Quando Transfundir Concentrado de Hemácias

Criado em: 08 de Janeiro de 2024 Autor: Kaue Malpighi

Anemia e hemotransfusões são frequentes em pacientes internados. Já se investigaram diferentes limiares para transfusões, com uma tendência atual para preferir metas restritivas (hemoglobina mais baixa) à liberais (hemoglobina mais alta). Estudos sobre esses limiares em pacientes com infarto agudo do miocárdio (IAM) ainda são escassos. Em novembro de 2023, foi publicado o estudo MINT no New England Journal of Medicine, que comparou metas em pacientes com IAM [1]. Neste tópico serão abordadas as indicações de hemotransfusão em diferentes grupos e os resultados do estudo.

Transfusão de hemácias no sangramento agudo

Em pacientes com sangramentos graves ou instabilidade, a decisão de transfundir não é guiada por valores de hemoglobina. Nesses casos, baseia-se no controle do sangramento, presença de sinais de choque e na avaliação dos sinais vitais.

Já em pacientes estáveis com sangramento agudo deve-se considerar metas específicas de hemotransfusão. Um estudo relevante sobre o tema foi publicado em 2013 no New England Journal of Medicine [2]. Esse estudo envolveu a randomização de 921 pacientes com sangramento gastrointestinal alto entre uma meta de transfusão restritiva (hemoglobina < 7 g/dL) e uma meta liberal (hemoglobina < 9 g/dL). Com objetivo de avaliar essas metas também em pacientes cirróticos, a randomização foi estratificada para presença ou não de cirrose.

O desfecho primário de mortalidade em 45 dias favoreceu o grupo de meta restritiva (5% vs. 9%; HR 0,55; IC 95% 0,33 a 0,92; p = 0,02). O risco de ressangramento e de eventos adversos associados à transfusão também foram menores no grupo restritivo.

Estes benefícios se mantiveram nos pacientes cirróticos, principalmente com Child-Pugh A e B. Terapia de resgate com TIPS (do inglês, transjugular intrahepatic portosystemic shunt) ou balão esofágico foi menos frequente no grupo restritivo. No grupo de meta liberal, houve um aumento significativo da pressão venosa hepática média entre a medida inicial e a medida após transfusões, o que pode conferir um aumento do risco de ressangramento.

Para pacientes com sangramento agudo e estável, uma meta de hemoglobina acima de 7 g/dL se mostrou segura e eficaz na melhoria de desfechos. Neste estudo, pacientes com síndromes coronarianas agudas foram excluídos.

Transfusão de hemácias no paciente crítico

Acreditava-se que manter a hemoglobina maior do que 10 g/dL poderia ser benéfico para o paciente crítico, com o objetivo de otimizar a entrega periférica de oxigênio. Porém, o organismo é capaz de otimizar a entrega e a extração de oxigênio mesmo com quedas mais significativas da hemoglobina, o que coloca em dúvida a necessidade de transfusões com metas mais liberais.

O estudo TRICC de 1999 colocou esta questão à prova [3]. Foram randomizados 834 pacientes críticos para o grupo restritivo (transfusão se hemoglobina < 7 g/dL com meta de 7 a 9) versus grupo liberal (transfusão se hemoglobina < 10 g/dL com meta entre 10 e 12).

Apesar de interrompido precocemente, não houve diferença de mortalidade em 30 dias entre os dois grupos. Dos desfechos secundários, o grupo liberal apresentou risco maior de edema agudo pulmonar, uma complicação sabidamente associada às transfusões.

Outros grupos de pacientes foram estudados, com os resultados em geral reforçando a segurança dos limiares restritivos. No estudo TRISS, foram randomizados pacientes sépticos para meta restritiva (limiar de 7 g/dL) e liberal (limiar de 9 g/dL), também sem diferença de mortalidade ou risco isquêmico [4]. Já no estudo TRICS-III, com pacientes que passaram por cirurgia cardíaca, o limiar restritivo (hemoglobina < 7,5 g/dL) foi não inferior ao limiar liberal (hemoglobina < 9,5 g/dL) para o desfecho composto de morte, IAM, AVC e lesão renal com necessidade de diálise [5].

Além do uso ponderado de hemotransfusão em pacientes críticos, esforços também devem ser direcionados para redução de coletas de sangue desnecessárias, causa comum de queda gradual de hematócrito na UTI. Esse fenômeno é conhecido coloquialmente como "vampirismo médico" [6, 7].

Transfusão de hemácias no infarto do miocárdio e o estudo MINT

As evidências atuais são discrepantes com relação à meta para transfusão em pacientes com síndrome coronariana aguda. Por um lado, uma meta liberal pode otimizar a oferta de oxigênio e reduzir o risco de um novo infarto; por outro, pode aumentar o risco de eventos adversos como sobrecarga volêmica e trombose [8, 9].

O estudo MINT randomizou pacientes com infarto agudo do miocárdio com e sem supra de ST e anemia com hemoglobina < 10 g/dL para receber uma estratégia de transfusão restritiva versus liberal. Na estratégia restritiva, era fortemente recomendado transfusão com Hb < 7 g/dL, mas era permitido também transfundir se Hb < 8 g/dL ou em casos de angina refratária. Na estratégia liberal, os pacientes receberam um concentrado de hemácias após randomização e a meta de Hb era mantida acima de 10 g/dL até a alta ou 30 dias da randomização. Em pacientes com claros sinais de congestão, a transfusão poderia ser atrasada nos dois grupos. O desfecho primário foi um composto de infarto e morte por qualquer causa em 30 dias.

Foram randomizados 3.504 pacientes, sendo que um terço apresentava infarto prévio e aproximadamente 37% tinham fração de ejeção menor que 45%.

Apesar de uma tendência de benefício, a estratégia liberal não foi superior à estratégia restritiva com relação ao desfecho primário (14,5% vs. 16,9%; RR 1,15; IC 95% 0,99-1,34; p=0,07). Não houve diferença na ocorrência de insuficiência cardíaca, mas houve mais casos de sobrecarga volêmica no grupo liberal.

O estudo resultou em um NNT de 62 para mortalidade com essa tendência de benefício, às custas de utilização 3,5 vezes maior de unidades de hemácias no grupo liberal. Ainda não está clara a meta de hemoglobina mais adequada para pacientes com infarto, devendo-se considerar variáveis como congestão pulmonar, angina refratária e uso de recursos do sistema para uma meta individualizada.

Artroplastia para Osteoartrite de Joelho e Quadril

Criado em: 08 de Janeiro de 2024 Autor: Ingrid Fröehner

A artroplastia é uma das opções terapêuticas para osteoartrite (OA) de joelho ou quadril. A indicação e o momento ideal para a cirurgia ainda não são claramente estabelecidos na literatura. Este tópico revisa a diretriz de novembro de 2023 do American College of Rheumatology e da American Association of Hip and Knee Surgeons sobre o melhor momento para a realização destas cirurgias [1].

Como tratar a osteoartrite?

A osteoartrite (OA) caracteriza-se pelo dano articular devido ao estresse na articulação. A perda de cartilagem é o processo principal, mas a doença afeta a articulação como um todo. Os sintomas incluem dor e limitação de movimento, com impacto significativo na qualidade de vida. Geralmente acomete joelhos e quadris e está presente em um terço dos pacientes acima de 60 anos [2, 3].

O tratamento inicial inclui terapias não farmacológicas e farmacológicas. Nos últimos anos, as terapias não farmacológicas mostraram maiores benefícios no alívio dos sintomas a longo prazo e na prevenção ou retardamento do declínio funcional, em comparação com as farmacológicas. As terapias não farmacológicas fortemente recomendadas são exercícios físicos, perda de peso e programas focados em autocuidado e auto manejo da dor. Não são indicados tratamentos como estimulação nervosa transcutânea, terapia de pulso vibracional ou massagem [4].

A terapia farmacológica de primeira escolha para OA de joelho é o anti-inflamatório não esteroidal (AINE) tópico. Quando o uso de AINE tópico é impraticável ou pouco eficaz, o AINE oral é uma alternativa. Recomendando-se a menor dose possível pelo menor tempo necessário [4].

Tabela 1
Recomendações de terapias farmacológicas e não farmacológicas para osteoartrite
Recomendações de terapias farmacológicas e não farmacológicas para osteoartrite

Para a OA de quadril, os AINEs orais são a primeira escolha, seguindo os mesmos cuidados. Os corticoides intra-articulares são eficazes para o alívio da dor em curtos períodos, mas deve-se evitar injeções regulares. A tabela 1 traz as terapias farmacológicas e não farmacológicas com o respectivo grau de recomendação [4].

Quando indicar artroplastia?

A artroplastia está associada a um bom controle da dor e melhora da funcionalidade, porém existe incerteza sobre quando essa intervenção deve ser feita. A indicação envolve a avaliação de parâmetros clínicos, radiológicos, funcionais e a decisão compartilhada com o paciente.

Avaliação de parâmetros clínicos, radiológicos e funcionais

Em pacientes com OA avançada e dor não controlada pelas terapias iniciais, a cirurgia de artroplastia deve ser considerada. A tabela 2 contém recomendações de algumas diretrizes.

Tabela 2
Diretrizes e indicação de artroplastia
Diretrizes e indicação de artroplastia

A Sociedade Americana de Cirurgiões Ortopedistas desenvolveu uma ferramenta para auxiliar na tomada de decisão sobre a indicação de artroplastia de joelho e de quadril. Estas ferramentas avaliam critérios como limitação e instabilidade funcional, amplitude de movimento, padrão de acometimento, achados radiológicos, alinhamento do membro, sintomas e idade do paciente. As recomendações são categorizadas em “apropriadas”, “possivelmente apropriadas” e “raramente apropriadas”.

Decisão compartilhada com o paciente

Independente da indicação clínica, a decisão de operar deve ser compartilhada com o paciente, explicando riscos e probabilidade de melhora pós-cirúrgica.

A presença de fatores de risco para piores resultados cirúrgicos (idade, obesidade, comorbidades) deve ser informada ao paciente para auxiliar no processo de tomada de decisão, não sendo uma contraindicação absoluta ao procedimento.

Qual o melhor momento para a cirurgia?

Após a decisão pela artroplastia, surgem dúvidas sobre o melhor momento para a operação. O Colégio Americano de Reumatologistas e a Associação Americana de Cirurgiões de Joelho e Quadril oferecem recomendações sobre o tempo ideal para a cirurgia [1].

A população avaliada para a elaboração do documento apresentava OA com dor moderada a grave e alteração radiológica moderada a grave. Pelo menos um curso de tratamento não operatório apropriado já tinha sido realizado.

Doenças crônicas como insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crônica e asma devem estar compensadas para garantir a segurança do procedimento. O documento também recomenda atraso na cirurgia para:

  • Garantir bom controle glicêmico pré-operatório. Não há uma recomendação específica para artroplastia quanto aos valores de glicemia ou hemoglobina glicada. Recomendações gerais podem ser encontradas no tópico Nova Diretriz de Hiperglicemia no Paciente Internado.
  • Reduzir ou cessar o tabagismo em pacientes dependentes de nicotina

Por outro lado, não é recomendado atrasar a cirurgia para:

  • Realizar terapia com fisioterapia
  • Realizar terapia com corticoide intra-articular ou AINE oral
  • Recomendar uso de órteses (bengalas ou andadores)
  • Reduzir peso em pacientes com IMC entre 35 e 50
Tabela 3
Considerações sobre terapias não cirúrgicas
Considerações sobre terapias não cirúrgicas

Essas terapias não são contraindicadas, porém não devem atrasar o planejamento cirúrgico. A tabela 3 traz comentários a respeito das recomendações.

Antibióticos Inalatórios

Criado em: 08 de Janeiro de 2024 Autor: Frederico Amorim Marcelino

Em novembro de 2023, foi publicado no New England Journal of Medicine um estudo que avaliou a amicacina inalatória para prevenção de pneumonia associada à ventilação [1]. Este tópico aborda o uso de antibióticos por via inalatória em diversos cenários, incluindo este.

Mecanismo e administração dos antibióticos inalatórios

Os estudos com antibióticos inalatórios focam principalmente em três situações:

  • Fibrose cística e bronquiectasias por causas diferentes de fibrose cística
  • Tratamento de infecções pulmonares
  • Prevenção de pneumonia associada à ventilação

O motivo para a administração inalatória é o aumento da concentração de antimicrobianos no parênquima pulmonar e a menor absorção sistêmica, levando a menos efeitos adversos. Além disso, é uma estratégia para tratamento de infecções respiratórias por microrganismos resistentes e de difícil tratamento, como Pseudomonas aeruginosa.

Existem dois métodos principais de administração de antibióticos de forma inalatória (figura 1):

  • Nebulizadores:
    • à jato
    • ultrassônico
    • malha vibratória
  • Inaladores:
    • dosimetrado pressurizado - metered-dose inhaler (MDI)
    • pó seco - dry-powder inhaler (DPI)
Figura 1
Exemplos de nebulizadores e inaladores
Exemplos de nebulizadores e inaladores

O método influencia no tamanho da partícula que é formada para inalação. Partículas muito grandes podem ficar represadas na via aérea superior e partículas muito pequenas podem sair com a expiração.

Os principais antibióticos testados para tratamento por via inalatória são: tobramicina, amicacina, colistina, ceftazidima e aztreonam. Os estudos usam a formulação de solução para inalação. Na prática clínica, as formulações de solução para injeção são usadas de forma off-label. Nesses casos, não há previsibilidade de dosagem adequada e de efeitos colaterais [2].

O principal efeito adverso dos antibióticos inalatórios é o broncoespasmo. Estudos demonstram diminuição de VEF1 e CVF após inalação, com melhora após uso de broncodilatador. Há recomendação de uso de broncodilatadores antes da terapia.

Indicação dos antibióticos inalatórios

O uso de tobramicina inalatória é recomendado para pacientes com fibrose cística com persistência de Pseudomonas aeruginosa em culturas de escarro. A terapia está associada à melhora da qualidade de vida e função pulmonar em pacientes com doença moderada ou grave. Em pacientes com doença leve está associada à diminuição de exacerbações [3].

Em pacientes com bronquiectasias por causas diferentes de fibrose cística, a diretriz britânica de 2010 sugere considerar o uso naqueles com três ou mais exacerbações necessitando de antibióticos e que também sejam cronicamente colonizados por Pseudomonas aeruginosa. Para pacientes com menos de três exacerbações, a terapia pode ser considerada a depender da morbidade das exacerbações [4].

Em pacientes com pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV), a diretriz da Infectious Disease Society of America (IDSA) recomenda o uso de antibiótico inalatório em infecções por gram-negativos sensíveis apenas a amicacina e/ou polimixina. Essa recomendação se baseia em estudos que demonstraram maior cura clínica, mas não diminuição de mortalidade com o uso [5].

Prevenção de pneumonia associada à ventilação mecânica: estudo AMIKINHAL

O AMIKINHAL é um estudo multicêntrico, duplo-cego e randomizado que avaliou o uso de amicacina inalatória para prevenção de PAV. Foram incluídos 847 pacientes críticos que passaram pelo menos 72 horas em ventilação mecânica. O desfecho primário foi o primeiro episódio de PAV nos primeiros 28 dias do acompanhamento. Os pacientes do grupo intervenção receberam 20 mg/kg de amicacina (pó de amicacina livre de sulfito), através de um nebulizador de malha vibratória, por três dias consecutivos. O grupo controle recebia inalação placebo também por três dias. Em caso de extubação o tratamento era suspenso.

Houve diferença significativa entre os grupos, com vantagem para a intervenção. Após 28 dias, 15% dos pacientes no grupo intervenção apresentaram episódio de PAV, enquanto no grupo controle esse número foi de 22%. Considerando apenas episódios de PAV por gram-negativos sensíveis à amicacina, o grupo intervenção apresentou incidência de 7%, em comparação com 14% no grupo controle. Não houve diferença em tempo de ventilação mecânica e mortalidade.

Efeitos adversos graves respiratórios ocorreram em sete pacientes do grupo amicacina e em quatro pacientes do grupo placebo. Entre os pacientes que não apresentavam disfunção renal no momento da randomização, 4% desenvolveram lesão renal aguda no grupo amicacina e 8% no grupo controle.

O que o estudo AMIKINHAL acrescentou

Apesar do desfecho positivo, existem alguns questionamentos sobre os resultados:

  • Não existe padrão ouro para o diagnóstico de PAV. Utilizar o critério microbiológico pode resultar em sobrediagnóstico, caracterizando como PAV alguns pacientes que são apenas colonizados. Nessa linha, o antibiótico inalatório poderia reduzir a colonização, sem tratar PAV de fato.
  • Não houve mudança no tempo de ventilação mecânica, colocando em dúvida o benefício clínico da intervenção.
  • A introdução dessa prática requer uma estrutura que inclui nebulizadores, formulação para inalação de antibióticos e treinamento de equipe.
  • Existe risco de aumento de resistência em gram-negativos com exposição repetida à amicacina.

Apesar do desfecho positivo neste trabalho, mais estudos são necessários para confirmar o benefício e a intervenção ser incorporada na prática clínica.