazes.
  • Têm perfil de tolerabilidade e segurança favorável.

Outros critérios clinicamente relevantes também são levados em consideração, como evidências sobre a adesão ao tratamento.

Evidências do betabloqueador na hipertensão arterial

Betabloqueadores reduzem eventos cardiovasculares em comparação com placebo no tratamento de HAS. Há evidências conflitantes quanto aos benefícios cardiovasculares em comparação com outros antihipertensivos. A interpretação das metanálises desses estudos é desafiadora, pois foram realizados em épocas diferentes, com variações no manejo desses pacientes particulares de cada momento [2].

Metanálises indicam que betabloqueadores foram inferiores a outros anti-hipertensivos como bloqueadores de canais de cálcio (BCC), diuréticos e iECA/BRA na prevenção de eventos cardiovasculares. Particularmente, betabloqueadores foram inferiores para prevenção de AVC. O estudo ASCOT identificou menos AVC no grupo anlodipino em comparação com o atenolol [3].

Há também evidências de piores desfechos na prevenção de outros eventos cardiovasculares e mortalidade em geral. Apesar disso, diante da eficácia na redução de eventos em comparação com placebo, betabloqueadores podem ser usados em associação com outros anti hipertensivos para pacientes que não atingiram metas pressóricas [4-7].

Betabloqueadores estão entre as drogas menos toleradas pelos pacientes. Para cada paciente em que um infarto ou AVC foi prevenido, três tiveram disfunção erétil e oito tiveram fadiga suficiente para levar à suspensão da terapia [8].

Há aumento do risco de diabetes e dislipidemia com uso de betabloqueadores, como o atenolol. Carvedilol, nebivolol e labetalol, que têm ação vasodilatadora, não têm impacto negativo, mas não foram testados para desfechos cardiovasculares no tratamento de HAS.

A maior parte dos achados sobre betabloqueadores para HAS são com atenolol. Mais estudos devem ser realizados para entender as diferenças entre subtipos de betabloqueadores e entre as populações que mais poderiam se beneficiar dessa classe de medicamentos.

Quando usar beta-bloqueador no paciente hipertenso?

Insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) é a principal indicação para uso de betabloqueadores em pacientes hipertensos.

Há outras condições em que os betabloqueadores são indicados:

  • Pós-infarto agudo do miocárdio
  • Angina estável
  • Para o controle da frequência cardíaca
  • Em mulheres com potencial de engravidar

Para pacientes com ICFER, betabloqueadores reduzem mortalidade, hospitalizações e gravidade dos sintomas.

São indicados como primeira linha para pacientes com doença coronariana isquêmica que infartaram ou que têm angina estável. Algumas diretrizes recomendam o uso por três anos, considerando razoável a manutenção da droga além desse período. Outras recomendam o uso por até um ano [2, 6].

Recomenda-se também os betabloqueadores para tratamento de doença aórtica torácica e dissecção crônica de aorta. Não devem ser utilizados nos pacientes com insuficiência aórtica pelo risco de piora do quadro.

Betabloqueadores são uma opção segura para mulheres férteis ou gestantes. Para pacientes com asma, os betabloqueadores de escolha são atenolol, bisoprolol e metoprolol [2].

O que as diretrizes dizem?

É consenso que os benefícios e os riscos são similares entre iECA, BRA, bloqueadores de canais de cálcio e diuréticos tiazídicos. Por isso, são considerados de primeira linha por todas as diretrizes avaliadas nesta revisão.

As últimas diretrizes americanas de hipertensão da AHA/ACC destacam que betabloqueadores são inferiores aos tiazídicos, iECA, BRA e BCC. Consideram inadequado o uso de betabloqueadores para tratamento inicial de HAS na ausência de comorbidades específicas que os indiquem [2].

As diretrizes brasileiras de hipertensão de 2020 apontam que devem ser utilizados quando há condições clínicas específicas que indiquem seu uso [9]. Também não são considerados de primeira linha pelas diretrizes da OMS de 2021, Veterans Affairs de 2020 e NICE de 2022 [6, 10, 11].

As novas diretrizes da ESH de 2023, trouxeram como recomendação forte as cinco classes de drogas, gerando uma interpretação de que os betabloqueadores seriam considerados de primeira linha [1]. Uma carta ao Lancet critica o documento, mencionando que os autores optaram por uma mensagem mais direta e simplificada, mas falharam no apontamento da inferioridade dos betabloqueadores em relação aos outros anti-hipertensivos [8]. A Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) não esteve presente no documento, diferentemente de 2018, quando os betabloqueadores não foram colocados na primeira linha.

Diretriz de Insuficiência Pancreática Exócrina

Criado em: 04 de Dezembro de 2023 Autor: Ingrid Fröehner

Insuficiência pancreática exócrina (IPE) pode ocorrer em diversas condições além da pancreatite crônica. Essa síndrome impacta a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes. Em novembro de 2023, a Associação Americana de Gastroenterologia publicou atualizações práticas sobre IPE [1]. Este tópico aborda os principais aspectos de diagnóstico, manejo e acompanhamento.

Quando suspeitar?

A parte exócrina do pâncreas produz enzimas que fazem parte do suco pancreático, capazes de digerir proteínas, gordura, carboidratos e ácidos nucleicos. Insuficiência pancreática exócrina (IPE) é caracterizada pela secreção reduzida ou inadequada de suco pancreático.

A IPE é frequentemente associada a doenças do pâncreas, como pancreatite crônica e neoplasia pancreática. Doenças em outros órgãos também podem causar IPE. A secreção exócrina do pâncreas é influenciada por vários fatores, incluindo estímulos neurais e hormonais. Portanto, doenças inflamatórias intestinais, úlceras gástricas, ressecções gástricas e diabetes mellitus tipo 2 podem causar IPE. Outros fatores relacionados ao desenvolvimento de IPE incluem hemocromatose, Sjögren, infecção por HIV, idade avançada e tabagismo. Os principais fatores associados a IPE estão descritos na tabela 1.

Tabela 1
Principais condições associadas a insuficiência pancreática exócrina (IPE)
Principais condições associadas a insuficiência pancreática exócrina (IPE)

Os principais sintomas de EPI são esteatorreia, perda de peso e alterações bioquímicas decorrentes da má absorção e má digestão, principalmente de lipídios e micronutrientes lipossolúveis. Também podem ocorrer sintomas mais inespecíficos de distensão e desconforto abdominal, geralmente na doença inicial ou leve. Deficiências nutricionais e sintomas sistêmicos como osteoporose e sarcopenia podem estar presentes. A tabela 2 descreve os principais sintomas de IPE.

Tabela 2
Sintomas de insuficiência pancreática exócrina (IPE)
Sintomas de insuficiência pancreática exócrina (IPE)

Deve-se suspeitar de IPE principalmente em pacientes com sintomas intestinais ou sistêmicos e fatores de alto ou moderado risco:

  • Fatores de alto risco: pancreatite crônica, pancreatite aguda recorrente, adenocarcinoma pancreático ductal, fibrose cística e cirurgia pancreática prévia.
  • Fatores de moderado risco: doenças duodenais (doença celíaca, Crohn), ressecção intestinal, diabetes de longa data e estados hipersecretivos (Zollinger-Ellison).

Como investigar?

O diagnóstico da IPE começa com a avaliação de sintomas, histórico clínico do paciente e comorbidades associadas. Pacientes com clínica compatível, sinais de má nutrição, absorção ou digestão e comorbidades fortemente associadas a IPE não necessitam de investigação adicional. O fluxograma 1 mostra a abordagem diagnóstica completa.

Fluxograma 1
Investigação de insuficiência pancreática exócrina (IPE)
Investigação de insuficiência pancreática exócrina (IPE)

Para os demais pacientes, a abordagem diagnóstica se baseará na elastase fecal (EF1), um teste indireto da secreção pancreática.

A EF1 é um bom marcador da função exócrina pancreática, pois mantém atividade após a passagem intestinal. Esse exame reflete o nível de saída de enzimas pancreáticas, correlacionando-se com a secreção de outras enzimas como lipase, amilase e tripsina.

Valores de EF1 abaixo de 100 mcg/g são fortemente indicativos de IPE, enquanto valores entre 100 e 200 mcg/g são indeterminados. Este teste é menos sensível para diagnóstico de formas leves de IPE e deve ser realizado em fezes sólidas ou semi-sólidas, pois fezes líquidas podem resultar em falsos valores baixos.

Em pacientes com sintomas pouco específicos, a confirmação diagnóstica com exames apropriados é necessária. Pacientes com quadro clínico inespecífico podem melhorar após uso da terapia de reposição de enzimas pancreáticas (TREP) apenas por efeito placebo ou podem apresentar sintomas devido a outras doenças disabsortivas, atrasando o diagnóstico. Em sintomas inespecíficos, utilizar a resposta a TREP como indicativo de IPE é algo pouco confiável.

Testes de imagem como tomografia, ressonância e ultrassom endoscópico são úteis para identificar doenças pancreáticas, mas não diagnosticam diretamente a IPE.

Testes de gordura fecal são indicados para determinar a presença de esteatorreia quando há dúvida ou para avaliar a resposta à TREP. A pesquisa quantitativa de gordura nas fezes (Sudan ou van de Kamer) pode ser positiva em diversas síndromes disabsortivas. Esses testes precisam de dieta direcionada para a coleta e não são específicos para IPE.

Como tratar?

O tratamento de IPE consiste na terapia de reposição de enzimas pancreáticas (TREP) e no ajuste nutricional adequado.

Reposição enzimática

A TREP utiliza preparações enzimáticas derivadas de suínos, que incluem uma mistura de amilases, lipases e proteases. As medicações são formuladas em microesferas sensíveis ao pH, protegendo a lipase da desnaturação pelo ácido gástrico e garantindo a passagem pelo piloro. No duodeno, o pH mais elevado favorece a liberação e ativação das enzimas.

É importante verificar as especificações na bula referentes ao tamanho da medicação e às modificações no pH da solução infundida para pacientes que utilizam sonda nasogástrica ou nasoenteral.

As enzimas devem ser tomadas com as refeições para simular a produção de enzimas pós-prandial. O foco da TREP é na dosagem de lipase, considerando o conteúdo lipídico da refeição. A dose inicial habitual varia entre 40.000 e 50.000 unidades por refeição principal e metade dessa dose em lanches.

No Brasil a única medicação com registro ativo na ANVISA é o Creon, sob apresentação de 10.000 e 25.000 unidades de atividade enzimática, que se correlaciona com a quantidade de lipase.

Dieta e suplementos

Uma dieta com conteúdo moderado a baixo de gordura é recomendada. Deve-se evitar dietas excessivamente restritivas de gordura, pois ela é necessária para a absorção de ácidos graxos e vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K).

Além disso, é indicado o rastreamento de deficiências de vitaminas lipossolúveis, vitamina B12, folato, magnésio, selênio e ferro no diagnóstico e anualmente para reposição conforme necessidade.

Como realizar o acompanhamento?

A resposta ao tratamento com TREP é avaliada pela redução da esteatorreia e melhora dos sintomas gastrointestinais. Também se observa aumento de peso, massa muscular e níveis de vitaminas lipossolúveis.

A monitorização nutricional pode incluir marcadores séricos de desnutrição (pré-albumina) e avaliação de sarcopenia, mesmo em pacientes obesos. Um método simples para avaliar a função muscular é o teste “timed-up and go” (veja como avaliar neste veja neste vídeo sobre avaliação de mobilidade em idosos).